[Campo em Cena] Campo da Dança: Agentes, disputas, capital científico e o Tribal.

 por Thaisa Martins

Em nossa conversa de hoje partiremos de três perguntas que me instigam enquanto pesquisadora e que são fundamentais para a criação desta coluna: 1) O que queremos dizer com “campo da Dança”? 2) Por que essa reflexão é importante ? e 3) O que o Tribal tem haver com isso?   

Campo

Já entrando de cabeça em nossa discussão mais teórica, é do conceito de campo, postulado pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu, que embasamos nossa discussão. No livro “Os usos sociais da ciência: Por uma sociologia clínica do campo científico", Bourdieu discute de forma muito simples, cheia de exemplos e de fácil compreensão o conceito de campo e outros assuntos conectados a ele. Por se tratar de uma transcrição da palestra dada pelo mesmo em uma conferência que aconteceu em Paris no mês de março de 1977,  muitas vezes temos a sensação de estarmos em uma conversa.

Bourdieu (2004, p.20) define o campo como: "(...) o universo no qual estão inseridos os agentes e as instituições que produzem, reproduzem ou difundem a arte, a literatura ou a ciência. Esse universo é um mundo social como os outros, mas que obedece a leis sociais mais ou menos específicas. A noção de campo está aí para designar esse espaço relativamente autônomo, esse microcosmo dotado de suas leis próprias.” Ou seja, campos são os espaços onde são produzidas formas de observar e se relacionar com o mundo. Pensando na produção científica, por exemplo, temos o campo da Biologia com suas leis, métodos e teorias que são diferentes em relação ao campo da Matemática.

Um ponto muito importante para a discussão de Bourdieu é em relação a autonomia dos campos, para ele (2004, p.22)“(...)quanto mais autônomo for um campo, maior será seu poder de refração e mais imposições externas serão transfiguradas.” ou seja, quanto mais autônomo um campo for, mais reconhecido e legitimado ele será. Esse é um dos problemas que a Dança, enquanto campo, está tentando resolver atualmente.

Não basta para uma disciplina a autodeclaração de campo, ela precisa ser reconhecida como tal por seus pares. Para isso, agentes e instituições precisam lutar por seu espaço. Questões como a regulamentação da classe profissional, formalização de ensino através de cursos universitários em todos os graus (graduação, mestrado e doutorado), sindicatos, órgãos reguladores, congressos, revistas especializadas e etc são peças fundamentais para que o campo se torne autônomo. Além disso, a produção de conhecimento é fundamental. Quando somos capazes de observar um forte desenvolvimento epistemológico e ontológico de um campo do conhecimento, podemos começar a investigar o mundo através de “suas lentes” ou paradigmas.

A Dança pode ser compreendida como um campo?



Como a ponta a pesquisadora Prof.a Dra Luciane Coccaro em sua tese de doutorado “Os que fazem e os que pensam a dança: estudo da tensão entre teoria e prática em quatro cursos de graduação em dança no Brasil” de 2017, a Dança é um campo em construção, pois sua autonomia e reconhecimento ainda está em processo. A autora se aprofunda nesta discussão de forma muito competente em seu terceiro capítulo e indicamos fortemente a leitura para uma discussão mais robusta.
Apesar deste posicionamento um tanto quanto desanimador, acredito que podemos sim assumir que o campo da Dança existe e cabe a nós, agentes inseridos no fazer da dança, defendê-lo e lutar para que sua autonomia seja cada vez mais alcançada e reconhecida. Como Bourdieu (2004, p.23) aponta, “Os agentes criam o espaço, e o espaço só existe (de alguma maneira) pelos agentes e pelas relações objetivas entre os agentes que aí se encontram”. Assim, a conscientização do papel de agente e a busca pelo protagonismo da Dança em nossas produções é peça fundamental para que esse cenário mude.
Mas o que significa colocar a Dança como protagonista? Significa deixar de reproduzir discursos de campos outros e nos apoiarmos na própria visão de mundo construída pelo campo da Dança, abandonando a comum prática de colocar a Dança com um mero objeto de estudo. Significa então, estudar o que a dança tem a dizer de sobre sí mesma. Isso não quer dizer que devemos deixar de lado o suporte de áreas como a Histórica, Biologia, Física e etc, mas sim, que devemos lutar para que trabalhemos como pares desses campos. Pessoalmente falando, a transdisciplinaridade tem sido meu lugar de busca de construção de conhecimento.
Entendo o fazer transdisciplinar como “referindo-se àquilo que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das diferentes disciplinas e além de qualquer disciplina” (NICOLESCU, 2008, p. 16). Ou seja, deixando bem claro os olhares das diferentes “lentes” (paradigmas) que os campos produzem e fazendo que sejam respeitadas e aproveitadas as metodologias e métodos de todas as áreas, estabelecendo uma sinergia entre os saberes, sem fracionamento metodológico ou hierarquização do conhecimento.

  

 


Acho importante salientar, mais uma vez, que a idéia aqui exposta não é de condenar as pessoas de outros campos que olham para dança, pelo contrário, esses trabalhos agregam muito às reflexões e amadurecimento do fazer artístico, mas intento chamar a atenção de que podemos e devemos construir conhecimento sem uma subjugação intelectual. Afinal, olhar para o mundo pela perspectiva do movimento artístico é uma forma que somente a dança pode construir e precisamos reconhecer isso.


Não adianta, enquanto pesquisadores da Dança almejarmos construir um trabalho de historiografia (por exemplo) pois não recebemos a mesma formação que os historiadores. Da mesma forma que não seremos capazes de construir um prédio fazendo aula de Economia Brasileira. Para tal, os pesquisadores se inserem nesses campos e estudam essas ferramentas para que, partindo da perspectiva do campo da Dança, possam construir algo cientificamente acurado. 


Mas enquanto pesquisadores da Dança, temos todo o direito de pesquisar nossa história e, aprendendo mais sobre ela, levantar questões e avançar em nossas produções. Assim, o produto final de nossas investigações será diferente, e isso é ótimo. Seguindo o exemplo de forma bem simplificada, enquanto o historiador aplica seus métodos para investigar as produções artísticas da Dança e produzir um trabalho historiográfico, a Dança se alimenta da produção historiográfica para produzir reflexões e produções artísticas.    Tudo isso está conectado com o que Bourdieu chama de capital científico. 


Bourdieu divide o capital científico em duas espécies, a primeira que está relacionada a um poder político, que está ligado à ocupação de posições em instituições científicas, ou seja, a ideia de que um acadêmico da dança tem mais legitimidade no discurso do que um praticante. O outro tipo de capital está conectado ao prestígio pessoal, que tem haver com o reconhecimento, ou seja, falar de Dança numa perspectiva de um campo mais prestigiado é muito mais fácil e pode gerar muito mais reconhecimento do que dentro do próprio campo. 


A pergunta que fica é, que tipo de capital científico estamos produzindo? Como comenta Sylvie Fortin e Pierre Gosselin (2014), estamos produzindo pesquisa em arte, sobre arte ou para a arte? Acredito que a resposta nos direciona para o tipo de capital que estamos produzindo e os impactos para os campos envolvidos. A escolha consciente é o que buscamos apontar neste momento.



O que o Tribal tem haver com essa discussão?     

O Tribal, enquanto manifestação artística, está inserido no “ringue de disputas” dentro do campo da Dança. Assim, a discussão afeta profundamente o fazer da modalidade. Desde questões como legitimação profissional, afinal se a Dança é reconhecida como um campo, seus profissionais passam a ter mais legitimidade política na reivindicação por direitos trabalhistas, até em relação ao aprofundamento teórico do fazer de sua dança, com mais oportunidades de aprofundamento e continuidade de estudo (seja pela via universitária ou não).

Quando observamos seus agentes (dançarinas profissionais ou não), buscando o estudo formal, desenvolvendo e aplicando ferramentas próprias do campo, interessados em se capacitar e questionar o status político atual que a modalidade se encontra é um importante movimento para a autonomia do campo da Dança com um todo. Fazer as pessoas compreenderem que a Dança é muito mais do que o Balé, e que por isso precisa de um olhar mais especializado e complexificado para compreendê-la  é um grande avanço para o campo. Ao mesmo tempo em que, quanto mais autônomo e reconhecido o campo da dança se torna, mais fortalecido ficará o fazer das modalidades e assim, novas disputas de campo se instituem. Tudo está visceralmente imbricado.

Outro ponto que acredito ser importante dessa discussão para o Tribal é o entendimento da importância do amadurecimento  teórico para o fazer artístico. O que, na minha percepção, podemos chamar de uma guinada epistemológica que o campo da Dança tem passado desde a década de 60 aqui no Brasil, e que o Tribal se inseriu bem recentemente com o aumento de pesquisadores inseridos nas universidades investigando a modalidade (seja na Dança ou não). Sinto que ainda somos “reféns” de um seleto grupo de pesquisadores, geralmente internacionais (como Donna Mejia, apenas para citar um nome influente contemporaneamente)  e que só nos livraremos dessa colonização intelectual limitadora quando formos capazes de pensar por nós mesmas, de maneira mais aprofundada e instrumentalizada para  concordar ou não com o que é postulado de maneira consciente. A situação atual, acredito,  acarreta em um potente enfraquecimento da modalidade.   


 

Conclusão

No presente artigo, buscamos discutir o conceito de campo de acordo com o postulado por Pierre Bourdieu e apontamos para a importância de sua análise para o campo da Dança como um todo. Intentamos ainda, evidenciar o papel do Tribal nesta disputa.

Gostaria de concluir nossa conversa trazendo minha posição política pessoal em relação a este assunto para a reflexão. Enquanto não nos compreendermos como agentes do campo da Dança, e portanto responsáveis por sua autonomia, enquanto  desprezarmos o aprofundamento do estudo e acompanhamento da produção de conhecimento do campo (teorias próprias do fazer artístico e do movimento)  estaremos condenadas ao papel de objeto de análise para os demais campos e seus agentes, que terão muito sucesso em nos dizer o que devemos ou não fazer com a nossa dança.

Sigamos!!


Referência Bibliográfica:

COCCARO, Luciane Moreau, Os que fazem e os que pensam a dança: estudo da tensão entre teoria e prática em quatro cursos de graduação em Dança no Brasil, Tese (Doutorado em Sociologia ), Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2017

FORTIN, S.; GOSSELIN, P. Considerações metodológicas para a pesquisa em arte no meio acadêmico. ARJ – Art Research Journal / Revista de Pesquisa em Artes, v. 1, n. 1, p. 1-17, 4 maio 2014.

NICOLESCU, B. O Manifesto da Transdisciplinaridade. São Paulo: Triom, 2008

BOURDIEU, P. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo: UNESP, 2004



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Campo em Cena


Thaisa Martins (Rio de Janeiro-RJ) é graduada em Teoria da Dança (UFRJ) e mestranda em Arqueologia (UFRJ) onde pesquisa processos de reconstrução de dança na Índia antiga. É sócia do Medusa Tribal Studio, estúdio de dança dedicado ao Tribal Fusion, suas derivações e origens no RJ,  junto com a dançarina e fisioterapeuta Maya Felipe. Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >> 

[Organizando a Tribo] Formas, Recursos e Dicas: Como se adaptar ao formato online?

por Isadora Oliveira

 Eii bailarinx! Como está a organização da vida por ai?

Entra semana, sai semana e a situação da dança no Brasil está cada vez mais delicada. Estamos passando por momentos turbulentos e atípicos, que nos exigem além de muita força, criatividade e inovação. Ser inovador e inteligente através do formato online é mais uma saída para professores e donos de escolas de dança. Então hoje, conversaremos sobre como a organização e os facilitadores tecnológicos podem ser aliados em tempos tão caóticos.

Já conversamos no último post sobre como utilizar as redes sociais para uma comunicação assertiva. Se ainda não viu, corre lá (clique aqui)!



Estando ainda na realidade pandêmica, é preciso saber onde investir e fazer tal investimento de maneira inteligente e organizada. Para isso vamos analisar alguns pontos primordiais que fazem parte do cronograma organizacional que estamos montando até aqui.

Pense na sua disponibilidade!

Desenvolver um curso ou conteúdo online de qualidade, dependerá de você tempo e organização, para que o desenvolvimento deste, não afete as tarefas da sua rotina.

Estruture a plataforma!

Ser criativo inclusive no modo em que o curso será oferecido é uma grande chave para se destacar. Hoje, muitas pessoas usam o recurso do Instagram fechado ou plataformas especializadas como o HotMart.

Apostar em aulas síncronas, aulas gravadas e conteúdos escritos para a modalidade online, vai te dar ferramentas e tempo para produzir mais conteúdo.

Segue aqui algumas informações importantes e úteis para você pensar na plataforma do seu curso antes de escolhê-la.

→ “10 Melhores Plataformas de Cursos Online EAD- https://neilpatel.com/br/blog/plataformas-de-cursos-online/

→ “ Vai dar aulas a distância? Aqui estão 5 plataformas que você pode usar - https://desafiosdaeducacao.grupoa.com.br/5-plataformas-digitais/





Diversifique nas fontes!

Diversifique nas fontes de estudo, nas fontes de inspiração e nas fontes de comunicação. Se o seu campo de estudo/trabalho é a Dança Árabe Oriental, você tem um  mundo de possibilidades dentro da estrutura que a arte árabe já te proporciona. São estudos históricos de origem, folclores diversos, estudo de música, estrutura musical e instrumentos, aprofundamento dos movimentos técnicos, e por aí vai…


→ “Como montar um curso online: passo a passo completo do planejamento à divulgação. https://sambatech.com/blog/insights/tudo-cursos-online/

Contudo, se você trabalha com outra área, ou pretende sair da caixinha, explore o intercâmbio de informações e construções corporais, técnicas e históricas de outras artes. Sejam essas relacionadas à dança, pintura, música, teatro ou performance. Se permita mergulhar em outros mundo para emergir criativamente com outros caminhos e possibilidades.

 

Conheça outros artistas, faça parcerias!



Estar afundo no mundo tecnológico, é em menos de 1 minuto viajar o mundo pelos dedos. Por isso, abuse das conexões saudáveis que as redes podem te gerar. Se você é bailarina de performance, conheça performistas de teatro, se você é bailarina de palco, conheça atores de teatro, se você é dona de escola, conheça gestoras independentes e amplie os seus olhares a partir de novas vivências.

O que você captar de todas essas vivências, será a sua bagagem e sua marca criativa. Permita-se viajar, sair um pouco do ‘de sempre’, mas sem deixar o seu propósito de lado! 

Bailarinxs, tenham uma ótima e organizada semana!

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Organizando a Tribo

Isadora Oliveira (Belo Horizonte-MG) é bailarina semi-profissional, estudante e mobilizadora social. Com 19 anos de idade, graduanda em Bacharel em Direito e amante da Cultura Árabe Oriental, tem uma vasta experiência em organização grupal (apesar da idade), são aproximadamente 10 anos de trabalho e serviços sociais voluntários. É integrante da equipe VIDES Brasil (Voluntariado Internacional de Desenvolvimento e Educação Social) e está à frente da Iniciativa da Nova Geração das Danças Árabes Orientais no Brasil.  Clique aqui para ler mais posts desa coluna! >>


[Folclore em Foco] MENAHT e a dança do ventre

por Nadja El Balady


Você sabe o que é MENAHT? É a sigla em inglês para reunir diversos países de regiões diferentes da África, Ásia e Europa: Middle East, North African, Hellas and Turkey (oriente médio, norte da África, Grécia e Turquia). O nome oficial da Grécia é Hellas, são os estrangeiros que chamam de Grécia, nome dado durante a dominação romana. Os gregos chamam seu país com este nome devido a sua ancestral cultura helênica, que se estende também para alguns países vizinhos da região dos Balcãs.

Todos estas regiões têm em sua diversidade cultural, alguma manifestação popular que se relaciona direta ou indiretamente com o fazer da dança do ventre, de qualquer estilo. A base, os fundamentos dos movimentos principais da dança do ventre – oitos, redondos, ondulações, shimmies, batidas de quadril – são todos movimentos de danças populares diversas de países como Egito, Líbano e Turquia, de povos nativos que conhecemos com os nomes de ciganos, beduínos e berberes (que são denominações colonialistas).

Cada país tem em sua população miscigenações resultado da história de migrações e dominações culturais. Um povo estrangeiro que chega em um território para habitar (seja por conta de guerras, de fome ou qualquer causa natural), Transforma seus próprios hábitos e também influencia a cultura dos povos que já habitavam este mesmo território antes. É o que chamamos de tranças culturais e em todos os países das regiões MENAHT estas tranças culturais acontecem há milênios e são muito interessantes para quem tem sua arte conectada a estas culturas.

Tapestry Amités - Safia Farhat

Falamos muito sobre ciganos, beduínos e berberes porque, entre os diversos povos que habitam os países MENAHT, estes são fundamentais para a base da nossa dança. É importante saber que cada grupo destes significa a presença de uma infinidade de etnias, clãs e famílias, com diferentes línguas, festejos, hábitos, música e dança. Para nós que não temos contato direto é bem difícil encontrar as diferenças entre todos estes povos sem um estudo mais aprofundado. As semelhanças entre suas manifestações populares, são devido às tranças culturais que se delinearam através do tempo e da história, principalmente considerando um passado migratório e nômade de uma grande parte da população destas regiões. Cada grupo, cada cultura também é influenciado pela história das dominações, guerras, condições políticas, das imposições de uma cultura sobre a outra, incluindo aspectos religiosos.

Para conhecer as peculiaridades de cada local, é preciso estudo intensivo e mesmo em uma vida ninguém consegue saber com profundidade tudo de todos os povos, pois a diversidade é, de fato, muito grande. Mesmo assim, vale o esforço de mergulhar para conhecer o máximo que pudermos para nos enriquecermos como artistas e como seres humanos, para estar atentas às implicações sociais relacionadas à arte que praticamos.

Estas populações têm histórico nômade e ao longo do século XX passaram por grandes mudanças e restrições de seu modo de vida devido às colonizações e ocupações europeias que mudaram as fronteiras e restringiram a circulação de pessoas de uma região para outra. Países foram criados de forma artificial por interesses políticos e durante muito tempo alguns povos não tiveram acesso a direitos básicos como cidadãos dos países a qual passaram a pertencer. Apesar de a história das dominações entre os povos ser tão antiga quanto a história da própria humanidade, a presença ocidental no norte da África e em outras regiões da Ásia, foi especialmente negativa do ponto de vista do desenvolvimento social, cultural e econômico de povos nativos como os berberes (Amazigh) e beduínos, por exemplo.

A seguir seguem mapas a respeito da presença dos principais grupo étnicos na região MENAHT.

Mapa da população de origem beduína
no norte da África e oriente médio
Beduínos são árabes nômades, com origem na península arábica e que se espalharam pelo norte da África e oriente médio durante a expansão do Islã, a partir do século VII. A palavra “beduíno” significa “povo do deserto”. É maior população com histórico nômade das regiões MENAHT, ocupando norte da África, todo o oriente médio e partes da Ásia. Muitos beduínos abandonaram os hábitos nômades, apesar de alguns clãs ainda persistirem em suas tradições. A vida nômade foi se tornando cada vez mais difícil ao longo do século passado. A maioria esmagadora dos beduínos são muçulmanos, embora existam uns poucos cristãos.


Mapa da presença Amazigh no norte da África
Os grupos que conhecemos como Berberes se identificam com o nome Amazigh (povo livre), a denominação “berbere” tem origem na época da colonização romana e é considerada ofensiva. Seus idiomas e dialetos vem da família de línguas afro-asiáticas e ocupam regiões entre o Marrocos e a Argélia, principalmente a região que conhecemos como Magrebe. Durante a expansão do Islã, os amazigh se tornaram, em sua maioria, muçulmanos e assimilaram muito da cultura árabe.


“Ciganos” com o qual conhecemos o povo
Mapa das ondas migratórias rom
Roma, ou Rom, que em português significaria “homem”. População com histórico nômade, supostamente de origem indiana e que se espalhou pelo mundo em ondas migratórias, assimilando diferentes costumes e dando origem a diferentes etnias, clãs, famílias, línguas e dialetos. Durante a segunda onda migratória, no século XIV, muitas caravanas partiram para a Europa, Oriente Médio e Norte da África. Um primeiro grupo tomou rumo oeste e atingiu a Europa através da Grécia; o segundo partiu para o sul, adentrando o Império Bizantino e chegando à Síria, Egito e Palestina. Em razão da ausência de uma história escrita, a origem e a história inicial dos povos rom foram um mistério por muito tempo. Até meados do século XVIII, teorias da sua origem se limitavam a especulações.

A dança do ventre é uma grande porta de entrada cultural. Junto com a dança, vêm a música, junto com a música, a língua, com a língua os sabores e aromas e em seguida vêm a geografia, a história e os hábitos do um povo. Nos interessamos por seus folclores, por suas festas, suas cerimônias e rituais. Quem mergulha na cultura de um povo compreende melhor sua corporeidade, consegue traduzir sua musicalidade, acrescenta a si mesmo saberes e se enriquece culturalmente.

É muito importante conhecer culturas nativas MENAHT, por diversos motivos. Além de enriquecimento artístico e cultural, precisamos conhecer sua história, inclusive das dominações, das guerras, das sobreposições de uma cultura sobre outra. Existem muitos povos importantes que estão relegados à pobreza e a falta de condições sanitárias por motivos de dominação cultural e econômica e a arte também reflete a história destes povos.

Ao mesmo tempo que a dança traz visibilidade às culturas populares menos favorecidas (e isso é ótimo), muitas vezes a dançarina ocidental desenvolve um olhar superficial, romantizado, turístico e até exploratório a respeito destas culturas, o que no final das contas não vai ajudar a diminuir as desigualdades sociais desenvolvidas no sistema colonialista em que estamos todas inseridas. Todas nós que dançamos estamos implicadas nisso: Nós que fazemos ATS/FCBD®; Nós que fazemos Tribal Fusion; Nós que fazemos Fusion Bellydance; Nós que fazemos Dança do Ventre tradicional; Nós que fazemos Folclore Árabe ou de qualquer região MENAHT.

Fazer aulas com professores nativos de determinado país é de suma importância, mas vejam bem: Dentro de um país que sofreu com a colonização, existem camadas sociais diferentes. Muitas vezes o coreógrafo que tem acesso à educação artística e que trabalha na Europa, Estados Unidos e faz fama pelo mundo, não tem contato direto com a fonte cultural daquela dança que ensinam, que em geral é pobre e/ou sofre preconceito. Por exemplo: Em busca de estudar a cultura ghawazee, em vez de fazer aula com uma pessoa diretamente conectada à esta dança popular, como a madame Khariya Mazin, a dançarina faz aula com um coreógrafo egípcio. Não que o coreógrafo não possa estar desenvolvendo um bom trabalho, mas ele está tendo um reconhecimento (financeiro, inclusive) que melhor estaria sendo direcionado para quem dedica a sua vida ao fazer da própria cultura. Além disso, muitas vezes a visão do coreógrafo sobre aquela dança será tão romantizada quanto a nossa e no intuito de “elevar à condição de arte” a cultura popular, desvia o curso do dinheiro que transita apenas nas camadas sociais mais altas e nunca chega de verdade em quem mais precisa dele.

Isso não significa, de forma nenhuma, que devemos deixar de ensinar ou estudar a cultura popular da região que for. No esforço de conhecer outras culturas, de apresentar as danças de outros lugares, de passar este conhecimento a diante, nativos e não nativos prestam um grande serviço de educação e de difusão cultural, o que é a tal porta de entrada citada anteriormente, mas é preciso se preocupar também com a valorização daqueles que têm estas danças em suas vidas como tradição e identidade cultural.

Vou citar como exemplo meu próprio trabalho com o grupo Rio Maracatu no Rio de Janeiro, onde dei aulas por 20 anos de maracatu de baque virado, coco de roda, ciranda, entre outras manifestações populares pernambucanas. O Rio Maracatu foi (ou ainda é) uma grande porta de entrada para a cultural pernambucana no Sudeste. Durante os primeiros anos de existência, não se falava em apropriação cultural ou qualquer outro assunto correlacionado. Éramos jovens artistas de classe média do Rio de Janeiro, enamorados da riquíssima cultura pernambucana com a qual criávamos música e coreografia. Eu tinha acesso direto à cultura pernambucana porque meu pai morava lá e eu cresci vivenciando estas manifestações culturais todos os verões, quando ia visitar. A partir do momento em que entendemos nossa responsabilidade com esta cultura, passamos a ir sempre em Pernambuco para vivenciar, estudar e imergir no fazer do maracatu nação, tendo contato direto com os mestres em suas sedes de maracatus tradicionais. Posteriormente passamos a organizar quase todos os meses workshops e vivências com mestres, batuqueiros, dançarinos, princesas e rainhas destas nações no Rio de Janeiro. Organizamos grupos para ir até os maracatus em Recife para terem acesso a estas pessoas e a estas culturas em suas casas, em suas comunidades. Claro que esta é uma história muito resumida, existem muitas questões a respeito desta situação que precisariam de um livro para serem abordadas com cuidado. Menciono esta história aqui porque ela reflete uma transformação no entendimento de quem somos e que papel escolhemos ocupar no fazer da cultura popular ou da criação artística cênica baseada na cultura popular, que é o caso da dança do ventre tradicional, tribal ou de fusão.

Entendo também que para um grupo de maracatu é muito mais fácil levar mestres de Pernambuco para o Rio de Janeiro, do que apara uma dançarina brasileira trazer para o Brasil mestres do Egito, do Líbano ou da Turquia. Eu mesma ainda não tive muitas oportunidades de valorizar estes mestres o quanto gostaria, mas estejamos atentas a isso e se você tiver alguma oportunidade neste sentido, não deixe passar. Quanto maior vivência com estas pessoas, melhor para nós, para elas, para o mundo. Faça entender aos produtores de festivais que este é o seu desejo. Se você produz festivais internacionais, se você é uma pessoa que se arrisca em um negócio de milhares de dólares para trazer uma estrela internacional estadunidense ou russa, use este espaço para também valorizar mestres da cultura popular MENAHT. Nós, alunas dos workshops do seu festival, vamos pagar por isso também.

Khaiyria Mazin - Ghawazee

A seguir listo algumas das manifestações populares do universo MENAHT que entendo que são importantes para as dançarinas de ATS/FCBD, Tribal Fusion e Fusion Bellydance conhecerem, não só porque usamos os movimentos das danças, mas também porque usamos suas músicas para nossas apresentações. Saber de onde vem a música que você usa é tão importante quanto saber de onde vêm os movimentos. Nós artistas fazemos uma misturada danada e tudo bem. Apenas invista neste conhecimento para fazer o que você já faz com maior consciência e com menor risco de ofender alguém.

Nesta coluna “Folclore em foco” vamos abordar ainda diversas danças relacionadas aos países das regiões MENAHT, estejam atentas para mergulharmos juntas nestas manifestações populares fantásticas, ricas e que merecem nossa atenção e valorização.

Norte da África – Ghawazee; Hagalla; Awalen; Baladi; Shaabi egípcio; Said; Zaar; Nuba, Fazzani; Ouled Nail; Aalaoui; Chaabi marroquino

Oriente médio – Dabke; Kawleya

Turquia, Grécia (Hellas) e Balcãs – Roman Havasi; Chifititelli; Koulo; Chochek


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Folclore em Foco


Nadja El Balady (Rio de Janeiro-RJ) é diretora do grupo Loko Kamel Tribal Dance e proprietária do Oriental Studio de Dança no Rio de Janeiro, dedicando-se há 21 anos a estudar danças orientais. Professora de Dança do Ventre, American Tribal Style® e Tribal Fusion, com experiência internacional na Europa em shows e workshops. Estuda o Estilo Tribal desde 2005 e é uma das pioneiras da Fusão Tribal Brasileira. . Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >> 

[Old is Cool] Analisando o Tribal Old School - Parte 1

 por Mari Garavelo

Sejam muito bem-vindas e muito bem-vindos à coluna Old is Cool!

Urban Tribal















Não é nenhuma novidade o quanto sou apaixonada pela velha escola tribal e essa oportunidade que eu tenho de estar aqui escrevendo um pouco sobre minhas pesquisas e reflexões é muito especial para mim! Espero que a leitura seja igualmente especial para você.

Nesta coluna estamos localizando e analisando o que chamamos de Old School no Estilo Tribal. No post anterior falamos sobre o significado do termo e como ele se aplica à ideia de uma vanguarda. Falamos também sobre esta vanguarda estar localizada nos anos 2000 em sua maior potência a partir de uma “linha do tempo simplificada”.

Nessa década observamos uma eclosão de eventos e de personalidades importantes para a história do Tribal e é imprescindível lembrar que a análise que faço se atém ao Tribal Fusion e não ao ATSⓇ.

Dentre estes eventos estão a criação dos grupos Urban Tribal, Bellydance Superstars e The Indigo e uma imensa quantidade de experimentações na linguagem, quando antes o desenvolvimento desta era mais lento. O que pode ter ocasionado essa eclosão e de que forma ela influenciou a dança que fazemos hoje?

Para buscar estas respostas vamos analisar a estética e o desenvolvimento da dança de algumas das personagens mais importantes na minha pesquisa.

Vamos começar por Jill Parker. Jill fez parte das primeiras formações do FatChanceBellydance, deixou o grupo em 1996 e criou, em seguida, o UltraGypsy. Esse evento muitas vezes é tido como o marco do que chamamos de Tribal Fusion - o rompimento com o grupo de ATS e a transição para um novo estilo, experimentando fusionar a linguagem a outras inspirações. Jill trouxe inovações na estética, retirou os cholis, trabalhou solos e coreografias, utilizou músicas eletrônicas e se aproximou um pouco mais da dança do ventre conhecida nos EUA como cabaret.

Jill Parker foi também professora de grandes bailarinas da cena que mencionarei a seguir, sendo, então, imprescindível trazer um pouco da sua história para compreender a evolução do gênero. Ao fim da década de 90, a dança do seu grupo, o Ultra Gypsy, se aproximava muito mais do ATS do que o que conhecemos por Tribal Fusion hoje. Sendo assim, especificamente desse momento até meados de 2008, cabe classificá-la como old school.


Jill Parker e Ultra Gypsy, 2001
 

 Em seguida temos Frederique, ou Lady Fred, como também é conhecida. Ela foi uma das aparições mais interessantes que surgiram no Tribal. Foi inovadora, trouxe alguns contornos diferentes para aquela “dança do ventre tribal” que até então estava sempre conectada às referências estéticas orientais, conectada à estética do ATS. Ela se baseou em uma estética vitoriana, em trilhas sonoras de filmes e muita teatralidade.

A partir de tudo que já estudei, li e conversei com outras profissionais acerca deste tema, posso afirmar que há um consenso de que Frederique foi a primeira pessoa conhecida a fazer estas experimentações e não necessariamente que tenha sido a primeira dentre todas.

 

True Colors TV Presents Frederique: The Lady Fred from Rosalyn Fay on Vimeo.

Documentário curto sobre Lady Fred


E agora deixo vocês com bastante material para assistir e pensar: vamos falar de Heather Stants. Heather é muito essencial na trajetória do estilo Tribal. Fortemente influenciada por Jill Parker, de quem fora aluna anteriormente, sua dança e sua companhia adquiriram aos poucos um estilo próprio, a partir das experimentações que estavam sempre baseadas na demanda de cada apresentação que o grupo fazia. 

A imagem de Heather e do Urban Tribal nos remete à estética da dança contemporânea, com figurinos mais sóbrios, quase sem acessórios, mas nos primórdios do grupo as caracterizações eram bem diferentes. Aos poucos o turbante foi retirado a fim de ostentar os cabelos, os dreads ou adornar a cabeça de formas diferentes, assim como o vestuário, que também se adequou ao que o grupo desejava dançar.

As integrantes do Urban Tribal foram especialmente importantes na transformação da indumentária ao longo da história do estilo. Melodia Medley, por exemplo, estava inserida na cultura de festivais de música eletrônica e fazia performances com fogo. Surgiram daí algumas ideias sobre os figurinos, que foram, em seguida, adaptadas para facilitar movimentos no chão e trabalho de pernas. Melodia foi a responsável por trazer fama às calças de boca larga que marcaram época nos figurinos do Tribal. Mardi Love, que integrava também o grupo, confeccionava os seus próprios figurinos e os estilizava com dreads de lã para, cintos com borlas, búzios, dentre outros acessórios. O Urban Tribal passou por transformações significativas, experimentando e adaptando-se até chegar ao visual minimalista que caracterizou o grupo.

Abaixo está um vídeo do Youtube com um trecho de um DVD chamado Bellydance TV Vol.1 com entrevistas de Heather e integrantes do grupo. Também recomendo fortemente que, caso tenham acesso, assistam à entrevista que Heather cedeu ao Datura Online.

Em nosso próximo encontro aqui no blog falaremos sobre Bellydance Superstars, The Indigo, Mira Betz, etc. Também começaremos a tecer uma pequena análise sobre os anos 2000 na cultura pop e na tecnologia e como isso pode ter influenciado drasticamente o desenvolvimento do Tribal Fusion, ou como amo chamar, a dança do ventre tribal.

Não deixe de curtir e comentar o post e compartilhe com quem você sabe que adora uma velharia! :)

Nos vemos em breve!


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Old is Cool


Mari Garavelo (Osasco-SP) iniciou seus estudos em dança do ventre e Tribal Fusion em 2006 e desde então vem aprimorando seu trabalho através de aulas regulares e oficinas com diversos profissionais renomados nacionais e internacionais. Instrutora de Hatha Yoga e Yogaterapeuta formada pela Humaniversidade Holística de São Paulo com registro na Aliança do Yoga.  Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >> 

[Dançando Narrativas] A Dança dos Orixás

por Keila Fernandes

Hoje eu gostaria de começar fazendo uma pergunta: quando falamos em mitologia, quais são as primeiras imagens que vem à sua cabeça?


É muito comum pensarmos nos deuses greco-romanos, ou nórdicos, com lendas e aventuras muito difundidas no ocidente. Figuras presentes em filmes, livros e jogos.


Sabemos quem é Zeus, Hércules, Afrodite, Odin, Thor e as valquírias.


No entanto, por mais que esses personagens e suas histórias sejam interessantes, eles possuem certa distância de nossa realidade latinoamericana. Não que os mitos de outros países não tenham nada a nos dizer, muito pelo contrário. Mas as vezes focamos muito em culturas distantes, buscando coisas que podemos encontrar bem aqui, no nosso país.


Nas religiões de matriz africana presentes no Brasil, também encontramos uma mitologia complexa e rica na qual encontramos um panteão diverso, envolto por histórias de amor, conflitos, guerras e ensinamentos.


E por mitologia, entende-se o conjunto de narrativas sagradas presente em determinada cultura para explicar o mundo e a realidade (dá uma olhada nesse texto aqui, onde falo sobre isso).


Muitas vezes, nós não enxergamos os Orixás dos cultos afro brasileiros como parte de uma mitologia. Por conta do nosso contexto racista e colonial, esses mitos são considerados menores, sem a mesma importância que as narrativas sobre os deuses egípcios e gregos, por exemplo, com os quais temos contatos nas salas de aula.


Os Orixás são divindades antigas que possuem domínio sobre a natureza e são dela representações. Seus mitos trazem suas histórias, ensinamentos e formas de compreender a realidade.


No entanto, quando falamos deles e sua dança, não estamos falando apenas de uma mitologia antiga, mas também da religião e da cultura trazida pelos povos africanos escravizados,  e que sobreviveu aos séculos de opressão e violência e hoje fez parte da pluralidade religiosa brasileira.


Por isso, devemos ter muito cuidado e sensibilidade ao abordar tal assunto em nossa dança. 

E sim, é diferente de quando lidamos com mitologia nórdica, por exemplo, por conta do nosso contexto histórico. 


Durante três séculos o Brasil escravizou e explorou milhões de pessoas vindas de diferentes regiões da África.


Para consolidar a subjugação dessas pessoas, elas foram separadas de seus grupos étnicos, proibidas de falar seu idioma e viver suas crenças e espiritualidades. Foram forçadas a se converter ao cristianismo, ganharam nomes cristãos e não podiam ensinar seus costumes e tradições para seus filhos.


A permanência da cultura africana foi, e continua sendo, um ato de resistência do povo negro no Brasil. Por isso, quando abordamos traços dessas culturas na arte, devemos nos informar e entender que  a chamada mitologia africana é a base da religião e da espiritualidade de muitas pessoas. Espiritualidade essa que vem sendo demonizada e perseguida por séculos.

E por mais que as religiões afrobrasileiras tenham adeptos de diversas etnias, a sua origem é negra, e por isso foi estigmatizada e ainda é alvo de de ataques e discriminação de cunho racista.


Xangô, Iemanjá e Iansã, Orixás populares no Brasil. Arte de: LAMBUJA - http://lambuja.com.br/


As religiões de matriz africana possuem uma ligação muito forte com a dança e a música. Isso porque os mitos e narrativas dos povos escravizados sempre foram passados de forma oral, por meio de histórias e canções.


A dança é a maneira com a qual os Orixás se comunicam com os humanos, narrando suas trajetórias e ensinamentos por meio de seus movimentos.


Mas é possível trabalhar a dança dos Orixás no Tribal Fusion? Como trazer a representação de um Orixá de maneira coerente e respeitosa?


Como sempre, a nossa boa e velha pesquisa vai ajudar bastante na criação de uma coreografia baseada na mitologia dos povos africanos.


Além disso, é importante buscar referências históricas, na dança afro, em bailarinos que trabalham essa temática, em trabalhos antropológicos e na própria mitologia.


Augusto Omolú foi um importante bailarino, coreógrafo e pesquisador da Dança dos Orixás, e a trazia para o seu trabalho artístico, estudando os movimentos de cada divindade e significados, inspirando-se neles e combinando-os com a sua dança e levando-os para o palco.


“O Odin [Teatret], os atores, por exemplo, criam e improvisam sempre buscando algum elemento, eu tenho os orixás. Se eu vou criar uma partitura para um personagem, eu posso utilizar um ou dois orixás e a partir de então improvisar com os elementos. Eu procuro conversar a energia de cada orixá, improvisei [demonstra o movimento] não mostro o Ogum, mas a energia de Ogum [sinaliza com as mãos indicando o movimento da espada de Ogum].” (Augusto Omolú)


Mercedes Baptista, foi a primeira bailarina negra a integrar o corpo de baile do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Ela elaborou um repertório próprio de dança afro-brasileira com base nas observações dos movimentos dos Orixás nos terreiros.


Ela apontava a importância de dançar como bailarina e não como Orixá. Criar outros movimentos e não emular o que o Orixá faz no terreiro.


A bailarina Mercedes Baptista, em novembro de 1955. Arquivo Nacional. E o bailarino e coreógrafo Augusto Omolú, em sua performance Oro de Otelo.


As danças das religiões de matriz africana contam histórias, e os movimentos dos Orixás falam muito sobre suas características e os elementos aos quais estão ligados. E conhecendo esses elementos e seus significados é possível criar uma coreografia inspirada em um Orixá que funcione sem ser caricata ou desrespeitosa.


E sempre é necessário questionarmos os motivos pelos quais estamos dançando determinada divindade. Quais traços queremos ressaltar, quais movimentos usaremos para destacá-los, qual o tipo de música combina com o personagens e as características trabalhadas. 


Para escrever esse texto eu conversei com a Monni Ferreira, que foi quem me sugeriu falar sobre esse tema, além de ter contribuído com dicas e seu parecer sobre o texto e contribuindo com a sua visão sobre a Dança dos Orixás e como é importante entender a pluralidade de características dessas divindades.


“Quando pensamos na dança afro e consequentemente nas danças dos orixás é preciso ter em mente que muitas das movimentações características foram construídas dentro dos terreiros de candomblé para representar as divindades, os Orixás. Por isso é tão importante entender a origem e os significados antes de tentar reproduzir as movimentações corporais apenas como uma repetição de movimentos. Quando pensamos em Iansã, uma das mais conhecidas divindades da cultura afro-brasileira, automaticamente vem na nossa mente uma mulher vestida de vermelho, rodando, gritando e girando sua saia de roda com as mãos na cintura. Esta é a caracterização mais conhecida de Iansã, também chamada de Oiá e que se difere da que conhecemos quando ela está em sua qualidade de Igbalé, a rainha dos espíritos dos mortos. Oiá Igbalé veste branco e é responsável por conduzir os eguns na hora do desencarne, indicando o caminho de cada alma desprendida de seu corpo.


Outra divindade muito conhecida e cultuada por nós é Iemanjá, popularmente caracterizada como uma mulher branca, jovem, magra, de longos cabelos, muito calma e sempre usando roupas nas cores azul e prata. Ocorre que Iemanjá é a mãe dos orixás e como mãe ela defende e protege os seus filhos. Na qualidade de Sabá, é a Iemanjá mais velha, sábia, rabugenta, voluntariosa, fiadeira de algodão e capaz de grandes amarrações. Orixá das águas sagradas, a Grande Mãe, Iemanjá Sabá costuma usar branco e prata para simbolizar a sua energia que vem das espumas brancas do mar.” (Monni Ferreira)


Então, como tenho falado nos textos anteriores, a pesquisa e a busca por referências são as maiores aliadas na hora de se representar uma divindade, ainda mais quando essa divindade faz parte da crença de milhares de pessoas cuja religião tem um histórico de perseguição sistemático.


É sempre importante ter em mente que quando trabalhamos com divindades e mitologias (e eu estou falando aqui da dança como manifestação artística, sem cunho religioso), devemos entender que estamos mergulhando em uma outra cultura e, assim, em uma outra forma de ver e experienciar o mundo.


Para finalizar, gostaria de agradecer a Monni que, além de me sugerir o tema, contribuiu para o texto com o seu ponto de vista, além de indicações de trabalhos, vídeos e textos. 


Obs: não citei no texto, mas vale muito a pena conhecer o Balé Folclórico da Bahia, que pesquisa e trabalha com danças folclóricas brasileiras, dança afro e dança contemporânea, celebrando a cultura nacional com uma qualidade técnica e de produção altíssima. Além de ser uma fonte muito rica para o estudo dessas danças.


| Site |



A Monni também me indicou o Grupo Corpo, uma companhia de dança incrível de Belo Horizonte que trabalha, a partir de um repertório de músicas eruditas, danças clássicas e populares, incluindo a dança afro. 

| Site |



E como não podia deixar de ser, quero indicar o trabalho de duas bailarinas brasileiras que trabalham os movimentos dos Orixás e a dança afro em sua dança.


Monni Ferreira: Coreografia Sabá Odoyá



Kilma Farias: Improviso Oxum




Referências:


LIMA, G.R. F. Ensino da Dança dos Orixás e reflexões sobre identidade de gênero a partir do movimento. Conexões Paradoxais: Uso Impróprio. UFF, Niterói, 2016. Disponível em: <http://www.artes.uff.br/uso-improprio/publicacoes/conexoes-paradoxais.pdf>


BARBARA, R.. A dança das Aiabás: Dança, corpo e cotidiano das mulheres do candomblé. Tese (Doutorado em Sociologia) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo. p. 201. 2002.


Souza, J. R. de. (2015). A Dramaturgia da Dança dos Orixás: Entrevista com Augusto Omolú. Urdimento - Revista De Estudos Em Artes Cênicas, 1(24), 237 - 246. https://doi.org/10.5965/1414573101242015237


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Dançando Narrativas


Keila Fernandes (Curitiba-PR) é escritora, professora de história e  historiadora, especialista na área de Religiões e Religiosidades e História Antiga e Medieval. É aluna da bailarina e professora Aerith Asgard e co-diretora do Asgard Tribal Co. Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >> 

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