[Dançando Narrativas] A Dança dos Orixás

por Keila Fernandes

Hoje eu gostaria de começar fazendo uma pergunta: quando falamos em mitologia, quais são as primeiras imagens que vem à sua cabeça?


É muito comum pensarmos nos deuses greco-romanos, ou nórdicos, com lendas e aventuras muito difundidas no ocidente. Figuras presentes em filmes, livros e jogos.


Sabemos quem é Zeus, Hércules, Afrodite, Odin, Thor e as valquírias.


No entanto, por mais que esses personagens e suas histórias sejam interessantes, eles possuem certa distância de nossa realidade latinoamericana. Não que os mitos de outros países não tenham nada a nos dizer, muito pelo contrário. Mas as vezes focamos muito em culturas distantes, buscando coisas que podemos encontrar bem aqui, no nosso país.


Nas religiões de matriz africana presentes no Brasil, também encontramos uma mitologia complexa e rica na qual encontramos um panteão diverso, envolto por histórias de amor, conflitos, guerras e ensinamentos.


E por mitologia, entende-se o conjunto de narrativas sagradas presente em determinada cultura para explicar o mundo e a realidade (dá uma olhada nesse texto aqui, onde falo sobre isso).


Muitas vezes, nós não enxergamos os Orixás dos cultos afro brasileiros como parte de uma mitologia. Por conta do nosso contexto racista e colonial, esses mitos são considerados menores, sem a mesma importância que as narrativas sobre os deuses egípcios e gregos, por exemplo, com os quais temos contatos nas salas de aula.


Os Orixás são divindades antigas que possuem domínio sobre a natureza e são dela representações. Seus mitos trazem suas histórias, ensinamentos e formas de compreender a realidade.


No entanto, quando falamos deles e sua dança, não estamos falando apenas de uma mitologia antiga, mas também da religião e da cultura trazida pelos povos africanos escravizados,  e que sobreviveu aos séculos de opressão e violência e hoje fez parte da pluralidade religiosa brasileira.


Por isso, devemos ter muito cuidado e sensibilidade ao abordar tal assunto em nossa dança. 

E sim, é diferente de quando lidamos com mitologia nórdica, por exemplo, por conta do nosso contexto histórico. 


Durante três séculos o Brasil escravizou e explorou milhões de pessoas vindas de diferentes regiões da África.


Para consolidar a subjugação dessas pessoas, elas foram separadas de seus grupos étnicos, proibidas de falar seu idioma e viver suas crenças e espiritualidades. Foram forçadas a se converter ao cristianismo, ganharam nomes cristãos e não podiam ensinar seus costumes e tradições para seus filhos.


A permanência da cultura africana foi, e continua sendo, um ato de resistência do povo negro no Brasil. Por isso, quando abordamos traços dessas culturas na arte, devemos nos informar e entender que  a chamada mitologia africana é a base da religião e da espiritualidade de muitas pessoas. Espiritualidade essa que vem sendo demonizada e perseguida por séculos.

E por mais que as religiões afrobrasileiras tenham adeptos de diversas etnias, a sua origem é negra, e por isso foi estigmatizada e ainda é alvo de de ataques e discriminação de cunho racista.


Xangô, Iemanjá e Iansã, Orixás populares no Brasil. Arte de: LAMBUJA - http://lambuja.com.br/


As religiões de matriz africana possuem uma ligação muito forte com a dança e a música. Isso porque os mitos e narrativas dos povos escravizados sempre foram passados de forma oral, por meio de histórias e canções.


A dança é a maneira com a qual os Orixás se comunicam com os humanos, narrando suas trajetórias e ensinamentos por meio de seus movimentos.


Mas é possível trabalhar a dança dos Orixás no Tribal Fusion? Como trazer a representação de um Orixá de maneira coerente e respeitosa?


Como sempre, a nossa boa e velha pesquisa vai ajudar bastante na criação de uma coreografia baseada na mitologia dos povos africanos.


Além disso, é importante buscar referências históricas, na dança afro, em bailarinos que trabalham essa temática, em trabalhos antropológicos e na própria mitologia.


Augusto Omolú foi um importante bailarino, coreógrafo e pesquisador da Dança dos Orixás, e a trazia para o seu trabalho artístico, estudando os movimentos de cada divindade e significados, inspirando-se neles e combinando-os com a sua dança e levando-os para o palco.


“O Odin [Teatret], os atores, por exemplo, criam e improvisam sempre buscando algum elemento, eu tenho os orixás. Se eu vou criar uma partitura para um personagem, eu posso utilizar um ou dois orixás e a partir de então improvisar com os elementos. Eu procuro conversar a energia de cada orixá, improvisei [demonstra o movimento] não mostro o Ogum, mas a energia de Ogum [sinaliza com as mãos indicando o movimento da espada de Ogum].” (Augusto Omolú)


Mercedes Baptista, foi a primeira bailarina negra a integrar o corpo de baile do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Ela elaborou um repertório próprio de dança afro-brasileira com base nas observações dos movimentos dos Orixás nos terreiros.


Ela apontava a importância de dançar como bailarina e não como Orixá. Criar outros movimentos e não emular o que o Orixá faz no terreiro.


A bailarina Mercedes Baptista, em novembro de 1955. Arquivo Nacional. E o bailarino e coreógrafo Augusto Omolú, em sua performance Oro de Otelo.


As danças das religiões de matriz africana contam histórias, e os movimentos dos Orixás falam muito sobre suas características e os elementos aos quais estão ligados. E conhecendo esses elementos e seus significados é possível criar uma coreografia inspirada em um Orixá que funcione sem ser caricata ou desrespeitosa.


E sempre é necessário questionarmos os motivos pelos quais estamos dançando determinada divindade. Quais traços queremos ressaltar, quais movimentos usaremos para destacá-los, qual o tipo de música combina com o personagens e as características trabalhadas. 


Para escrever esse texto eu conversei com a Monni Ferreira, que foi quem me sugeriu falar sobre esse tema, além de ter contribuído com dicas e seu parecer sobre o texto e contribuindo com a sua visão sobre a Dança dos Orixás e como é importante entender a pluralidade de características dessas divindades.


“Quando pensamos na dança afro e consequentemente nas danças dos orixás é preciso ter em mente que muitas das movimentações características foram construídas dentro dos terreiros de candomblé para representar as divindades, os Orixás. Por isso é tão importante entender a origem e os significados antes de tentar reproduzir as movimentações corporais apenas como uma repetição de movimentos. Quando pensamos em Iansã, uma das mais conhecidas divindades da cultura afro-brasileira, automaticamente vem na nossa mente uma mulher vestida de vermelho, rodando, gritando e girando sua saia de roda com as mãos na cintura. Esta é a caracterização mais conhecida de Iansã, também chamada de Oiá e que se difere da que conhecemos quando ela está em sua qualidade de Igbalé, a rainha dos espíritos dos mortos. Oiá Igbalé veste branco e é responsável por conduzir os eguns na hora do desencarne, indicando o caminho de cada alma desprendida de seu corpo.


Outra divindade muito conhecida e cultuada por nós é Iemanjá, popularmente caracterizada como uma mulher branca, jovem, magra, de longos cabelos, muito calma e sempre usando roupas nas cores azul e prata. Ocorre que Iemanjá é a mãe dos orixás e como mãe ela defende e protege os seus filhos. Na qualidade de Sabá, é a Iemanjá mais velha, sábia, rabugenta, voluntariosa, fiadeira de algodão e capaz de grandes amarrações. Orixá das águas sagradas, a Grande Mãe, Iemanjá Sabá costuma usar branco e prata para simbolizar a sua energia que vem das espumas brancas do mar.” (Monni Ferreira)


Então, como tenho falado nos textos anteriores, a pesquisa e a busca por referências são as maiores aliadas na hora de se representar uma divindade, ainda mais quando essa divindade faz parte da crença de milhares de pessoas cuja religião tem um histórico de perseguição sistemático.


É sempre importante ter em mente que quando trabalhamos com divindades e mitologias (e eu estou falando aqui da dança como manifestação artística, sem cunho religioso), devemos entender que estamos mergulhando em uma outra cultura e, assim, em uma outra forma de ver e experienciar o mundo.


Para finalizar, gostaria de agradecer a Monni que, além de me sugerir o tema, contribuiu para o texto com o seu ponto de vista, além de indicações de trabalhos, vídeos e textos. 


Obs: não citei no texto, mas vale muito a pena conhecer o Balé Folclórico da Bahia, que pesquisa e trabalha com danças folclóricas brasileiras, dança afro e dança contemporânea, celebrando a cultura nacional com uma qualidade técnica e de produção altíssima. Além de ser uma fonte muito rica para o estudo dessas danças.


| Site |



A Monni também me indicou o Grupo Corpo, uma companhia de dança incrível de Belo Horizonte que trabalha, a partir de um repertório de músicas eruditas, danças clássicas e populares, incluindo a dança afro. 

| Site |



E como não podia deixar de ser, quero indicar o trabalho de duas bailarinas brasileiras que trabalham os movimentos dos Orixás e a dança afro em sua dança.


Monni Ferreira: Coreografia Sabá Odoyá



Kilma Farias: Improviso Oxum




Referências:


LIMA, G.R. F. Ensino da Dança dos Orixás e reflexões sobre identidade de gênero a partir do movimento. Conexões Paradoxais: Uso Impróprio. UFF, Niterói, 2016. Disponível em: <http://www.artes.uff.br/uso-improprio/publicacoes/conexoes-paradoxais.pdf>


BARBARA, R.. A dança das Aiabás: Dança, corpo e cotidiano das mulheres do candomblé. Tese (Doutorado em Sociologia) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo. p. 201. 2002.


Souza, J. R. de. (2015). A Dramaturgia da Dança dos Orixás: Entrevista com Augusto Omolú. Urdimento - Revista De Estudos Em Artes Cênicas, 1(24), 237 - 246. https://doi.org/10.5965/1414573101242015237


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Dançando Narrativas


Keila Fernandes (Curitiba-PR) é escritora, professora de história e  historiadora, especialista na área de Religiões e Religiosidades e História Antiga e Medieval. É aluna da bailarina e professora Aerith Asgard e co-diretora do Asgard Tribal Co. Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >> 
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