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[Fusion Brasil] Dança Afro como Dança Moderna Brasileira

por Kilma Farias


Nossas danças populares brasileiras me são percebidas como herança do processo de colonização. E, em se tratando das danças afro-brasileiras, as poéticas e estéticas trazem influências das referências dos bailarinos que trouxeram a Dança para as artes do espetáculo, palcos e teatros de revista.


Dessa forma, compreendo nossa dança afro-brasileira como uma dança Moderna Brasileira. Vamos lá!


Temos a compreensão de que um corpo que dança pode assumir diversas funções. Dançar em caráter social, dançar como ritual, dançar como entretenimento para uma plateia, dançar no palco enquanto obra de arte, dançar para protestar, dançar para celebrar, etc. Em síntese temos duas funções básicas da dança: danças de caráter social, danças para palco.


As danças populares serviam ao caráter social e, em 1851 a italiana Maria Baderna leva pela primeira vez uma dança popular ao palco do Teatro Santa Isabel em Recife-PE, fazendo o trânsito de caráter social para palco da dança lundu. O lundu chocou a sociedade da época que a considerou uma dança lasciva, dando origem ao termo “baderna” como sinônimo de escândalo.


Bem mais tarde, a russa Maria Olenewa (1927) ajuda a fundar a Escola Municipal de Bailado do Rio de Janeiro, participando ainda da criação da Escola do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Atos de fundamental importância para a dança enquanto área específica de arte e conhecimento.


Observem a influência europeia na construção da nossa dança brasileira. Quando essa influência não acontece de forma direta, acontece de forma indireta como veremos logo mais com outras referências.


O fato é que foi durante o Modernismo que as danças populares e afro-brasileiras ganharam evidência e incentivo para pesquisas.


Eros Volúsia

A primeira bailarina a dançar descalça no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, influenciada pela bailarina da dança Moderna Americana, Isadora Duncan, foi Eros Volúsia (1940). Eros também foi a primeira bailarina a sambar em sapatilha de ponta, sendo, na minha visão, a primeira a fusionar danças brasileiras com o balé em um palco de tamanho porte como o teatro Municipal do RJ.


Carmen Miranda

Talvez você nunca tenha ouvido falar em Eros Volúsia, mas em Carmen Miranda com certeza já ouviu. Era na Eros que a portuguesa Carmen se inspirava com seus barangandãs e badulaques. 


Eros teve suas pesquisas financiadas pelo Serviço Nacional de Teatro, que fazia parte do movimento modernista, assim, Eros desenvolve uma espécie de balé brasileiro, o Bailado Nacional.

Chinita Ullman

Nessa mesma época, Mário de Andrade desenvolvia a Missão de Pesquisas Folclóricas no Norte e Nordeste brasileiro, registrando o que ele chamava de Danças Dramáticas. Dessa pesquisa, surge o espetáculo de dança Quadros Amazônicos com direção musical de Villa Lobos. Na direção coreográfica, Chinita Ullman.


Mary Wigman

Chinita era natural de Porto Alegre, e, distante do Norte e Nordeste, se via na missão de retratar figuras folclóricas como a Iara, Saci, Curupira, Boitatá, Mula sem Cabeça, etc. Pra completar, Chinita tinha sido aluna de Mary Wigman na Alemanha. Mary Wigman, por sua vez, foi discípula de Rudolf Laban, pioneiro da Dança Expressionista Alemã, Dança Teatro, e sistematizador do Método Laban de estudo do movimento.


Isso me leva a refletir que produzimos uma identidade de cultura popular idealizada, que forja uma dança moderna brasileira com traços da dança expressionista alemã.


E a nossa dança afro-brasileira?


Mercedes Baptista

Uma aluna negra de Eros Volúsia consegue o feito de ser a primeira bailarina negra do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Ela é Mercedes Baptista (1950) e cria o balé de pé no chão.

Katherine Dunham

As influências de Mercedes vêm do candomblé e da Dança Afro Moderna Americana, pois ela foi aluna de Katherine Dunham quando fez residência nos Estados Unidos.


O termo Danças Afro-brasileiras vem com o aluno de Mercedes, Walter Ribeiro (1956) onde ele organiza movimentos por grupos; saltos, giros, deslocamentos, etc. Na minha compreensão ainda um trabalho de Mercedes Baptista, embora já em desdobramentos.


Hoje quando vemos um balé arfo como o corpo de baile de Daniela Mercury, por exemplo, podemos ter a certeza de que ali tem Mercedes Baptista, mas também Eros Volúsia, Chinita Ullmann, Maria Olenewa, Maria Baderna e tantas outras Marias que ousaram traduzir, fusionar, idealizar, recriar, badernar.


Hoje, no Fusion Brasil, quando fusionamos o Afro, honramos todas essas pessoas com seus saberes, corpos e ideologias, sabendo que nossa brasilidade foi construída através dessas pessoas e que nós somos mais um a colaborar com todo esse amálgama na construção de uma Dança Afro Moderna Brasileira.

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Fusion Brasil - Identidade no Corpo

Kilma Farias (João Pessoa-PB) é bailarina, professora, coreógrafa, produtora e pesquisadora na área da dança. É formada em Licenciatura em Dança e Jornalismo pela Universidade Federal da Paraíba. Mestra em Ciências das Religiões pela UFPB, desenvolveu dissertação voltada para a relação entre presença cênica e espiritualidade na Dança Tribal.  Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >> 

[Fusion Brasil] Corpo e memória no Fusion Brasil

 por Kilma Farias

Estandarte do Coletivo Fusion Brasil - direção de Kilma Farias

Durante os anos de pesquisa com o Tribal Brasil (Fusion Brasil) me deparei com múltiplas memórias; fossem elas nos corpos das bailarinas e bailarinos, fossem as memórias geradas no grupo de dança ou ainda as memórias tomadas de empréstimo pelas comunidades a serem estudados na cultura popular.

Dessa forma, fomos esboçando caminhos para desenvolvermos procedimentos criativos e compositivos em dança ao mesmo tempo em que trabalhávamos nosso autoconhecimento, o que chamo de “arte de si”.

Assim, deu-se a ver uma memória ligada à percepção individual, mais volátil, e que assume caráter de atualização do sujeito e da sua história.


Estandarte da Andreza Tenório


O tempo aqui é o próprio tempo da arte, o tempo do elemento éter enquanto espaço, um tempo “extemporâneo” que tá além da contemporaneidade e perpassa todos os tempos numa grande teia, um amálgama. Nesse tempo, destaca-se a impermanência das coisas, inclusive da própria memória; um tempo não linear e que só é possível senti-lo no aqui e agora do presente. É a completa entrega do ser que dança; entrega ao seu corpo cênico, ao seu estado de presença na dança-vida.


E como articulamos essas memórias para compor dança?


Sentindo, observando, expressando, traduzindo, criando, vivendo.


Atualmente, na turma de Fusion Brasil online, estamos trabalhando o Maracatu Nação no Fusion Brasil. E resolvemos, cada uma, produzir um estandarte que trouxesse nossas marcas de vida e memórias sobre o que estava sendo vivenciado no momento de vida de cada uma e na turma. O trabalho é terapêutico, pois olhar pra dentro e trazer pra fora através de fitas, tintas, miçangas e palavras, faz a pessoa se pensar a si mesma e se expressar verdadeiramente.


Estandarte da Karine Neves


O processo seguinte foi a construção das danças a partir dos estandartes construídos, dando sentimento e movimento às palavras estampadas em cada um deles. Também construímos um estandarte coletivo, nutrindo o pensamento de uma memória de grupo coletiva. 

Para os procedimentos compositivos em dança, utilizamos o Tanz-Ton-Wort (Dança-Tom-Palavra) de Laban, método que mais tarde inspira Pina Bausch em sua Dança Teatro com seu interesse pelo cotidiano, pela fragmentação do sujeito, pela repetição, pelas experiências de cada bailarino, pelas desconstruções e reconstruções, pelas narrativas.


Estandarte da Raquel Silveira

E assim, também seguimos no Fusion Brasil, transformando em dança nossas próprias histórias enquanto corpos estéticos e sociais, mas principalmente como seres humanos que se transformam através da própria arte.

Os solos da turma produzidos com inspiração no maracatu e uma videodança coletiva sobre o mesmo tema estão previstos para serem apresentados nas redes sociais no final de agosto. Acompanha a gente por lá!


Estandarte da Sirlei Oliveira

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Fusion Brasil - Identidade no Corpo

Kilma Farias (João Pessoa-PB) é bailarina, professora, coreógrafa, produtora e pesquisadora na área da dança. É formada em Licenciatura em Dança e Jornalismo pela Universidade Federal da Paraíba. Mestra em Ciências das Religiões pela UFPB, desenvolveu dissertação voltada para a relação entre presença cênica e espiritualidade na Dança Tribal.  Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >> 

[Fusion Brasil] Conheça o universo do Fusion Brasil e saiba como fazer parte

 por Kilma Farias

Kilma Farias  | Fotografia por Tareb

O gradativo autoconhecimento que o bailarino que se busca tem acesso pelas práticas de Fusion Brasil proporciona um estado de presença cênica, criando um tempo e um espaço extracotidianos: a dimensão da arte. Esse estado de presença, também chamado de corpo cênico, ocorre através de múltiplas relações que se estabelecem no bailarino e em quem observa a dança.

As relações podem ser:

- do bailarino consigo mesmo;
- do bailarino com seus diferentes observadores;
- do bailarino com o espaço físico; do bailarino com o espaço constituído pela cena e seus elementos como luz, figurino, cenografia e musicalidade;
- como também do observador consigo mesmo;
- do observador com o bailarino; do observador com os outros observadores (se houver);
- do observador com o espaço físico; do observador com o espaço constituído pela cena.

São múltiplas as percepções que envolvem uma dança, mas meu foco no Fusion Brasil está na relação do bailarino com o cuidado de si mesmo e como as memórias individuais e coletivas podem ser acessadas nesse processo, pensando o corpo cênico como uma “verdade” da expressão humana, onde movimentos internos podem corresponder a movimentos externos. Assim, encontro um vasto campo para investigar se o movimento do corpo e a subjetividade do sujeito são aspectos distintos de uma mesma realidade.


Sirlei Oliveira | Fotografia por Hebert Silva

Desse modo, o bailarino pode ser capaz de tornar visível o invisível em si mesmo? E com o praticar-se através da dança, esse invisível poderia ir se mostrando cada vez mais, trazendo a possibilidade do bailarino conhecer-se em profundidade? Essa espiritualidade que perpassa pelo corpo seria capaz de colocar o sujeito em contato consigo mesmo? 


Nesses 18 anos de pesquisas em Tribal Brasil, hoje Fusion Brasil, eu respondo sem sombra de dúvidas que sim. Pois vejo alunas chegando nas turmas com bloqueios físicos e baixa autoestima, acreditando que não dançam bem e que nunca vão dançar porque estão acima do peso ou se acham velhas, ou ainda porque não fazem movimentos perfeitos e se acham desengonçadas. Com um mês de prática vejo alunas soltas, criado sequências coreográficas e se valorizando no seu ser de sujeito, apoiando umas às outras. Pra mim isso é gratificante e me faz ter o coração leve saber que estou à serviço de uma dança que liberta. Acredito que a perfeição é algo que não está atrelado à limpeza técnica. Para Rudolf Laban (1879-1958), uma das maiores referências da dança do século XX, “a fonte da qual devem brotar a perfeição e o domínio final do movimento é a compreensão daquela parte da vida interior do homem de onde se origina o movimento e a ação.” (LABAN, 1978, p. 11). Laban olha para a interioridade, para o mais íntimo do sujeito para falar em dança, em arte do movimento. Embora contenha em sua teoria elementos essencialistas, podemos identificar um pensamento de unidade em parte do seu legado que nos ajuda na compreensão de corpo e movimento no Fusion Brasil.


Mari Pessoto  (fotografia: acervo pessoal)

Além dessa compreensão, trazemos as memórias individual e coletiva para dialogar com a prática do estilo, tema que já dialogamos em postagens passadas. Desse modo, desenvolvemos o respeito e honra à ancestralidade, assim como o respeito e honra às mulheres que caminham junto no processo, na qual chamamos de manas ou irmãs, pondo em prática a instância da sororidade.


A produção coletiva é estimulada, assim como a produção individual. Para tanto, desenvolvemos videodanças coletivas a partir de cada tema estudado, assim como vamos propor festivais online para fomentar a criação de solos, conferindo cada vez mais segurança à aluna para que se posicione frente à arte-vida.


Karine Neves | Fotografia por Nando Espinosa

No momento temos duas opções de participação nos estudos e pesquisas em Fusion Brasil. Aulas regulares todas as segundas via facebook através de chamadas ao vivo que ficam gravadas. Esse formato compõe a turma de Especialização em Fusion Brasil e através dessa turma fomentamos a produção de trabalhos coletivos e individuais. E a Turma de Formação em Fusion Brasil que já se encontra no seu oitavo ano.

Ficou com vontade de participar? Então se entregue. E saiba que estarás movendo não apenas teu corpo físico, mas principalmente teus corpos sutis até trazer transformações positivas ao seu ser mais profundo.


Seja bem-vinda, bem-vindo, bem-vinde!

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Tribal Brasil - Identidade no Corpo


Kilma Farias (João Pessoa-PB) é bailarina, professora, coreógrafa, produtora e pesquisadora na área da dança. É formada em Licenciatura em Dança e Jornalismo pela Universidade Federal da Paraíba. Mestra em Ciências das Religiões pela UFPB, desenvolveu dissertação voltada para a relação entre presença cênica e espiritualidade na Dança Tribal.  Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >> 

[Tribal Brasil] Brasil, do Tribal ao Fusion

 por Kilma Farias


"Tribal" por Shiko

A bellydancer que sente o sangue ferver quando escuta uma evolução de bateria de Maracatu ou o som ancestral de um berimbau, com certeza já dançou um Tribal Brasil.

Venho desenvolvendo esse estilo com a Cia Lunay, grupo que coordeno e que comemorou no último 19 de abril o marco histórico de 18 anos de produção em dança, militando culturalmente de modo ininterrupto.

Particularmente tenho o maior carinho pela nomenclatura “Tribal”. Sinto e compreendo esse termo como algo que agrega, que aproxima, que acolhe numa identidade – um só corpo, uma só tribo.

Aqui na Paraíba, estado que faço morada nessa desafiadora travessia que é viver, temos dois povos, ainda muito denominados de tribos: Os Potiguaras e os Tabajaras. E o encanto que é vivenciar os saberes desses povos, dessas tribos, emergir nas histórias, cantos, juremas, artes e visões de mundo. Entender a tradição como algo vivo que dialoga também com as tribos urbanas é de grande valia para não cair no romantismo da tradição estanque.

"Yanomami"por Shiko

É justamente dessa problematização do termo “Tribo” como algo que ficou parado no tempo e no espaço e por isso não evoluiu sendo algo menor, à margem do mundo, que as discussões acerca da nomenclatura “Tribal Fusion” ganharam corpo e espaço em nosso meio.

Apoio a epistemologia decolonial por compreender que parte de nossa iniciativa romper com as colonialidades, produzindo formas múltiplas de pensar o mundo em todos os seus campos – econômico, político, artístico-cultural, relacional, educacional, entre tantas outras esferas. Que possamos também com nossa dança romper com verticalizações históricas que trazem heranças malditas.

Nessa compreensão, passamos a utilizar a partir de então o termo “Fusion Brasil”, desapegando do querido, porém problemático, termo “Tribal”.

“Fusion” significa “fusão” na maioria das línguas latinas que têm o espanhol como idioma, assim como significa o mesmo na língua inglesa. Desse modo, podemos construir uma ponte de mão dupla comum às Américas do Sul ao Norte. Trazendo um pensamento de equanimidade entre culturas e visões de mundo.

c.c.eletronicband por Shiko

Somos Fusion – uma amálgama de traduções, resistências e (re)existências!

As culturas popular e afro-brasileira, fonte base de pesquisa para o agora “Fusion Brasil” buscam olhar para as histórias não oficiais da dança. A diversidade aqui importa e não há juízo hierárquico de valor. Há respeito, apreciação, equanimidade e acolhimento. Não só no âmbito da nossa dança, mas na nossa construção de sujeito como seres humanos mais plenos e integrais.

Abraçar o termo “Fusion” é acolher e não segregar. É compreender que cada corpo é ator da tradução do mundo. E que toda tradução é legítima, é liberdade poética, é estética de revolução.

Que venha o “Fusion Brasil”!

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Tribal Brasil - Identidade no Corpo


Kilma Farias (João Pessoa-PB) é bailarina, professora, coreógrafa, produtora e pesquisadora na área da dança. É formada em Licenciatura em Dança e Jornalismo pela Universidade Federal da Paraíba. Mestra em Ciências das Religiões pela UFPB, desenvolveu dissertação voltada para a relação entre presença cênica e espiritualidade na Dança Tribal.  Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >> 

[Tribal Brasil] Relações entre Espiritualidade e Corpo Cênico no Tribal Brasil

por Kilma Farias

Solo "Es passos Entre Mundos" de Kilma Farias,
onde discutia essa ligação entre dança e espiritualidade.
Foto de Milena Medeiros


A proposta do Tribal Brasil na Cia Lunay, grupo que coordeno há 18 anos, é acolher as memórias e danças do estilo Tribal Fusion, assim como acolher as próprias memórias e as das danças populares e afrobrasileiras, buscando renovações no fazer da dança e ao mesmo tempo renovações em quem dança. Esse transformar-se para ter acesso a sua verdade é bem desenvolvido por Foucault ao refletir sobre o “cuidado de si”. Prática essa que tem estreita relação com a arte.

A intersecção entre o pensamento de Foucault e a reflexão artística é particularmente presente quando se trata de considerar a arte como campo que coloca em jogo as possibilidades de reinvenção do próprio artista, pretendendo assim contaminar ou convidar o público a compartilhar da sua experiência ou, para utilizar uma expressão do autor, a arte vista como um lugar em que se desencadeiam processos de subjetivação. (QUILICI, 2015, p. 151).

Os processos de subjetivação corroboram para a construção do sujeito “extemporâneo”, partindo da compreensão das redes de poder instauradas pelas instituições e construção da atual realidade sociopolítica, econômica e cultural, visando um olhar de ultrapassamento onde o sujeito, consciente do jogo, desenvolve modos de estar no mundo mais liberto.

Podemos pensar na ideia de um corpo como memória, sendo esse corpo um “organismo biológico talhado no tempo”. E pergunto: talhado por quem? Talhado pelas relações, dos diálogos que travamos com os corpos de outras bailarinas, e no plano das ideias mentais. Talhado ainda pelas influências que nos atravessam. Isso confere uma forma de perceber a dança como ação de transformação. 

Neste sentido, podemos pensar numa ideia de imaginário da dança como um mestre, um guia, como algo superior a si mesmo que nos transforma.

Solo "Es passos Entre Mundos" de Kilma Farias,
onde discutia essa ligação entre dança e espiritualidade.
Foto de Milena Medeiros

A transformação surge no próprio fazer da dança Tribal Brasil, dançando nossos femininos através de deusas, personificações de movimentos da natureza, Iabás, corporeidades femininas que utilizam a saia como o coco, o carimbó, o tambor de crioula, samba de caboclo, jongo, etc.

Seja de uma forma ou de outra, reconhece as lacunas, os espaços de silêncio gerados nessa dupla autobusca: enquanto sujeito que se transforma e enquanto artista que produz novas configurações na própria dança.               

O transformar traz uma condição de auto-observação, pois se assim não procedemos, podemos cair no profundo caos, seja como sujeito e/ou artista. Por isso, mais importante do que simplesmente transformar é estar atento para as qualidades dessas mudanças. Uma vez que a mudança é inevitável devido a estarmos imersos numa realidade de impermanência, precisamos estar atentos para identificá-la seja a passos lentos ou intempestivamente causando rupturas. Devemos estar atentos ainda para percebermos em que níveis essa mudança opera.

É necessário, portanto, considerar a qualidade das diferenças desencadeadas, o modo com que se ultrapassa a norma. Este me parece um critério importante quando se trata de cuidar de processos artísticos que pretendem investir radicalmente na desestabilização de modelos e referências. O artista tem que desenvolver modos de avaliar e lidar com os estados de corpo-mente – muitas vezes sutis – que ele pretende desencadear em si mesmo e no público (qualidades de consciência, de atenção, afetividade, energia, reflexão, etc.). (QUILICI, 2015, p. 160).

A dança também pode ser sinônimo de liberdade, pois através dela podemos nos deslocar para fora do tempo contemporâneo. A dança pode instaurar um outro tempo e um outro sujeito, o “extemporâneo”. Deslocada para fora de si e do seu tempo, podemos compreender corpo como experiência, deixando delinear-se uma espiritualidade do corpo. O ato de dançar é um modo de conectar-se com energia. Energia essa que depende de uma entrega, como um modo de sentir-se diluída num todo universal: libertação.

Outro ponto importante para que percebamos essas conexões entre espiritualidade e arte é o próprio viver e o fazer dança como caminho de evolução. E esse processo passa pelo cotidiano, por nossa percepção e relação com os outros e com o mundo.

Ao perceber a dança como uma forma de se conhecer em profundidade, trazemos questões como a da ascese, dentro do conflito entre as oposições e dualidades que carrega entre corpo e mente, por exemplo. Para pensar a ascese nos processos de arte, trago a reflexão de Quilici (2015, p. 177 e 178) sobre o conceito trabalhado por Yasuo Yuasa[1].

Percorrendo uma ampla gama de autores da filosofia ocidental (Bergson, Merleau-Ponty, Heidegger), da chamada “Escola de Kyoto” (Watsuji, Nishida), além da literatura e das práticas tradicionais budistas (especialmente do Zen, como em Dôgen), Yuasa demonstra as vinculações entre treinamentos existentes em artes marciais tradicionais japonesas e conceitos e técnicas encontrados nas práticas e formas de vida budista. A noção de shugyo, que pode ser traduzido como “cultivo”, expressaria justamente um modo de treinamento estruturado num ambiente monástico, mas que se irradiou para outros aspectos da cultura, inspirando práticas artísticas específicas. Nesse sentido, tal ideia nos permite pensar as vinculações entre a experiência estética e a questão da ascese. O tema não é estranho ao pensamento ocidental. Poderíamos fazer algumas aproximações entre shugyo e a noção de “cuidado de si”, estudada por Michel Foucault (2006) [...]. (QUILICI, 2015, p. 177 e 178).


Solo "Es passos Entre Mundos" de Kilma Farias,
onde discutia essa ligação entre dança e espiritualidade.
Foto de Milena Medeiros

Sem dúvida as noções de “cultivo” e “cuidado de si” aproximam-se, pois ambas irão se valer de práticas que corroborem com o aprimoramento pessoal e artístico do sujeito, constituindo-se como preceitos de “trabalhos colaborativos no tempo”. É preciso tempo para lapidar um pensamento de movimento que se instaura no corpo, tempo para “limpar a técnica”, tempo para amadurecer ideias, tempo para processar visões outras de mundo, tempo para se perceber e reagir às transformações internas e gradativas, em outras palavras: tempo para praticar-se.

E o terceiro assunto que trago enquanto espiritualidade que perpassa pelos estados de presença cênica é o pensamento da coletividade, da tribo, da humanidade enquanto corpo. E esse corpo tem uma qualidade específica, a da Mãe Terra e dos seus elementos como água, terra, fogo e ar.

Um caráter transformador, transgressor, libertador, contemporâneo, extemporâneo, de ascese, coletivo, relações de sororidade, de poesia, de comunhão com o espaço, seja ele o meio urbano ou o campo, a praia, o rio ou a floresta. As bailarinas de Tribal Brasil encontram em suas práticas uma forma de se dizerem em suas escolhas e de se pensarem enquanto se dizem, seja no pensamento por movimento ou na linguagem verbal. A articulação de memórias coletivas de outrem (que fazem parte de suas pesquisas em dança) suas memórias coletivas (dos seus bairros, cidades, países) e suas lembranças pessoais geram novas memórias coletivas – o corpo de memória do Tribal Brasil. Memória essa que não busca fechar-se em conceitos, mas ampliar-se abraçando as diversidades do mundo, deste e de outros tempos.

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[1] Yasuo Yuasa (1925-2005) foi um importante filósofo japonês da religião que dedicou seus estudos à teoria do corpo na filosofia ocidental e asiática.

Referências Bibliográficas

QUILICI, Cassiano. O ator-performer e as poéticas de ta transformação de si. São Paulo: Annablume, 2015.

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Tribal Brasil - Identidade no Corpo


Kilma Farias (João Pessoa-PB) é bailarina, professora, coreógrafa, produtora e pesquisadora na área da dança. É formada em Licenciatura em Dança e Jornalismo pela Universidade Federal da Paraíba. Mestra em Ciências das Religiões pela UFPB, desenvolveu dissertação voltada para a relação entre presença cênica e espiritualidade na Dança Tribal.  Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >> 


[Tribal Brasil] Trânsitos entre Memória Individual e Memória Coletiva

 por Kilma Farias

Legenda: Ruth St Deni (esquerda), Mata Hari (centro) e Carmen Tórtola (direita)

O Tribal Brasil aborda corporeidades, memórias e multiplicidades do processo identitário de tradições diversas em diálogo com a contemporaneidade. Essa relação plural entre linguagens, visões de mundo, espiritualidades, construções do corpo coletivo, sentido e tempo se dá no espaço do corpo.

Ao falar de tradições e diálogos com a contemporaneidade, estamos falando do que Stuart Hall (2011) chama de traduções culturais. Para compreender as traduções e os trânsitos que suscitam entre memórias trago primeiramente a compreensão de três formas de construção de identidades abordadas por Hall.

A primeira delas Hall chama de “sujeito do Iluminismo”, onde o centro do “eu” é a identidade de uma pessoa. Pessoa essa construída no pensamento cartesiano de um corpo apartado da mente. A segunda identidade ele definiu como “sujeito sociológico” e a percebeu como um elemento estabilizador entre o mundo do “eu” de cada sujeito e os mundos que eles habitam; a identidade como uma espécie de estrutura integralizadora entre o sujeito e o mundo. E a terceira é a do “sujeito pós-moderno”, uma identidade utópica. Traz a ideia de uma multiplicidade em um sujeito fragmentado, composto de não uma, mas várias identidades sem necessariamente buscar nexo entre elas. Senão vejamos:

O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu” coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda história sobre nós mesmos ou uma confortadora “narrativa do eu”. A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. (HALL, 2011, p. 13).

 
Essa “história sobre nós mesmos” ou “narrativa do eu” compreendo como a memória individual em Halbwachs (2003) resultante de uma capacidade de nos reconhecermos como imagens, assim como tudo que nos rodeia, partindo da percepção individual de cada sujeito. Desse modo, “[...] é bem verdade que em cada consciência individual as imagens e os pensamentos que resultam dos diversos ambientes que atravessamos se sucedem segundo uma ordem nova e que, neste sentido, cada um de nós tem uma história.” (HALBWACHS, 2003, p. 57).

Essas histórias fundem-se, cruzam-se, diferem e formam pontos de vista de uma memória mais abrangente, a memória coletiva. E essa também é compreendida como uma multiplicidade dado os trânsitos dos sujeitos, interna e externamente.

De bom grado, diríamos que cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda segundo o lugar que ali ocupo e que esse mesmo lugar muda segundo as relações que mantenho com outros ambientes. Não é de surpreender que nem todos tirem o mesmo partido do instrumento comum. Quando tentamos explicar essa diversidade, sempre voltamos a uma combinação de influência que são todas de natureza social. (HALBWACHS, 2003, p. 69).

 Essa “combinação de influências” pode ser compreendida como uma das características do “sujeito pós-moderno” de Hall, colaborando com a construção de culturas híbridas, ou seja, o produto de várias histórias e culturas interconectadas. A esse acontecimento Hall chama de tradução cultural.

No Tribal Brasil, trabalhamos processos criativos a partir de danças populares e afro-brasileiras, sendo para Hall essa identidade nacional uma “identidade imaginada” construída pelos discursos carregados de sentidos e memórias que conectam o presente ao passado de um povo, visando um contorno, uma identidade. Desse modo, constrói-se uma trama que nos prende invisivelmente ao passado.

Assim, o imaginário de uma cultura nacional é trazida para dialogar com o estilo de dança Tribal Fusion, com o American Tribal Style e culturas diversas da Índia, Oriente Médio, America, Japão, etc., gerando outras qualidades em dança que passam por apropriação, antropofagia, hibridismo, acomodação, dependendo da forma de condução do processo criativo.

Há uma tendência histórica com o Tribal de retratar deusas que dançam, acredito que pela própria herança que nos foi deixada pelas bailarinas de vanguarda do Orientalismo do início do século XX.

Uma das mais importantes, conhecida como “a bailarina dos pés desnudos”, Cármen Tórtola Valencia (1882-1955) desenvolveu um estilo próprio que expressava a emoção pelo movimento. Para Patrícia Passos [1](2011, p. 2002), Tórtola Valencia retratava em sua dança uma recriação dos universos egípcio e indiano, figuras míticas como serpentes, deusas gregas, africanas e danças ancestrais americanas, revolucionando o ambiente da dança.

Outra personalidade a utilizar deusas que dançam em seu trabalho e que vai influenciar na estética do Tribal é Margaretha Gertruida Zelle (1876-1917), mais conhecida como Mata Hari. Sua contribuição na dança é controversa, uma vez que se destacou muito mais como cortesã do que como bailarina. E justamente por esse motivo trago-a para essa discussão.  Foi condenada à morte por prestar serviço de dupla espionagem para Alemanha e França durante a Primeira Guerra Mundial e fuzilada sem que se provasse essa afirmação.

A exótica espiã Mata Hari, começa sua carreira de bailarina em Java. Lá tomou os primeiros contatos com a cultura oriental. De volta a Europa, percebeu rapidamente que a experiência vivida na Indonésia poderia servir-lhe como trampolim para entrar na alta sociedade europeia, que carecia de exotismo para transcender a penosa situação econômica. Seu mito causa polêmica dado que a personagem Mata Hari se associou mais ao jogo da sedução, usada como arma política e social, do que à evolução da arte da dança. (PASSOS, 2011, p. 204).[2]

Símbolo de ousadia e força do feminino, Mata Hari retratou Cleópatra em seus personagens entre outras rainhas, princesas e deusas. Podemos perceber no exemplo dessa bailarina uma questão de gênero implicada com o poder simbólico do feminino atrelado à sedução. Questão essa que trataremos mais adiante.


A terceira influência é
a bailarina americana Ruth St. Denis (1879-1968) com seu gosto e interesse pelo exótico. Ao observarmos a trajetória artística de Ruth St. Denis, uma das pioneiras da Dança Moderna Americana, vamos contemplar uma história de encontro com o espiritual através da dança, indo buscar fonte de inspiração em diversas danças a exemplo da egípcia, indiana, flamenca, tailandesa, chinesa, entre outras.

Na sua escola, a Denishawn School em Los Angeles, Califórnia, passaram nomes como Martha Graham e Doris Humphrey, expoentes da Dança Moderna Americana que influenciam até hoje grande parte de bailarinos do Ocidente. Ruth St. Denis ficou conhecida pelos seus solos, a exemplo de
Rahda (1909) e The legend of the peacock (1914), onde retratava a “complexidade e autonomia das mulheres.” [3] Esses solos em muito se assemelham à estética do que conhecemos hoje como Tribal. “A mistura do físico e da divindade nas coreografias de St. Denis levou que ela estudasse várias religiões ao longo da sua vida. Em sua opinião, a dança era um ritual e uma prática espiritual.” [4]

 “A complexidade e autonomia das mulheres” retratadas por essas bailarinas, na maioria das vezes através de arquétipos de deidades femininas nos remetem a uma cultura do feminino e suas implicações socio-histórico e antropológicas em diálogo com as discussões sobre gênero.


Ao pensar os domínios estruturais e ideológicos das relações entre sexos, os historiadores sociais vão dizer que, para além de possíveis definições de papeis entre feminino e masculino, “O gênero se torna, aliás, uma maneira de indicar as construções sociais [...]” (SCOTT, 1990, p.7) bem como um lugar de legitimação de poder, constituindo-se como “uma categoria imposta sobre um corpo sexuado”. (SCOTT, 1990, p. 7).


Desse modo, esse “corpo sexuado” dentro da dança Tribal propõe transcender sua condição humana buscando na condição de deidade seu poder simbólico para afirmar sua força enquanto feminino. Entendendo que “A história do pensamento feminista é uma história de recusa da construção hierárquica da relação entre masculino e feminino” (SCOTT, 1990, p. 19).

Diante do exposto, podemos teorizar a prática do Tribal Brasil a partir da compreensão do gênero como uma categoria de análise. Uma vida marcada por imposições, repressões, violência e enquadramento social, dados pela condição sexual, é reelaborada através da arte da dança trazendo deusas, rainhas e figuras míticas ao palco como legitimação da força do feminino. Esse feminino é trazido com uma sutileza diferente da dança do ventre. Esta, por sua vez, está sob o julgo do orientalismo o que reforça ainda mais a diferença entre os gêneros, muitas vezes estereotipando e subjugando a figura da mulher do Oriente.

Dentro do Tribal Brasil, a inspiração vem de arquétipos ligados às danças afro-brasileiras. Através das Iabás[5] Iemanjá, Iansã, Oxum e Obá essa construção pode ser mais bem observada, no sentido das intenções de movimento, subjetividades e atitudes geradas por cada orixá em diálogo com a individualidade da bailarina de Tribal e articuladas com outras hibridações de movimentos. 



[1] Conocida como la “bailarina de los pies desnudos”, Tórtola Valencia, uma mujer nacida em Sevilla a princípios del siglo XX, revoucionó el ambiente de la danza trayendoa lós escenarios uma recreación del universo egípcio, hindu e incluso de lãs danzas ancestrales americanas. (PASSO, 2011, p. 202).

[2] Tradução minha do original: La exótica espiá Mata Hari, empieza su Carrera de bailarina trás su estância em Java. Allí tomo lós primeros contactos com la cultura oriental. De vuelta a Europa, se percató rapidamente de que la experiencia vivida em Indonesia podría servirle como trampolín para entrar em la alta sociedad europea, que carecia del exotismo para transcender la penosa situación econômica. Su mito causa polémica dado que El personaje Mata Hari se asocó más al juego de la seducción, usado como arma política y social, que a la evolición del arte de la danza.

[3] Disponível em <http://tribalmind.blogspot.com.br/2011/01/ruth-saint-denis.html> , acesso em 12 de fev. de 2017.

[4] Disponível em <http://tribalmind.blogspot.com.br/2011/01/ruth-saint-denis.html>, acesso em 12 de fev. de 2017.

[5] “Orixás femininos do candomblé de origem iorubá, as Iabás, conhecidas no Brasil pelos nomes Iansã, Oxum, Iemanjá e Obá.” (ZENICOLA, 2014, p. 17).

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Tribal Brasil - Identidade no Corpo


Kilma Farias (João Pessoa-PB) é bailarina, professora, coreógrafa, produtora e pesquisadora na área da dança. É formada em Licenciatura em Dança e Jornalismo pela Universidade Federal da Paraíba. Mestra em Ciências das Religiões pela UFPB, desenvolveu dissertação voltada para a relação entre presença cênica e espiritualidade na Dança Tribal.  Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >> 


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