por Kilma Farias
Legenda: Ruth St Deni (esquerda), Mata Hari (centro) e Carmen Tórtola (direita)
O Tribal Brasil aborda corporeidades,
memórias e multiplicidades do processo identitário de tradições diversas em
diálogo com a contemporaneidade. Essa relação plural entre linguagens, visões
de mundo, espiritualidades, construções do corpo coletivo, sentido e tempo se
dá no espaço do corpo.
Ao
falar de tradições e diálogos com a contemporaneidade, estamos falando do que
Stuart Hall (2011) chama de traduções culturais. Para compreender as traduções
e os trânsitos que suscitam entre memórias trago primeiramente a compreensão de
três formas de construção de identidades abordadas por Hall.
A
primeira delas Hall chama de “sujeito do Iluminismo”, onde o centro do “eu” é a
identidade de uma pessoa. Pessoa essa construída no pensamento cartesiano de um
corpo apartado da mente. A segunda identidade ele definiu como “sujeito
sociológico” e a percebeu como um elemento estabilizador entre o mundo do “eu”
de cada sujeito e os mundos que eles habitam; a identidade como uma espécie de
estrutura integralizadora entre o sujeito e o mundo. E a terceira é a do
“sujeito pós-moderno”, uma identidade utópica. Traz a ideia de uma
multiplicidade em um sujeito fragmentado, composto de não uma, mas várias
identidades sem necessariamente buscar nexo entre elas. Senão vejamos:
O sujeito assume
identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são
unificadas ao redor de um “eu” coerente. Dentro de nós há identidades
contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas
identificações estão sendo continuamente deslocadas. Se sentimos que temos uma
identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos
uma cômoda história sobre nós mesmos ou uma confortadora “narrativa do eu”. A
identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia.
(HALL, 2011, p. 13).
Essas
histórias fundem-se, cruzam-se, diferem e formam pontos de vista de uma memória
mais abrangente, a memória coletiva. E essa também é compreendida como uma
multiplicidade dado os trânsitos dos sujeitos, interna e externamente.
De bom grado,
diríamos que cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória
coletiva, que este ponto de vista muda segundo o lugar que ali ocupo e que esse
mesmo lugar muda segundo as relações que mantenho com outros ambientes. Não é
de surpreender que nem todos tirem o mesmo partido do instrumento comum. Quando
tentamos explicar essa diversidade, sempre voltamos a uma combinação de
influência que são todas de natureza social. (HALBWACHS, 2003, p. 69).
No
Tribal Brasil, trabalhamos processos criativos a partir de danças populares e
afro-brasileiras, sendo para Hall essa identidade nacional uma “identidade
imaginada” construída pelos discursos carregados de sentidos e memórias que
conectam o presente ao passado de um povo, visando um contorno, uma identidade.
Desse modo, constrói-se uma trama que nos prende invisivelmente ao passado.
Assim,
o imaginário de uma cultura nacional é trazida para dialogar com o estilo de
dança Tribal Fusion, com o American Tribal Style e culturas
diversas da Índia, Oriente Médio, America, Japão, etc., gerando outras
qualidades em dança que passam por apropriação, antropofagia, hibridismo,
acomodação, dependendo da forma de condução do processo criativo.
Há uma tendência histórica com o Tribal de retratar deusas que dançam, acredito que pela própria herança que nos foi deixada pelas bailarinas de vanguarda do Orientalismo do início do século XX.
Uma
das mais importantes, conhecida como “a bailarina dos pés desnudos”, Cármen
Tórtola Valencia (1882-1955) desenvolveu um estilo próprio que expressava a
emoção pelo movimento. Para Patrícia Passos [1](2011,
p. 2002), Tórtola Valencia retratava em sua dança uma recriação dos universos
egípcio e indiano, figuras míticas como serpentes, deusas gregas, africanas e
danças ancestrais americanas, revolucionando o ambiente da dança.
Outra personalidade a
utilizar deusas que dançam em seu trabalho e que vai influenciar na estética do
Tribal é Margaretha Gertruida Zelle (1876-1917), mais conhecida como Mata Hari. Sua contribuição
na dança é controversa, uma vez que se destacou muito mais como cortesã do que
como bailarina. E justamente por esse motivo trago-a para essa discussão. Foi condenada à morte por prestar serviço de
dupla espionagem para Alemanha e França durante a Primeira Guerra Mundial e
fuzilada sem que se provasse essa afirmação.
A exótica espiã
Mata Hari, começa sua carreira de bailarina em Java. Lá tomou os primeiros
contatos com a cultura oriental. De volta a Europa, percebeu rapidamente que a
experiência vivida na Indonésia poderia servir-lhe como trampolim para entrar
na alta sociedade europeia, que carecia de exotismo para transcender a penosa
situação econômica. Seu mito causa polêmica dado que a personagem Mata Hari se
associou mais ao jogo da sedução, usada como arma política e social, do que à
evolução da arte da dança. (PASSOS, 2011, p. 204).[2]
Símbolo de
ousadia e força do feminino, Mata Hari retratou Cleópatra em seus personagens
entre outras rainhas, princesas e deusas. Podemos perceber no exemplo dessa
bailarina uma questão de gênero implicada com o poder simbólico do feminino
atrelado à sedução. Questão essa que trataremos mais adiante.
A terceira influência é a bailarina americana Ruth St. Denis (1879-1968) com seu gosto e interesse pelo exótico. Ao observarmos a trajetória artística de Ruth St. Denis, uma das pioneiras da Dança Moderna Americana, vamos contemplar uma história de encontro com o espiritual através da dança, indo buscar fonte de inspiração em diversas danças a exemplo da egípcia, indiana, flamenca, tailandesa, chinesa, entre outras.
Na sua escola, a Denishawn School em Los Angeles, Califórnia, passaram nomes como Martha Graham e Doris Humphrey, expoentes da Dança Moderna Americana que influenciam até hoje grande parte de bailarinos do Ocidente. Ruth St. Denis ficou conhecida pelos seus solos, a exemplo de Rahda (1909) e The legend of the peacock (1914), onde retratava a “complexidade e autonomia das mulheres.” [3] Esses solos em muito se assemelham à estética do que conhecemos hoje como Tribal. “A mistura do físico e da divindade nas coreografias de St. Denis levou que ela estudasse várias religiões ao longo da sua vida. Em sua opinião, a dança era um ritual e uma prática espiritual.” [4]
“A
complexidade e autonomia das mulheres” retratadas por essas bailarinas, na
maioria das vezes através de arquétipos de deidades femininas nos remetem a uma
cultura do feminino e suas implicações socio-histórico e antropológicas em
diálogo com as discussões sobre gênero.
Ao
pensar os domínios estruturais e ideológicos das relações entre sexos, os
historiadores sociais vão dizer que, para além de possíveis definições de
papeis entre feminino e masculino, “O gênero se torna, aliás, uma maneira de
indicar as construções sociais [...]” (SCOTT, 1990, p.7) bem como um lugar de
legitimação de poder, constituindo-se como “uma categoria imposta sobre um
corpo sexuado”. (SCOTT, 1990, p. 7).
Desse
modo, esse “corpo sexuado” dentro da dança Tribal propõe transcender sua condição
humana buscando na condição de deidade seu poder simbólico para afirmar sua
força enquanto feminino. Entendendo que “A história do pensamento feminista é
uma história de recusa da construção hierárquica da relação entre masculino e
feminino” (SCOTT, 1990, p. 19).
Diante
do exposto, podemos teorizar a prática do Tribal Brasil a partir da compreensão
do gênero como uma categoria de análise. Uma vida marcada por imposições,
repressões, violência e enquadramento social, dados pela condição sexual, é
reelaborada através da arte da dança trazendo deusas, rainhas e figuras míticas
ao palco como legitimação da força do feminino. Esse feminino é trazido com uma
sutileza diferente da dança do ventre. Esta, por sua vez, está sob o julgo do
orientalismo o que reforça ainda mais a diferença entre os gêneros, muitas
vezes estereotipando e subjugando a figura da mulher do Oriente.
Dentro do Tribal Brasil, a inspiração vem de arquétipos ligados às danças afro-brasileiras. Através das Iabás[5] Iemanjá, Iansã, Oxum e Obá essa construção pode ser mais bem observada, no sentido das intenções de movimento, subjetividades e atitudes geradas por cada orixá em diálogo com a individualidade da bailarina de Tribal e articuladas com outras hibridações de movimentos.
[1] Conocida como la “bailarina de los pies desnudos”, Tórtola Valencia, uma mujer nacida em Sevilla a princípios del siglo XX, revoucionó el ambiente de la danza trayendoa lós escenarios uma recreación del universo egípcio, hindu e incluso de lãs danzas ancestrales americanas. (PASSO, 2011, p. 202).
[2]
Tradução minha do original:
La exótica espiá Mata Hari, empieza su
Carrera de bailarina trás su estância em Java. Allí tomo lós primeros contactos
com la cultura oriental. De vuelta a Europa, se percató rapidamente de que la
experiencia vivida em Indonesia podría servirle como trampolín para entrar em
la alta sociedad europea, que carecia del exotismo para transcender la penosa
situación econômica. Su mito causa polémica dado que El personaje Mata Hari se
asocó más al juego de la seducción, usado como arma política y social, que a la
evolición del arte de la danza.
[3] Disponível em
<http://tribalmind.blogspot.com.br/2011/01/ruth-saint-denis.html> ,
acesso em 12 de fev. de 2017.
[4] Disponível em
<http://tribalmind.blogspot.com.br/2011/01/ruth-saint-denis.html>, acesso
em 12 de fev. de 2017.
[5] “Orixás femininos do candomblé de origem iorubá, as Iabás, conhecidas no Brasil pelos nomes Iansã, Oxum, Iemanjá e Obá.” (ZENICOLA, 2014, p. 17).
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Tribal Brasil - Identidade no Corpo