[Dançando Narrativas] Memento Mori: a potência artística da mortalidade.

 por Keila Fernandes

Novembro é o mês no qual guardamos o feriado de finados. Apesar de ser um feriado de tradição cristã no nosso país, datas como essa existem desde a antiguidade estão presentes em calendários de diversas culturas do mundo inteiro.


A morte sempre intrigou os seres humanos, e as dúvidas sobre o que acontecia depois do corpo morrer é uma das explicações para a origem dos primeiros enterramentos.

Diferente dos outros hominídeos, Sapiens e Neandertais compartilhavam o costume de enterrar seus mortos. Essa preocupação com os corpos, segundo os estudiosos, indica a compreensão do processo de morte, bem como as primeiras reflexões sobre o que poderia vir depois.

Encontramos nas narrativas mitológicas de diversas culturas histórias sobre a morte, o além, os submundos e as divindades que guiam e julgam as almas. Além de datas comemorativas e relatos de festivais para celebrar e recordar aqueles que já haviam partido.

Imagem de Joe Velasques, em Pixabay

A morte sempre foi parte da vida. Muitas culturas ainda a enxergam como algo natural, só mais uma etapa do movimento cíclico da natureza de constante morte e renascimento.

Em um cenário tão caótico e sombrio como o que temos vivido desde o início da pandemia, a ideia da morte se faz presente com maior intensidade no nosso dia a dia. Não que antes da pandemia não fizesse parte do cotidiano de milhões de pessoas pelo mundo. Mas esse cenário furou muitas bolhas e nos colocou cara a cara com a nossa mortalidade, com a nossa finitude e fragilidade da vida.

A morte é um tema espinhoso e tabu na nossa cultura. Vemos como algo ruim, a ser temido, e por isso é um assunto  pouco discutido em espaços públicos, e até mesmo dentro dos lares (salvo em ocasiões nas quais famílias perdem ou estão prestes a perder entes queridos). Assim, não estamos preparados para aceitar a fatalidade da vida: as pessoas a quem amamos e nós, todos vamos morrer um dia.

Lembrando que, durante esse período, muitas pessoas foram tiradas de nós muito cedo. Milhares de pessoas tiveram sua jornada encurtada por irresponsabilidade, falta de empatia e incompetência para lidar com um cenário pandêmico. E quando falo nesse texto sobre compreendermos e falarmos sobre a morte, não estou dizendo que essas mortes evitáveis devem ser banalizadas e normalizadas. Por isso, mais do que nunca, devemos lembrar dessas vidas ceifadas de maneira tão repentina.

O Dark Fusion é um espaço no qual sentimentos incômodos são expressados por meio da nossa visão artística. A dança pode ser um espaço seguro no qual é possível encarar as dores e dúvidas geradas pela perda ou pelo medo da perda.

Morte: O Sentido da Vida, de Neil Gaiman

Em 2017, o Underworld Fusion Fest teve a Morte como tema, trazendo para os palcos a visão de diferentes artistas sobre o assunto.

A Morte foi abordada a partir da perspectiva mitológica, psicológica, filosófica, religiosa, cultural e ocultista. No palco ela foi celebrada como esse momento obscuro, cheio de incertezas e tristezas, mas inevitável e com o qual devemos sempre conversar.

Expressar nossas tristeza, raiva, desespero e aceitação por meio da dança é legítimo, e pode nos ajudar a lidar com momentos difíceis.

Convido então vocês a assistirem as apresentações, todas disponíveis no youtube.

Link: 3ª Edição do Underworld Fusion Fest | 21 & 22 de Outubro de 2017


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Dançando Narrativas


Keila Fernandes (Curitiba-PR) é escritora, professora de história e  historiadora, especialista na área de Religiões e Religiosidades e História Antiga e Medieval. É aluna da bailarina e professora Aerith Asgard e co-diretora do Asgard Tribal Co. Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >> 

[Resenhando-ES] 4ª Edição do Encontro Capixaba de Dança do Ventre

por Lua Rubra Tribal

O Encontro Capixaba de Dança do Ventre já faz parte do calendário dos maiores eventos de dança do ventre em solo capixada. A edição de 2021, ocorrida entre os dias 15 e 16 de agosto, foi a primeira no formato online e não deixou a desejar em qualidade para as edições presenciais.

No dia 15/08/2021 o Encontro Capixaba realizou oficinas de temas variados, desde movimentos básicos da dança do ventre até construções avançadas de quadril, de modo a trazer conteúdo para todos os níveis de experiência que os alunos pudessem ter com a dança. As oficinas, ministradas pelas professoras e organizadoras do evento Aleh Fassarella, Janine Muzzi, Kristiny Concha e Nathalia Antunes, ocorreram na plataforma Zoom.


No dia 16/08/2021 foi a vez do Show de Gala, também no formato on-line, exibido no YouTube.


O espetáculo contou com performances das organizadoras do evento, Aleh Fassarella, Janine Muzzi, Kristiny Concha e Nathalia Antunes, todas do Espírito Santo.

Estiveram presentes também os Grupos Nathalia Antunes e Stroc Kids, com coreografias da professora capixaba Nathalia Antunes, e os bailarinos capixabas Tania Mara, Lina Zahiraz, Dayane Santos e Edu Gomes

A dança do ventre estilo tribal também teve lugar no espetáculo através das performances da bailaria Sílvia Pantoja, do Rio de Janeiro, e do Grupo Lua Rubra Tribal, do Espírito Santo.

O show de gala está disponível no YouTube, no canal do Encontro Capixaba de Dança do Ventre. Vale a pena assistir e conhecer o movimento da dança do ventre no Espírito Santo.

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Resenhando-ES


Lua Rubra Tribal (Vila Velha-ES) é formado por Sahira Zomerod, KarMir, Aline Yuki e Bruna Benes; foi criado no ano de 2018, seguindo as lunações para formar uma liderança circular. Cada uma representa uma lua: nova, crescente, cheia e minguante, respectivamente. Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >>


[Resenhando-PA] FestDunya 2021 – De um Sonho ao Festival – Primeiro Festival de Danças Arabes Orientais de Ananindeua

 por Pan Lira

Entre os dias 29 e 31 ocorreu o primeiro FestDunya, organizado (e sonhado) e realizado por Coral Farias, Garbiela Shearazade e Lunna Suad, no municipio de Ananideua, na região Metropolitana de Belém, a sua idealização seria para integrar diversas modalidades de danças orientais – Danças Ciganas, Dança Indiana, Dança do Ventre e Estilo Tribal. Ananindeua é o local que reside diversas bailarinas e profissionais das danças orientais de nossa região, que geralmente precisam se deslocar aos eventos realizados em Belém, ainda que haja uma proximidade e um deslocamento de tempo de 1 hora de um centro para o outro, as organizadoras por serem de Ananindeua optaram por realizar o FestDunya no conjunto da Cidade Nova, que fica em um bairro de Ananindeua.   

O festival foi maturado, seu projeto inicial seria para o dia 30 de setembro de 2020, porém devido o estouro da pandemia, houve a necessidade do adiamento para o ano de 2021. Ainda assim, dia 07 de fevereiro deste ano, Coral realizou uma live em no perfil do Instagram do FestDunya que contou com diversas modalidades do universo das danças orientais, com Jessie Ra’idah marcando presença com Tribal Fusion, Ananda Govinda com dança indiana e eu, Pan Lira, com uma fusão em Dança Cigana.

As datas de realização das modalidades do evento foram escolhidas em outubro, como do como disse Coral para mim “Outubro - Samhain - fechamento de ciclos. Entao essa seria a data do Festival 29, 30 e 31”. Acontecendo de uma forma hibrida com workshops on-line de dança do ventre com profissionais de fora do Estado do Pará e tendo no dia 30 de outubro, seu evento presencial com show de gala, mostra de danças árabes orientais e fusões com bailarinas amadoras e profissionais da Região Metropolitana de Belém e concurso de dança do ventre. Não apenas o evento foi um sonho realizado para as organizadoras, mas foi uma realização para a dançarina de Tribal Fusion, Dayane Macedo, em sua primeira apresentação em solo de Tribal Fusion.

“Quando decidi criar uma performance de Tribal Fusion, gostaria que ela trouxesse uma teatralidade e emoção, escolhi performar uma música que sempre quis criar algo para ela, porém, por ser do nível básico eu não sabia muito bem como faria, a música escolhida era: El tango de Roxane do filme Moulin Rouge. Estava com essa ideia na cabeça a mais ou menos um mês antes de surgir a oportunidade de apresentar-me no FestDunya, onde, uma das organizadoras do evento perguntou se eu não gostaria de me apresentar. Vi nesse evento o momento de apresentar o Tribal e a criação desta performance, pois, aqui em nosso estado o Tribal Fusion não é muito conhecido, e apesar de ser praticante também de outros estilos de danças orientais eu escolhi apresentar o Tribal, para ser prestigiado e mais divulgado aqui em nosso Estado. Fui até a minha professora de danças orientais Pan Lira, e pedi sua orientação, no qual a mesma me deu total apoio e ajuda na limpeza de meus movimentos, foi um mês de criação e ensaios até a finalização e apresentação no meu primeiro festival. No início me senti muito insegura pois nunca havia criado algo para apresentar, mas com a ajuda da minha professora tudo foi se acertando e eu fui me acalmando, quando vi e dancei a performance pronta me senti muito realizada na minha arte, principalmente depois da apresentação, no qual recebi muitos elogios e reconhecimento de pessoas que até então nem conhecia, e pra mim isso é muito gratificante ser do nível básico e ter conseguido criar algo que tocou pessoas, com isso, pretendo seguir em frente na minha arte e aperfeiçoa-la cada vez mais.”  

Assim encerro minha resenha deste mês, com o coração alegre, falando para semearmos sonhos e deixá-los florescer e dançar.

Até a próxima.  

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Resenhando-PA

Pan Lira, natural de (Belém-PA) , professora, pesquisadora e dançarina  Tribal Fusion, Danças Ciganas e Dança Oriental, apaixonada por fusões, e desenvolve pesquisa em danças regionais nortistas e das danças afro-religiosas das Yabás, desenvolvendo sua própria de fusão com danças Paraenses chamado "Dança Etnica de Fusão Amazônida". Graduanda em Licenciatura em Dança pela UFPA, ensina as modalidades étnicas que estuda desde 2014. Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >> 

[Resenhando-AL] Tribal na 10ª Universidança UFAL

por Ana Clara Oliveira

Divulgação da 10ª Universidança UFAL
(Fonte: @universidancaufal)



A matéria apresenta a participação do estilo Tribal de Dança do Ventre ou Fusão Tribal (carinhosamente Tribal) no evento 10ª Universidança – Semana Acadêmica do Curso de Licenciatura em Dança da Universidade Federal de Alagoas, nos dias 02 a 09 de agosto de 2020. Na tripla função de artista-professora-pesquisadora, desenvolvi as seguintes ações no evento: comunicação oral; oficina e apresentação artística. 


Divulgação da 10ª Universidança UFAL
(Fonte: @universidancaufal)


Antes de discorrer sobre as minhas atividades, considero importante localizar brevemente a Universidança em 2020 para vocês: “criada em 2009, a Semana Acadêmica do Curso de Licenciatura em Dança – Universidança, é um evento anual de extensão para apresentar, divulgar e promover o Curso de Licenciatura em Dança da Universidade Federal de Alagoas” (UNIVERSIDANÇA, online). Na 10ª edição, devido a pandemia do COVID-19 e de acordo com as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS), o evento ocorreu de modo online através das plataformas virtuais e com inscrições pelo sistema UFAL SIGAA. 

Diante disso, o momento mais esperado. Afinal, nós atuamos no Tribal. E sabemos o quanto é importante ocupar todos os espaços com muita resistência, crítica e criatividade, inclusive na universidade pública (na coluna “Formação” posso desenvolver melhor esse aspecto). Como de costume, marco a presença do Tribal na Universidança. Para a edição 2020, desenvolvi a comunicação oral de 15 minutos intitulada “O Pós-colonial e o Decolonial no estilo Tribal de Dança do Ventre”, seguida de um debate onde os participantes inscritos no evento levantaram perguntas, provocações críticas e considerações relevantes. Abaixo, a divulgação:

Divulgação da 10ª Universidança UFAL
(Fonte: @universidancaufal)

Ofertei a oficina “Fundamentos do Tribal Fusion na formação do Artista da Dança”. Nela, atuantes do Tribal participaram na condição de estudante. Contudo, a atividade foi aberta ao público em geral, então é sempre uma grande responsabilidade ensinar nossa dança para pessoas que não necessariamente possuem um repertório de Tribal ou Dança do Ventre. Em razão disso, escolhi o tema dos fundamentos com o intuito de introduzir princípios das práticas, técnicas e improvisações do Tribal. Foram dias calorosos! Segue abaixo o card da oficina.

Divulgação da 10ª Universidança UFAL
(Fonte: @universidancaufal)


A participação artística se deu na reapresentação da coreografia “Em que tempo a sua dança está?” Alguns de vocês já apreciaram, porém deixo o link diretamente do canal Universidança UFAL para os que nunca viram:

Ah! Não esqueçam de curtir e se inscrever no referido canal. 

Para maiores informações sobre o processo de criação do solo, sugiro a matéria que elaborei no [Resenhando-AL] 1, 2, 3... Gravando! Um solo na Caravana Tribal Nordeste! É só clicar aqui: https://coletivotribal.blogspot.com/2021/04/resenhando-al-1-2-3-gravando-um-solo-na.html


Bem, com uma programação vasta, inteiramente gratuita e rica, a 10ª Universidança contou com oficinas, apresentações artísticas e comunicações orais de participantes das diferentes localidades brasileiras. De antemão, não vou conseguir mencionar todos os participantes e convidados, mas com ternura afirmo que os seus trabalhos foram fundamentais para a promoção da Dança como campo de conhecimento. Cito alguns nomes: Alexandre Américo, Helena Katz, Jurandir Bozo, Jessé Batista, Nanna Buarque, Mariana Camarote e Joyce Barbosa (convidadas, convidados e convidades da Universidança).

Finalizo a matéria com uma novidade: vem aí o 11ª Universidança UFAL! De 07 a 11 de fevereiro 2022. Salvem estas datas! Todas, todos e todes poderão participar. Não esqueçam: é GRATUITO. O regulamento se encontra aqui: https://linktr.ee/Universidanca .

Agradeço a equipe do Universidança UFAL, em especial, a querida colega Isabelle Rocha, coordenadora e também professora da Licenciatura em Dança UFAL. Parabéns pelo grandioso evento! “Simbora”!

Viva o Tribal!

Viva a Universidança UFAL!

Viva a universidade pública!

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Resenhando-AL


Ana Clara Oliveira (Maceió-AL) é dançarina e pesquisadora do estilo Tribal de Dança do Ventre. Professora de Dança na Escola Técnica de Artes (UFAL). Doutoranda em Artes (UFMG) onde pesquisa a formação no Tribal. Mestrado em Dança (UFBA). Diretora da Zambak Cia de Dança Tribal ... Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >>

[Que História é Essa?] Perguntando-se as perguntas certas

por Ana Terra de Leon

Quando comecei a escrever para a coluna meses atrás, propus a análise de uma fonte histórica. Hoje vamos finalizar aquela análise, retomando partes do que escrevemos no segundo post, para começar a relacioná-la, nas próximas postagens, com outras fontes e ao texto da coluna passada. 

O documento que eu trouxe no primeiro e segundo posts trata-se de uma fonte escrita. É o discurso que Jamila Salimpour proferiu na 1ª Conferência de Dança Médio-Oriental da Faculdade Orange Coast, na Califórnia, em 1997. O texto fala sobre a trajetória pessoal e profissional de Jamila na dança, contada em primeira pessoa. O excerto que analisamos, fala sobre sua experiência com dança nos restaurantes árabes na década de 1960.

Disponibilizado no site da Escola Salimpour, tocada por Jamila, quando esta era viva, e sua filha, Suhaila.  Originalmente, o documento destinava-se ao público da Conferência, porém, a partir da disponibilização no site da Escola, o documento passa a ter como público alvo praticantes e estudantes de dança do ventre e suas fusões, e pessoas interessadas em compreender a difusão desta manifestação artística no mundo ocidental, notadamente nos EUA.

Este documento pode ser considerado um testemunho, um tipo de escrita de si, afinal a autora constrói um discurso sobre si mesma a partir de sua trajetória. Este tipo de documento é muito interessante para observarmos que tipo de imagem o indivíduo busca construir sobre si mesmo

Jamila apresentando-se em restaurante, acompanhada por músicos árabes. (Fonte: Jamila’s Arcticle Book).

Neste documento a autora descreve o cotidiano das bailarinas de cafés, restaurantes e boates de São Francisco, nos Estados Unidos, durante a década de 1960:

Já que os musicistas eram em sua maioria amadores, e de uma variedade de países árabes, a música se dava ao acaso. Raramente eles sabiam tocar a mesma peça [musical], frequentemente indo para direções distintas, e eles praticavam durante o show. Não se ouvia falar em ensaios. Não havia muitos músicos à disposição, então não podíamos reclamar. Era mais fácil substituir uma bailarina que um músico.

Se hoje em dia o uso de gravações nas apresentações de dança do ventre e Tribal são mais amplamente difundidos, nesta época os shows eram feitos com música ao vivo e que os músicos que executavam essas apresentações não eram profissionais. Podemos nos perguntar se isto representa, de fato, um avanço ou se a tecnologia mascara a precarização do fazer artístico: se antes havia uma preocupação em contratar, além das bailarinas, os músicos para acompanhá-las, atualmente vemos o mercado de dança se enxugando cada vez mais, e mesmo quando há músicos tocando, o número é reduzido - um tecladista faz as vezes de flautista, acordeonista, violinista… Outro aspecto interessante do ponto de vista das dificuldades do trabalho artístico se impõe: parece haver uma escassez de músicos em detrimento de uma quantidade maior de bailarinas, o que, talvez, tenha sido motivo de concorrência e até mesmo de desavenças entre elas, algo que fica implícito na frase “Era mais fácil substituir uma bailarina que um músico”. Com um pouco de imaginação histórica, podemos até mesmo imaginar que uma bailarina que tivesse muitas reivindicações frente aos administradores do estabelecimento pudesse ser dispensada em detrimento de uma “que desse menos problema”.

Voltando a pensar o aspecto da performance, é interessante notar que não parece haver a necessidade de ensaios por parte dos músicos, sendo todos eles membros da comunidade árabe e conhecedores de um repertório comum. Se as músicas não eram ensaiadas, inferimos que as performances de dança também não eram. A prática da coreografia não era comum, exceto em grandes grupos de folclore:

Todas as músicas que dançávamos eram em ritmos de [compasso] 4/4, com waha-da-oh-noz para taqsim. Músicas como Aziza, com pausas e mudanças no ritmo, eram então apenas tocadas entre as apresentações.

Jamila aprendeu seu fazer na dança ao observar outras bailarinas e tomar como referência aquelas que tinham por origem países do Norte da África e parte da Ásia. É interessante notar que o excerto lido refere-se a um local de apresentação muito conhecido no meio bellydancer: os restaurantes árabes. No entanto, o que mais chama atenção na fala de Jamila é sua preocupação com o ensino de dança:

Conforme eu trabalhava e assistia dançarina depois de dançarina, eu tentava descrever para minhas amigas da dança algumas das coisas que eu via e que eram diferentes. Quando Tabora Najim veio dançar na cidade, foi a primeira vez que eu vi uma queda turca e um flutter. Seu trabalho de véu era único e coreografado. Ela terminava cada apresentação com um kashlama. Frequentemente uma dançarina fazia um passo e então trabalhava variações em cima de um tema. Se um movimento era similar ou relacionado a outro de alguma forma, eu os categorizava como uma família. Eu cataloguei mentalmente tanto quanto eu podia lembrar e incluí em meu formato [de dança]”.

É possível afirmar que ela preocupou-se com a estruturação e propagação deste formato entre as amigas companheiras de trabalho e, posteriormente, alunas de sua escola, posto que a preocupação era, justamente, a maneira como ela poderia ensinar estes passos a outras pessoas - haja visto que esses passos vêm de danças cujo fazer se dá sem preocupação com uma estrutura nos moldes das danças acadêmicas, sendo elas expressões populares originalmente espontâneas ou com função de entretenimento e que estavam sendo pouco a pouco estruturadas para os palcos desde o início do século XX. 

Como esta bailarina, acostumada ao estilo “cabaré”, inspirado em filmes de Hollywood, tornou-se uma das precursoras do estilo Tribal? Sabemos que o Tribal é uma dança contemporânea performática que se sustenta esteticamente numa construção de imaginário sobre o que era considerado “tribal” na década de 1960, 1970 e 1980. Não só o tribal não é tradicional, como também não se pretende a ser uma dança tradicional: possui estética própria, fusionada de uma maneira que justificasse a presença dessas bailarinas nas feiras renascentistas dos EUA da década de 1960. Se Jamila era uma artista familiarizada com  o repertório musical árabe, se os passos que performava eram aprendidos a partir da observação de outras bailarinas do estilo cheio de glitter dos cabarés e casas noturnas, como ela pode ser considerada aparentada com o que anos depois veio a ser o Tribal?

Filha de Jamila, Suhaila Salimpour continua o legado da mãe, à frente da Escola Salimpour. (Fonte: Reprodução).

Filha de Jamila, Suhaila Salimpour continua o legado da mãe, à frente da Escola Salimpour. (Fonte: Reprodução).

Segundo a filha de Jamila, Suhaila Salimpour, nos primeiros anos não era feita divisão entre “tribal” e “cabaré”. Essa separação teria surgido a partir do fim da década de 1960, quando sua mãe criou o grupo “Bal Anat”:

“(...) o que definia uma aparência, uma sensação ou uma estilização era o ambiente do show, a hora do show (...) e isso criava a aparência, a sensação, o figurino, a energia… minha mãe estava tentando justificar a dança do ventre no contexto da Renaissance Fair, então ela criou essa incrível fantasia tribal que sempre era apresentada como um Faz de Conta de Arte Performática, essa era até a palavra que ela usava, Faz de Conta, e era tudo ideia e fantasia dela.”

Para alguém desavisado, a indumentária e esta nomenclatura, “tribal”, poderia levar a uma impressão bastante incorreta: apesar de a estética da movimentação e dos figurinos beber muito nas informações disponíveis na época acerca de danças populares e folclóricas, a dança praticada pelo grupo de Jamila NÃO ERA “tradicional” de algum povo: eram os passos da mesma dança do ventre “cabaré” que ela performava nos restaurantes.

Principalmente no início de sua carreira, Jamila Salimpour praticava a dança performática com figurino de duas peças que conhecemos bem, pelos filmes da Golden Era, por exemplo. Porém foi só anos mais tarde que passaram a chamar de “estilo cabaré” esta dança do ventre. Nossa hipótese, ainda não confirmada, é de que essa nomenclatura pode  ser surgido a partir do momento em que começou-se a fazer folclore e a própria estilização tribal.

Por que esses dados são importantes? Porque eles nos dão algumas pistas e perguntas históricas interessantes, a saber:

  1. Tribal e dança do ventre não estão tão distantes como pode-se achar num primeiro momento;

  2. O tribal, assim como a dança do ventre, está ligado ao entretenimento (suas precursoras dançam em restaurantes e feiras de renascença);

  3. É frequente, no discurso de Jamila, que apareçam algumas noções que são muito próprias das danças acadêmicas ocidentais tais como excelência, complexificação, catalogação, e, num texto que ainda analisaremos nesta coluna, “tornar a dança mais difícil”. A pergunta que gostaríamos de deixar como provocação e gancho para nossas próximas postagens é: esta forma de reestruturar a dança, retirando suas características espontâneas, repetitivas, “orgânicas” (na falta de palavra melhor), não poderiam ser, em si, formas de orientalismo? 

Nas próximas postagens, vamos complexificar este debate e tentar explicar estes questionamentos a partir de mais fontes históricas. Até a próxima!

Referências:

Artigo “Tradução: Cabaret or Tribal?”, de Suhaila Salimpour, publicado por Natália Espinosa em seu blog no Medium.

Artigo “Jamila’s Speech at the International Conference on Middle Eastern Dance”, 1997. Disponibilizado por Salimpour School em: https://www.salimpourschool.com/resources/ > http://www.salimpourschool.com/wp-content/uploads/2014/12/JamilaSpeechICMEDMay1997sml.pdf

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Que história é essa?

Ana Terra de Leon (Florianópolis-SC) é bailarina de ATS® e Dança Oriental, historiadora, com mestrado em História Cultural pela UFSC e especialista em História da Psiquiatria no Brasil. Pesquisadora autônoma, coordena o Heréticas, Grupo de Estudos sobre História da Bruxaria, e o Tribus Nexum, sobre danças orientais e suas fusões. Participa da equipe organizadora do Praksis - Simpósio brasileiro de fusões tribais e é integrante do Coletivo Hunna - Historiadoras que dançamClique aqui para ler mais post dessa coluna! >>


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