por Ana Terra de Leon
Quem
tem migues historiadores sabe: somos chatas demais! As frases que a pessoa
formada em História mais fala são, respectivamente: “Não é bem assim” e “É mais
ou menos por aí”. Isso acontece porque, frequentemente, quando nos referimos a
história de maneira geral as abordagens diferem muito da abordagem acadêmica -
e isso é normal e aceitável, óbvio, mas quando você pede a opinião de uma historiadora
sobre um assunto ela automaticamente vai ligar o “modo palestrinha”!
Brincadeiras à parte, vou me concentrar nesse primeiro post em explicar a vocês
minha proposta. Eu o farei do jeito que explicaria num texto acadêmico, mas com
uma linguagem mais acessível e a mais divertida possível. Assim, a gente
balanceia o conteúdo e a sua seriedade com o divertimento e, dessa forma, todo
mundo sai ganhando.
Minha
ideia com essa coluna é que você que está lendo e que pratica qualquer tipo de
fusão tribal (e estilos afins) possa entender como a disciplina histórica se
estrutura e como tratamos os documentos históricos, ou fontes históricas, que
são a base do trabalho de historiador. Eu gostaria que este espaço pudesse
servir como apoio para professoras e professores que já utilizam em sua
abordagem documentos históricos, mas que gostariam de tratá-los com mais
profundidade e fazendo as perguntas “certas”.
Por uma dança mais crítica: o que são e como abordar fontes históricas?
Fonte
é qualquer documento histórico que utilizamos para discutir o passado a partir
do fazer historiográfico. Porém, a disciplina histórica possui uma miríade de
métodos para abordar esses documentos. Para escrever um texto de história
propriamente dita - e não uma cronologia, como costuma acontecer quando pessoas
que não são da área se propõe a falar da “história” de algo -, é necessário:
1) escolher uma abordagem historiográfica;
2) baseada em teoria da história;
3) que segue determinados pressupostos filosóficos mais amplos;
“Ok,
Ana, mas eu não sou historiadora, e eu com isso?”. De fato, você, e qualquer
pessoa que não seja da área, não precisa ter todas essas preocupações para
falar sobre o passado! Mas é necessário entender que, para se falar de história
enquanto disciplina, não basta falar do passado.
Não acredito que a história, enquanto campo, aconteça apenas da forma
acadêmica. Muitos povos ao redor do mundo (e aqui no nosso país) sabem de sua
história, dela se orgulham e a partir dela se estruturam para atuar em
movimentos sociais e reivindicar seus direitos, mesmo sem necessariamente
discutir método, historiografia, fontes…
Além de efetivo, esse processo de conhecer a própria história de maneira
não-acadêmica é muito rico e nos instrumentaliza para reivindicações sociais e
políticas - como no caso de povos quilombolas e indígenas, por exemplo. Muitos
indivíduos desses grupos se engajam em lutas por educação e para ter sua
presença nas universidades: para ter acesso à formação acadêmica; para poder
contar sua própria história para pessoas que não vivem em sua realidade, e
também para marcar sua presença politicamente (talvez esse seja o ponto
principal! Mas isso quem poderá discutir melhor são essas próprias pessoas);
para intercambiar informações com outros grupos em situação semelhante ou
parentes; em ao fazer isso, estão subvertendo um espaço que até poucos anos
atrás lhes excluía sistematicamente (e, sinceramente, ainda tenta fazê-lo).
Embora atualmente esses povos se vejam às voltas com políticas públicas que
visam minar as conquistas que têm feito nos últimos anos, são exemplos
riquíssimos de como a história pode ser discutida fora do âmbito acadêmico com
efetividade.
Essa digressão se faz necessária pra que vocês que me lêem compreendam que eu
não defendo o academicismo necessariamente. O que defendo aqui é que outros
campos podem se beneficiar de algumas discussões teóricas e abordagens da
historiografia para se compreender e formular seus próprios pressupostos. E,
mais, que a educação em dança tem muito a ganhar com uma perspectiva
mais crítica dos documentos sobre o tribal que chegam pra gente. Quando Aerith
me fez o convite para escrever pro blog, depois de assistir minha palestra no
Simpósio Praksis, fiquei pensando de que maneira eu poderia contribuir para a
comunidade tribal. Concluí que talvez minha formação em história seja o que
mais pode auxiliar outras bailarinas, e por isso estou aqui, escrevendo sobre
fontes, história, historiografia e todas essas coisas.
Conforme
a gente for se conhecendo eu vou apresentando pra vocês os conceitos que eu
considero mais importantes pra nós, tribalzudinhas (tribalzudinhjos e
tribalzidinhes também!) do Brasil. Para que essa postagem não fique muito
longa, vou me despedir com uma proposta de exercício, para o qual trarei
algumas respostas possíveis em meu próximo post por aqui! Vamos olhar pra uma
fonte histórica juntes?
Na
palestra que ofereci no Simpósio Praksis, a convite da professora e dançarina
Lailah Garbero, coordenadora do evento, fiz um exercício parecido com o que
proponho aqui. Porém, lá o enfoque era discutir as construções (e algumas
contradições) dos discursos acerca das bailarinas tidas como precursoras (ou
pré-precursoras, dependendo da abordagem) do nosso estilo, trazendo
especificamente um conceito chamado “orientalismo”, de Edward Said. Aqui, longe
de querer reconstruir minha palestra, usarei um dos documentos que trouxe para
minha fala, mas nesse primeiro post eu não vou trazer respostas: ele será utilizado
para que comecemos a discussão do próximo! Vamos nos concentrar em fazer
perguntas de maneira rápida e objetiva do que um trecho desse documento
oferece.
Dos pontos que eu identifiquei acima (e que são cruciais para uma abordagem
acadêmica em história), vamos nos concentrar no 4, ou seja, na
seleção de uma fonte histórica, no 5, a nossa problemática,
e, por fim mas não menos importante, o 6: nossas referências!
Considero que sejam os três itens com os quais professoras de dança (e
bailarinas) podem trabalhar mais facilmente. Se você for trabalhar isso em seu
grupo, peço por gentileza que observe bem o item 6 - comece referenciando esse
post!
O que seria uma problemática ou problema de pesquisa? Para eu fazer uma
discussão teórica, é interessante que eu inicie por uma pergunta. O que eu
quero observar?
Problemática: Quero entender como Jamila Salimpour iniciou seu trabalho
de dança e como ela estruturou suas ideias sobre como era a dança daquela
época.
Esta
é sua problemática inicial. A partir daí, você vai fazer uma espécie de
trabalho de detetive: procurar que documentos podem te dar essas informações
(ou fazer você chegar perto). Existem variados tipos de documentos históricos.
Tradicionalmente, antes do século XX (e mesmo durante boa parte dele),
limitava-se aos documentos escritos e “oficiais”. Um documento, para ser
considerado confiável, deveria ser uma fonte oficial do estado, ou com algum
tipo de institucionalização. O testemunho de homens ricos e brancos geralmente
já bastava para ser chamado de documento, nessa época.
Hoje, nós vamos começar pelas fontes que são mais usuais e mais antigas: fontes
históricas escritas.
Esse documento você encontra no site da Salimpour School, e é um discurso da bailarina Jamila Salimpour, proferido na International Conference on Middle Eastern Dance, em maio de 1997 (Conferência Internacional de Dança do Oriente Médio, em tradução livre).
Já
que os musicistas eram em sua maioria amadores, e de uma variedade de países
árabes, a música se dava ao acaso. Raramente eles sabiam tocar a mesma peça
[musical], frequentemente indo para direções distintas, e eles praticavam
durante o show. Não se ouvia falar em ensaios. Não havia muitos músicos à
disposição, então não podíamos reclamar. Era mais fácil substituir uma
bailarina que um músico.
Todas as músicas que dançávamos eram em ritmos de [compasso] 4/4, com
waha-da-oh-noz para taqsim. Músicas como Aziza, com pausas e mudanças no ritmo,
eram então apenas tocadas entre as apresentações.
Conforme eu trabalhava e assistia dançarina depois de dançarina, eu tentava
descrever para minhas amigas da dança algumas das coisas que eu via e que eram
diferentes. Quando Tabora Najim veio dançar na cidade, foi a primeira vez que
eu vi uma queda turca e um flutter. Seu trabalho de véu era único e
coreografado. Ela terminava cada apresentação com um kashlama. Frequentemente
uma dançarina fazia um passo e então trabalhar variações em cima de um tema. Se
um movimento era similar ou relacionado a outro de alguma forma, eu os
categorizava como uma família. Eu cataloguei mentalmente tanto quanto eu podia
lembrar e incluí em meu formato [de dança].
Parte do documento de onde retiramos a citação. Adaptei a tradução para fazer sentido, mas se você tiver alguma correção a fazer não deixe de comentar! |
1.
Que tipo de documento é esse?
2.
Quem produziu?
3.
A quem se destinava?
4.
Qual a intenção da autora do
documento em produzí-lo?
5.
Do que se trata, qual o assunto
desde documento?
6.
Em que local e em que data foi
produzido?
7.
Qual o contexto de produção?
(Aqui,tente pesquisar que evento foi este)
8.
Quem preservou e disponibilizou
este documento (o original e/ou a tradução que você leu)? Com que finalidade?
9.
Quais pontos deste documento lhe
chamaram mais atenção?
10. Em relação a nossa problemática de pesquisa, é possível estabelecer algum tipo de análise ou resposta a nossa pergunta inicial?
Esse
roteiro pode ser adaptado para outras documentações: e, ao longo das próximas
postagens, pretendo trazer outros exemplos de fontes e suas análises. Se você
tentar fazer este exercício, entre em contato comigo pelas minhas redes sociais
ou pelo meu e-mail. No meu próximo texto por aqui, vamos retomar essa análise e
eu mostrarei a vocês as minhas interpretações (e indagações) a este documento!
Até a próxima história!
Referências:
- Ensino de História, livro de Kátia Maria Abud, André Chaves de Melo Silva e Ronaldo Cardoso Alves. Editora Cengage Learning, 2010.
- Jamila’s Speech at the Internacional Conference on Middle Eastern Dance, 1997. Disponibilizado por Salimpour School em: https://www.salimpourschool.com/resources/ > http://www.salimpourschool.com/wp-content/uploads/2014/12/JamilaSpeechICMEDMay1997sml.pdf
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Que história é essa?