[Que história é essa?] Uma breve introdução sobre o que são fontes históricas e como abordá-las no Tribal

 por Ana Terra de Leon

Quem tem migues historiadores sabe: somos chatas demais! As frases que a pessoa formada em História mais fala são, respectivamente: “Não é bem assim” e “É mais ou menos por aí”. Isso acontece porque, frequentemente, quando nos referimos a história de maneira geral as abordagens diferem muito da abordagem acadêmica - e isso é normal e aceitável, óbvio, mas quando você pede a opinião de uma historiadora sobre um assunto ela automaticamente vai ligar o “modo palestrinha”!

Brincadeiras à parte, vou me concentrar nesse primeiro post em explicar a vocês minha proposta. Eu o farei do jeito que explicaria num texto acadêmico, mas com uma linguagem mais acessível e a mais divertida possível. Assim, a gente balanceia o conteúdo e a sua seriedade com o divertimento e, dessa forma, todo mundo sai ganhando.

Minha ideia com essa coluna é que você que está lendo e que pratica qualquer tipo de fusão tribal (e estilos afins) possa entender como a disciplina histórica se estrutura e como tratamos os documentos históricos, ou fontes históricas, que são a base do trabalho de historiador. Eu gostaria que este espaço pudesse servir como apoio para professoras e professores que já utilizam em sua abordagem documentos históricos, mas que gostariam de tratá-los com mais profundidade e fazendo as perguntas “certas”.

Por uma dança mais crítica: o que são e como abordar fontes históricas?

A primeira fonte escrita em letras no Brasil antes de ser Brasil: a carta de Pero Vaz de Caminha, exemplo de fonte histórica. Primeira escrita em letras, pois havia escrita rupestre no Brasil antes dos portugueses.


Fonte é qualquer documento histórico que utilizamos para discutir o passado a partir do fazer historiográfico. Porém, a disciplina histórica possui uma miríade de métodos para abordar esses documentos. Para escrever um texto de história propriamente dita - e não uma cronologia, como costuma acontecer quando pessoas que não são da área se propõe a falar da “história” de algo -, é necessário:

1) escolher uma abordagem historiográfica;

2) baseada em teoria da história;

3) que segue determinados pressupostos filosóficos mais amplos;

4) selecionando as fontes históricas que darão as respostas (ou que trarão ainda mais questionamentos!) sobre o assunto sobre o qual se quer tratar;

Tudo isso a partir de:

5) uma problemática de pesquisa;

6) assinalando as referências e dando os créditos sobre as informações consultadas.

“Ok, Ana, mas eu não sou historiadora, e eu com isso?”. De fato, você, e qualquer pessoa que não seja da área, não precisa ter todas essas preocupações para falar sobre o passado! Mas é necessário entender que, para se falar de história enquanto disciplina, não basta falar do passado.

Não acredito que a história, enquanto campo, aconteça apenas da forma acadêmica. Muitos povos ao redor do mundo (e aqui no nosso país) sabem de sua história, dela se orgulham e a partir dela se estruturam para atuar em movimentos sociais e reivindicar seus direitos, mesmo sem necessariamente discutir método, historiografia, fontes…

Além de efetivo, esse processo de conhecer a própria história de maneira não-acadêmica é muito rico e nos instrumentaliza para reivindicações sociais e políticas - como no caso de povos quilombolas e indígenas, por exemplo. Muitos indivíduos desses grupos se engajam em lutas por educação e para ter sua presença nas universidades: para ter acesso à formação acadêmica; para poder contar sua própria história para pessoas que não vivem em sua realidade, e também para marcar sua presença politicamente (talvez esse seja o ponto principal! Mas isso quem poderá discutir melhor são essas próprias pessoas); para intercambiar informações com outros grupos em situação semelhante ou parentes; em ao fazer isso, estão subvertendo um espaço que até poucos anos atrás lhes excluía sistematicamente (e, sinceramente, ainda tenta fazê-lo). Embora atualmente esses povos se vejam às voltas com políticas públicas que visam minar as conquistas que têm feito nos últimos anos, são exemplos riquíssimos de como a história pode ser discutida fora do âmbito acadêmico com efetividade.

Essa digressão se faz necessária pra que vocês que me lêem compreendam que eu não defendo o academicismo necessariamente. O que defendo aqui é que outros campos podem se beneficiar de algumas discussões teóricas e abordagens da historiografia para se compreender e formular seus próprios pressupostos. E, mais, que a educação em dança tem muito a ganhar com uma perspectiva mais crítica dos documentos sobre o tribal que chegam pra gente. Quando Aerith me fez o convite para escrever pro blog, depois de assistir minha palestra no Simpósio Praksis, fiquei pensando de que maneira eu poderia contribuir para a comunidade tribal. Concluí que talvez minha formação em história seja o que mais pode auxiliar outras bailarinas, e por isso estou aqui, escrevendo sobre fontes, história, historiografia e todas essas coisas.

Conforme a gente for se conhecendo eu vou apresentando pra vocês os conceitos que eu considero mais importantes pra nós, tribalzudinhas (tribalzudinhjos e tribalzidinhes também!) do Brasil. Para que essa postagem não fique muito longa, vou me despedir com uma proposta de exercício, para o qual trarei algumas respostas possíveis em meu próximo post por aqui! Vamos olhar pra uma fonte histórica juntes?

Proposta de exercício: análise de fontes escritas - um bom ponto de partida 

Na palestra que ofereci no Simpósio Praksis, a convite da professora e dançarina Lailah Garbero, coordenadora do evento, fiz um exercício parecido com o que proponho aqui. Porém, lá o enfoque era discutir as construções (e algumas contradições) dos discursos acerca das bailarinas tidas como precursoras (ou pré-precursoras, dependendo da abordagem) do nosso estilo, trazendo especificamente um conceito chamado “orientalismo”, de Edward Said. Aqui, longe de querer reconstruir minha palestra, usarei um dos documentos que trouxe para minha fala, mas nesse primeiro post eu não vou trazer respostas: ele será utilizado para que comecemos a discussão do próximo! Vamos nos concentrar em fazer perguntas de maneira rápida e objetiva do que um trecho desse documento oferece.

Dos pontos que eu identifiquei acima (e que são cruciais para uma abordagem acadêmica em história), vamos nos concentrar no 4, ou seja, na seleção de uma fonte histórica, no 5, a nossa problemática, e, por fim mas não menos importante, o 6: nossas referências! Considero que sejam os três itens com os quais professoras de dança (e bailarinas) podem trabalhar mais facilmente. Se você for trabalhar isso em seu grupo, peço por gentileza que observe bem o item 6 - comece referenciando esse post!

O que seria uma problemática ou problema de pesquisa? Para eu fazer uma discussão teórica, é interessante que eu inicie por uma pergunta. O que eu quero observar?

 

Problemática: Quero entender como Jamila Salimpour iniciou seu trabalho de dança e como ela estruturou suas ideias sobre como era a dança daquela época.

Esta é sua problemática inicial. A partir daí, você vai fazer uma espécie de trabalho de detetive: procurar que documentos podem te dar essas informações (ou fazer você chegar perto). Existem variados tipos de documentos históricos. Tradicionalmente, antes do século XX (e mesmo durante boa parte dele), limitava-se aos documentos escritos e “oficiais”. Um documento, para ser considerado confiável, deveria ser uma fonte oficial do estado, ou com algum tipo de institucionalização. O testemunho de homens ricos e brancos geralmente já bastava para ser chamado de documento, nessa época.

Hoje, nós vamos começar pelas fontes que são mais usuais e mais antigas: fontes históricas escritas

Esse documento você encontra no site da Salimpour School, e é um discurso da bailarina Jamila Salimpour, proferido na International Conference on Middle Eastern Dance, em maio de 1997 (Conferência Internacional de Dança do Oriente Médio, em tradução livre).


Trecho do documento (com minhas marcas de leitura). 


O documento completo tem 12 páginas e está disponível para download no site da Escola Salimpour. O link estará nas referências, para que vocês também possam acessar e ler. Se você quer fazer o exercício, gostaria de fazer o exercício, mas não fala inglês e gostaria de entender o contexto, entre em contato comigo: posso te ajudar! Mas não será necessário ler o documento inteiro! Apesar de não ser tradutora, fiz uma tradução livre de um trecho e deixarei vocês com algumas perguntas sobre ele. Vamos nos deter no trecho abaixo:

Já que os musicistas eram em sua maioria amadores, e de uma variedade de países árabes, a música se dava ao acaso. Raramente eles sabiam tocar a mesma peça [musical], frequentemente indo para direções distintas, e eles praticavam durante o show. Não se ouvia falar em ensaios. Não havia muitos músicos à disposição, então não podíamos reclamar. Era mais fácil substituir uma bailarina que um músico.

Todas as músicas que dançávamos eram em ritmos de [compasso] 4/4, com waha-da-oh-noz para taqsim. Músicas como Aziza, com pausas e mudanças no ritmo, eram então apenas tocadas entre as apresentações.

Conforme eu trabalhava e assistia dançarina depois de dançarina, eu tentava descrever para minhas amigas da dança algumas das coisas que eu via e que eram diferentes. Quando Tabora Najim veio dançar na cidade, foi a primeira vez que eu vi uma queda turca e um flutter. Seu trabalho de véu era único e coreografado. Ela terminava cada apresentação com um kashlama. Frequentemente uma dançarina fazia um passo e então trabalhar variações em cima de um tema. Se um movimento era similar ou relacionado a outro de alguma forma, eu os categorizava como uma família. Eu cataloguei mentalmente tanto quanto eu podia lembrar e incluí em meu formato [de dança].

Parte do documento de onde retiramos a citação. Adaptei a tradução para fazer sentido, mas se você tiver alguma correção a fazer não deixe de comentar!


Problemática: Quero entender como Jamila Salimpour iniciou seu trabalho de dança e como ela estruturou suas ideias sobre como era a dança daquela época.


Construí um pequeno roteiro de análise:

1.    Que tipo de documento é esse?

2.    Quem produziu?

3.    A quem se destinava?

4.    Qual a intenção da autora do documento em produzí-lo?

5.    Do que se trata, qual o assunto desde documento?

6.    Em que local e em que data foi produzido?

7.    Qual o contexto de produção? (Aqui,tente pesquisar que evento foi este)

8.    Quem preservou e disponibilizou este documento (o original e/ou a tradução que você leu)? Com que finalidade?

9.    Quais pontos deste documento lhe chamaram mais atenção?

10. Em relação a nossa problemática de pesquisa, é possível estabelecer algum tipo de análise ou resposta a nossa pergunta inicial? 


Esse roteiro pode ser adaptado para outras documentações: e, ao longo das próximas postagens, pretendo trazer outros exemplos de fontes e suas análises. Se você tentar fazer este exercício, entre em contato comigo pelas minhas redes sociais ou pelo meu e-mail. No meu próximo texto por aqui, vamos retomar essa análise e eu mostrarei a vocês as minhas interpretações (e indagações) a este documento! Até a próxima história!

 

Referências:

  • Ensino de História, livro de Kátia Maria Abud, André Chaves de Melo Silva e Ronaldo Cardoso Alves. Editora Cengage Learning, 2010.



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Que história é essa?

Ana Terra de Leon (Florianópolis-SC) é bailarina de ATS® e Dança Oriental, historiadora, com mestrado em História Cultural pela UFSC e especialista em História da Psiquiatria no Brasil. Pesquisadora autônoma, coordena o Heréticas, Grupo de Estudos sobre História da Bruxaria, e o Tribus Nexum, sobre danças orientais e suas fusões. Participa da equipe organizadora do Praksis - Simpósio brasileiro de fusões tribais e é integrante do Coletivo Hunna - Historiadoras que dançamClique aqui para ler mais post dessa coluna! >>

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