por Nadja El Balady
Este artigo foi pensado
para convidar você a refletir a respeito das músicas que você escolhe para as
suas performances, sejam de ATS® / FCBD® Style ou qualquer tipo de fusão.
Não que exista algum órgão
regulador do que se pode ou não usar para dançar, mas desde os debates acerca
de apropriação cultural e orientalismo podemos lançar um novo olhar para todos
os aspectos que compõe uma performance, incluindo a música que escolhemos. É
preciso agora que você preste muita atenção ao fato de que apresento aqui minha
visão pessoal, não se trata de nenhuma regra rígida que precise ser seguida à
risca sob o risco de cancelamento virtual. Compartilho minhas reflexões, aquilo
que significa para mim montar uma performance de fusão, seja ela qual for, a
forma como penso e escolho as minhas músicas. Reconheço inclusive que muita
gente não se importa, não parece ser muito relevante para o mercado, nacional
ou internacional, pensar a respeito das músicas que usamos para dançar, tendo
isso quase nenhum impacto no sucesso que determinadas artistas alcançam.
Por que, então, é
relevante levantar esta questão?
Porque a partir do momento
em que conheço algo, não posso mais fingir que não conheço. Porque sabendo que
muitas músicas que usamos para compor performances de dança do ventre, tribal
ou não, são de propriedade de pessoas que vivem em condições difíceis de vida
por conta de uma história de colonialismo e exploração de sua força de trabalho
e que podem ter suas origens apagadas pela discriminação social, eu como
artista, tenho a obrigação de conhecer e valorizar a arte destas pessoas. No
mínimo. Existem outros motivos, como saber que faço um trabalho com
profundidade, mas este é o mais importante: Ética.
Meu primeiro conselho é um
velho amigo já repetido por tantas professoras: “Conheça a sua música”. Quando
você escolher uma música para preparar a sua performance conheça tudo sobre
ela. Sim, você precisa conhecer a estrutura da música (instrumentos, frases
musicais, melodia, andamento, ritmo), mas você precisa saber também como ela se
chama, quem compôs, quem gravou, de que país ela é e também qual a tradução da
letra. Só assim você vai conhecer a sua música.
“Nossa, Nadja, mas
conhecer até a tradução dá muito trabalho. Quero só dançar ATS®. ”
Pois é, fazer as coisas
com profundidade dá trabalho. Mesmo que você não tenha intenção de ser
profissional, se quiser colocar na prática o que a gente debate na teoria este
é um caminho inevitável: A busca pelo conhecimento, que é infindável.
Apaixone-se por isso, pois conhecer uma música, é conhecer um pedaço de uma
cultura, cultura esta que é base matriz da dança que você faz. É importante
conhecer a tradução das músicas também porque pode ser que a letra fale de
religião ou que tenha algum trocadilho de mal gosto, que seja de cunho
machista, ou ainda que conte uma história trágica. Tem a ver com a mensagem que
você gostaria de transmitir com a performance.
Em relação ao aspecto cultural, na busca pelos detalhes você encontra muitas informações como: A qual gênero musical esta música pertence, em que ano foi gravada, a qual tipo de dança popular ela está relacionada. Se for possível, tente adicionar algo na sua performance que se relacione com a cultura: Um movimento característico, detalhes no figurino, acessórios, permita que esta música influencie nas suas escolhas estéticas. Você pode começar pensando a respeito do país e gênero musical, por exemplo: Se a música é um Said egípcio, um karsilama turco, um bhangra indiano, uma rumba gitana ou um dabke libanês. Diferentes combinações estéticas para cada uma destas hipóteses.
Algumas destas danças
populares são bem conhecidas no universo das danças orientais e você consegue
encontrar vídeos e workshops a respeito do assunto. Quando a gente usa uma
música que é reconhecidamente de determinada cultura ou região e que você sabe
como ela é dançada em sua cultura de origem, pode parecer meio estranho dançar
ela de outra maneira. Eu sinto isso muito forte em relação ao uso de músicas
populares egípcias para tribal e fusões, como “Luxor Baladna” por exemplo, que
é um said egípcio. É uma música ótima para ATS®, com um excelente
andamento para tocar snujs, mas eu preciso trabalhar bastante os
elementos ghawazee para sentir que a música “casa” com a estética da
performance.
Lembra que
representatividade importa? Quando as músicas são muito tradicionais, elas têm
um grau de importância na identidade cultural de um povo. Será que alguém
daquele povo, que por ventura assista à sua performance, vai entender que mesmo
sendo uma fusão, você pelo menos procurou saber a respeito da cultura a qual a
música pertence?
O segundo conselho vem para clarear melhor as coisas: Para fazer fusão, dê preferência a músicas estilizadas, que já sejam trabalhadas com outros elementos musicais, batidas eletrônicas e arranjos modernos. Ainda é importante saber a origem das melodias e ritmos, o país e povo de origem, mas encontramos abertura artística para sair da representação cultural.
Como não existem regras
precisas, é sempre bom contar com o bom senso, com a sua própria lógica e
intuição no momento de escolher a música. No meu caso, meu parâmetro é sempre o
meu conhecimento da cultura brasileira. Eu penso que se eu quiser dançar samba no
maracatu é até possível fisicamente, musicalmente alguns maracatus têm uma
levada de caixa até parecida com samba, mas o resultado é muito esquisito, pelo
menos para mim que conheço maracatu. Principalmente se for uma toada de
maracatu muito tradicional. Os pernambucanos provavelmente iriam achar
engraçado, no mínimo. Mas se a música for um mangue beat, uma MPB, uma
música eletrônica, que tenha um baque de maracatu, eu posso usar nessa música o
vocabulário de movimentos que eu quiser: Contemporâneo, jazz, samba, afro,
ijexá, dança do ventre. Vai ficar lindo, interessante, moderno, rebuscado.
Percebe a diferença?
Outro exemplo, você deve conhecer a música “Baianá” do grupo Barbatuques, que tanta gente (incluindo eu) já fez performance de fusão com esta música, que já foi usada inclusive como tema de filme da Disney. Esta música é uma superfusão de folguedos, você sabia que ela mistura o baianá tradicional alagoano com coco de arco verde pernambucano? Tudo arranjado com percussão corporal e canto coral, o que faz a música genial e perfeita para compor uma coreografia de fusão. Já não vai ficar tão adequado se você fizer uma fusão sobre a música “Boa Tarde Povo” de Maria do Carmo Barbosa e Melo, das Baianas Mensageiras de Santa Luzia, que é a música original que o Barbatuques usou e chamou de Baianá. Você pode conferir estas duas versões nos links do youtube relacionados ao final do artigo.
Helm (EUA) – Releituras de músicas folclóricas e músicas autorais com elementos folclóricos
Agora você vai me perguntar: “Como eu vou saber diferenciar uma música tradicional de uma música fusionada? “ A resposta é aquela que você não quer ouvir: Pesquisando. Dedicando tempo a isso, ouvindo e conhecendo muitas músicas, do mundo inteiro. Lendo, se interessando, buscando.
O último conselho assina
em baixo dos outros dois: Nunca mais se conforme com uma música que tenha como
nome “Faixa 1”. Não dance uma música que você não sabe nem como se chama, por
favor. Temos internet e apps moderníssimos para usar como ferramenta
hoje em dia, o que facilita em muito a nossa missão.
A música é nossa
ferramenta de criação. Nós dançarinas dedicamos tanto tempo aprimorando nossa
técnica, por que não nos dedicar também a conhecer as músicas e também os povos
e culturas que usamos como referência estética?
Confesso que muitas vezes já dancei músicas que não conhecia muito bem, que até hoje não sei de onde vieram nem para onde foram. Já cometi gafes imperdoáveis como dançar como Khaliji uma música síria (em minha defesa, todas as dançarinas brasileiras dos anos 2000 fizeram isso ahahaha...), igualmente já presenciei inúmeras gafes com músicas folclóricas em concursos de folclore árabe e apresentações de tribal. Gafes musicais são muito comuns em nosso meio, com maior ou menor gravidade. Considero grave se alguém lança um trabalho como fruto de uma pesquisa folclórica, ministra workshops a respeito, mas usa músicas de outros povos, ou até compostas por estrangeiros, como material de coreografia. Mas uma vez o dono de um restaurante libanês em que eu dançava puxou uma roda de dabke com um said egípcio, ninguém ligou, todo mundo se divertiu. Tudo depende sempre de onde eu danço e para quem eu danço. O que eu danço e como eu danço, será consequência.
Eu dançando Baianá do Barbatuques |
Vídeos de Referência:
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Folclore em Foco