[Folclore em Foco] MENAHT e a dança do ventre

por Nadja El Balady


Você sabe o que é MENAHT? É a sigla em inglês para reunir diversos países de regiões diferentes da África, Ásia e Europa: Middle East, North African, Hellas and Turkey (oriente médio, norte da África, Grécia e Turquia). O nome oficial da Grécia é Hellas, são os estrangeiros que chamam de Grécia, nome dado durante a dominação romana. Os gregos chamam seu país com este nome devido a sua ancestral cultura helênica, que se estende também para alguns países vizinhos da região dos Balcãs.

Todos estas regiões têm em sua diversidade cultural, alguma manifestação popular que se relaciona direta ou indiretamente com o fazer da dança do ventre, de qualquer estilo. A base, os fundamentos dos movimentos principais da dança do ventre – oitos, redondos, ondulações, shimmies, batidas de quadril – são todos movimentos de danças populares diversas de países como Egito, Líbano e Turquia, de povos nativos que conhecemos com os nomes de ciganos, beduínos e berberes (que são denominações colonialistas).

Cada país tem em sua população miscigenações resultado da história de migrações e dominações culturais. Um povo estrangeiro que chega em um território para habitar (seja por conta de guerras, de fome ou qualquer causa natural), Transforma seus próprios hábitos e também influencia a cultura dos povos que já habitavam este mesmo território antes. É o que chamamos de tranças culturais e em todos os países das regiões MENAHT estas tranças culturais acontecem há milênios e são muito interessantes para quem tem sua arte conectada a estas culturas.

Tapestry Amités - Safia Farhat

Falamos muito sobre ciganos, beduínos e berberes porque, entre os diversos povos que habitam os países MENAHT, estes são fundamentais para a base da nossa dança. É importante saber que cada grupo destes significa a presença de uma infinidade de etnias, clãs e famílias, com diferentes línguas, festejos, hábitos, música e dança. Para nós que não temos contato direto é bem difícil encontrar as diferenças entre todos estes povos sem um estudo mais aprofundado. As semelhanças entre suas manifestações populares, são devido às tranças culturais que se delinearam através do tempo e da história, principalmente considerando um passado migratório e nômade de uma grande parte da população destas regiões. Cada grupo, cada cultura também é influenciado pela história das dominações, guerras, condições políticas, das imposições de uma cultura sobre a outra, incluindo aspectos religiosos.

Para conhecer as peculiaridades de cada local, é preciso estudo intensivo e mesmo em uma vida ninguém consegue saber com profundidade tudo de todos os povos, pois a diversidade é, de fato, muito grande. Mesmo assim, vale o esforço de mergulhar para conhecer o máximo que pudermos para nos enriquecermos como artistas e como seres humanos, para estar atentas às implicações sociais relacionadas à arte que praticamos.

Estas populações têm histórico nômade e ao longo do século XX passaram por grandes mudanças e restrições de seu modo de vida devido às colonizações e ocupações europeias que mudaram as fronteiras e restringiram a circulação de pessoas de uma região para outra. Países foram criados de forma artificial por interesses políticos e durante muito tempo alguns povos não tiveram acesso a direitos básicos como cidadãos dos países a qual passaram a pertencer. Apesar de a história das dominações entre os povos ser tão antiga quanto a história da própria humanidade, a presença ocidental no norte da África e em outras regiões da Ásia, foi especialmente negativa do ponto de vista do desenvolvimento social, cultural e econômico de povos nativos como os berberes (Amazigh) e beduínos, por exemplo.

A seguir seguem mapas a respeito da presença dos principais grupo étnicos na região MENAHT.

Mapa da população de origem beduína
no norte da África e oriente médio
Beduínos são árabes nômades, com origem na península arábica e que se espalharam pelo norte da África e oriente médio durante a expansão do Islã, a partir do século VII. A palavra “beduíno” significa “povo do deserto”. É maior população com histórico nômade das regiões MENAHT, ocupando norte da África, todo o oriente médio e partes da Ásia. Muitos beduínos abandonaram os hábitos nômades, apesar de alguns clãs ainda persistirem em suas tradições. A vida nômade foi se tornando cada vez mais difícil ao longo do século passado. A maioria esmagadora dos beduínos são muçulmanos, embora existam uns poucos cristãos.


Mapa da presença Amazigh no norte da África
Os grupos que conhecemos como Berberes se identificam com o nome Amazigh (povo livre), a denominação “berbere” tem origem na época da colonização romana e é considerada ofensiva. Seus idiomas e dialetos vem da família de línguas afro-asiáticas e ocupam regiões entre o Marrocos e a Argélia, principalmente a região que conhecemos como Magrebe. Durante a expansão do Islã, os amazigh se tornaram, em sua maioria, muçulmanos e assimilaram muito da cultura árabe.


“Ciganos” com o qual conhecemos o povo
Mapa das ondas migratórias rom
Roma, ou Rom, que em português significaria “homem”. População com histórico nômade, supostamente de origem indiana e que se espalhou pelo mundo em ondas migratórias, assimilando diferentes costumes e dando origem a diferentes etnias, clãs, famílias, línguas e dialetos. Durante a segunda onda migratória, no século XIV, muitas caravanas partiram para a Europa, Oriente Médio e Norte da África. Um primeiro grupo tomou rumo oeste e atingiu a Europa através da Grécia; o segundo partiu para o sul, adentrando o Império Bizantino e chegando à Síria, Egito e Palestina. Em razão da ausência de uma história escrita, a origem e a história inicial dos povos rom foram um mistério por muito tempo. Até meados do século XVIII, teorias da sua origem se limitavam a especulações.

A dança do ventre é uma grande porta de entrada cultural. Junto com a dança, vêm a música, junto com a música, a língua, com a língua os sabores e aromas e em seguida vêm a geografia, a história e os hábitos do um povo. Nos interessamos por seus folclores, por suas festas, suas cerimônias e rituais. Quem mergulha na cultura de um povo compreende melhor sua corporeidade, consegue traduzir sua musicalidade, acrescenta a si mesmo saberes e se enriquece culturalmente.

É muito importante conhecer culturas nativas MENAHT, por diversos motivos. Além de enriquecimento artístico e cultural, precisamos conhecer sua história, inclusive das dominações, das guerras, das sobreposições de uma cultura sobre outra. Existem muitos povos importantes que estão relegados à pobreza e a falta de condições sanitárias por motivos de dominação cultural e econômica e a arte também reflete a história destes povos.

Ao mesmo tempo que a dança traz visibilidade às culturas populares menos favorecidas (e isso é ótimo), muitas vezes a dançarina ocidental desenvolve um olhar superficial, romantizado, turístico e até exploratório a respeito destas culturas, o que no final das contas não vai ajudar a diminuir as desigualdades sociais desenvolvidas no sistema colonialista em que estamos todas inseridas. Todas nós que dançamos estamos implicadas nisso: Nós que fazemos ATS/FCBD®; Nós que fazemos Tribal Fusion; Nós que fazemos Fusion Bellydance; Nós que fazemos Dança do Ventre tradicional; Nós que fazemos Folclore Árabe ou de qualquer região MENAHT.

Fazer aulas com professores nativos de determinado país é de suma importância, mas vejam bem: Dentro de um país que sofreu com a colonização, existem camadas sociais diferentes. Muitas vezes o coreógrafo que tem acesso à educação artística e que trabalha na Europa, Estados Unidos e faz fama pelo mundo, não tem contato direto com a fonte cultural daquela dança que ensinam, que em geral é pobre e/ou sofre preconceito. Por exemplo: Em busca de estudar a cultura ghawazee, em vez de fazer aula com uma pessoa diretamente conectada à esta dança popular, como a madame Khariya Mazin, a dançarina faz aula com um coreógrafo egípcio. Não que o coreógrafo não possa estar desenvolvendo um bom trabalho, mas ele está tendo um reconhecimento (financeiro, inclusive) que melhor estaria sendo direcionado para quem dedica a sua vida ao fazer da própria cultura. Além disso, muitas vezes a visão do coreógrafo sobre aquela dança será tão romantizada quanto a nossa e no intuito de “elevar à condição de arte” a cultura popular, desvia o curso do dinheiro que transita apenas nas camadas sociais mais altas e nunca chega de verdade em quem mais precisa dele.

Isso não significa, de forma nenhuma, que devemos deixar de ensinar ou estudar a cultura popular da região que for. No esforço de conhecer outras culturas, de apresentar as danças de outros lugares, de passar este conhecimento a diante, nativos e não nativos prestam um grande serviço de educação e de difusão cultural, o que é a tal porta de entrada citada anteriormente, mas é preciso se preocupar também com a valorização daqueles que têm estas danças em suas vidas como tradição e identidade cultural.

Vou citar como exemplo meu próprio trabalho com o grupo Rio Maracatu no Rio de Janeiro, onde dei aulas por 20 anos de maracatu de baque virado, coco de roda, ciranda, entre outras manifestações populares pernambucanas. O Rio Maracatu foi (ou ainda é) uma grande porta de entrada para a cultural pernambucana no Sudeste. Durante os primeiros anos de existência, não se falava em apropriação cultural ou qualquer outro assunto correlacionado. Éramos jovens artistas de classe média do Rio de Janeiro, enamorados da riquíssima cultura pernambucana com a qual criávamos música e coreografia. Eu tinha acesso direto à cultura pernambucana porque meu pai morava lá e eu cresci vivenciando estas manifestações culturais todos os verões, quando ia visitar. A partir do momento em que entendemos nossa responsabilidade com esta cultura, passamos a ir sempre em Pernambuco para vivenciar, estudar e imergir no fazer do maracatu nação, tendo contato direto com os mestres em suas sedes de maracatus tradicionais. Posteriormente passamos a organizar quase todos os meses workshops e vivências com mestres, batuqueiros, dançarinos, princesas e rainhas destas nações no Rio de Janeiro. Organizamos grupos para ir até os maracatus em Recife para terem acesso a estas pessoas e a estas culturas em suas casas, em suas comunidades. Claro que esta é uma história muito resumida, existem muitas questões a respeito desta situação que precisariam de um livro para serem abordadas com cuidado. Menciono esta história aqui porque ela reflete uma transformação no entendimento de quem somos e que papel escolhemos ocupar no fazer da cultura popular ou da criação artística cênica baseada na cultura popular, que é o caso da dança do ventre tradicional, tribal ou de fusão.

Entendo também que para um grupo de maracatu é muito mais fácil levar mestres de Pernambuco para o Rio de Janeiro, do que apara uma dançarina brasileira trazer para o Brasil mestres do Egito, do Líbano ou da Turquia. Eu mesma ainda não tive muitas oportunidades de valorizar estes mestres o quanto gostaria, mas estejamos atentas a isso e se você tiver alguma oportunidade neste sentido, não deixe passar. Quanto maior vivência com estas pessoas, melhor para nós, para elas, para o mundo. Faça entender aos produtores de festivais que este é o seu desejo. Se você produz festivais internacionais, se você é uma pessoa que se arrisca em um negócio de milhares de dólares para trazer uma estrela internacional estadunidense ou russa, use este espaço para também valorizar mestres da cultura popular MENAHT. Nós, alunas dos workshops do seu festival, vamos pagar por isso também.

Khaiyria Mazin - Ghawazee

A seguir listo algumas das manifestações populares do universo MENAHT que entendo que são importantes para as dançarinas de ATS/FCBD, Tribal Fusion e Fusion Bellydance conhecerem, não só porque usamos os movimentos das danças, mas também porque usamos suas músicas para nossas apresentações. Saber de onde vem a música que você usa é tão importante quanto saber de onde vêm os movimentos. Nós artistas fazemos uma misturada danada e tudo bem. Apenas invista neste conhecimento para fazer o que você já faz com maior consciência e com menor risco de ofender alguém.

Nesta coluna “Folclore em foco” vamos abordar ainda diversas danças relacionadas aos países das regiões MENAHT, estejam atentas para mergulharmos juntas nestas manifestações populares fantásticas, ricas e que merecem nossa atenção e valorização.

Norte da África – Ghawazee; Hagalla; Awalen; Baladi; Shaabi egípcio; Said; Zaar; Nuba, Fazzani; Ouled Nail; Aalaoui; Chaabi marroquino

Oriente médio – Dabke; Kawleya

Turquia, Grécia (Hellas) e Balcãs – Roman Havasi; Chifititelli; Koulo; Chochek


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Folclore em Foco


Nadja El Balady (Rio de Janeiro-RJ) é diretora do grupo Loko Kamel Tribal Dance e proprietária do Oriental Studio de Dança no Rio de Janeiro, dedicando-se há 21 anos a estudar danças orientais. Professora de Dança do Ventre, American Tribal Style® e Tribal Fusion, com experiência internacional na Europa em shows e workshops. Estuda o Estilo Tribal desde 2005 e é uma das pioneiras da Fusão Tribal Brasileira. . Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >> 
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