[Folclore em Foco] Cultura beduína: Hagalla

 por Nadja El Balady


Por que eu, que pratico estilo tribal, preciso saber sobre Hagalla? 

Porque Hagalla é uma manifestação popular folclórica beduína que dá origem a movimentos importantíssimos do vocabulário da dança do ventre, seja tradicional, moderna, fusão ou tribal. Como estudantes, apreciadoras e praticantes de dança do ventre, é nossa obrigação saber de onde vêm os movimentos, saber o mínimo sobre a cultura de origem e valorizar esta cultura de todas as formas possíveis.

Cena filme Gharam Fil Karnak

A cultura beduína é diversa e muito presente em quase todos os países MENAHT. Na verdade, para além das fronteiras MENAHT ainda existem povos beduínos, desde o oriente médio até a Índia.  Estejamos sempre atentas para saber como a presença desta cultura ancestral afeta as diversas manifestações da arte da dança do ventre.

Beduínos são parte de um grupo árabe habitante dos desertos, povos que existem há milênios antes de cristo. Tradicionalmente se dividem em tribos ou clãs. O termo "beduíno" deriva da palavra árabe badawī. O termo "beduínos" significa, "pessoas do deserto", porém em alguns lugares é tido também como uma expressão pejorativa. As regiões de deserto não são regiões inabitadas, são plenas de povos de etnias diferentes. Embora existam registros de presença beduína em todo o oriente médio desde tempos remotos, considera-se que são originários da península arábica e durante as conquistas árabes, no século VII, expandiram-se pelo norte de África. 

A maioria dos beduínos são muçulmanos sunitas, mas existem os praticantes de outras variações do islã, como os sufi, bem como uma minoria cristã no oriente médio.

Se dedicam principalmente a atividades como criação de animais, lavoura e comércio. São de tradição nômade, isto é, durante séculos mantiveram o hábito de migrar sazonalmente entre regiões diferentes para realizar suas atividades. Este é um traço cultural cada vez mais difícil de ser mantido a partir da colonização ocidental sobre países da África e Ásia. Com a demarcação rígida das fronteiras, ser nômade passou a se tornar tarefa cada vez mais difícil.  Ao longo do tempo uma quantidade cada vez maior de pessoas de origem beduína foram adotando uma vida urbana moderna, integrando comunidades em cidades e regiões próximas a oásis.


Segundo o professor Khaled Eman, Hagalla é uma dança que não faz parte apenas da cultura popular beduína do Egito, mas também da Tunísia e da Líbia e ressalta a importância de saber diferenciar a Hagalla de cada região. No Egito, Hagalla faz parte da cultura dos beduínos da região de Marsa Matruh, noroeste do Egito, entre Alexandria e a fronteira com a Líbia. Segundo ele, Hagalla é uma palavra que quer dizer dançarina no dialeto badawya. Alguns outros pesquisadores apontam uma derivação do termos “hagl” em árabe, que significa “saltar”, mas de todo modo o termo se refere ao protagonismo da mulher que está dançando.

Atualmente Hagalla é uma celebração que faz parte de um festejo ou uma cerimônia, principalmente casamentos. No blog da pesquisadora Hanna Aisha encontrei a informação de que, na Líbia, por exemplo, essa manifestação cultural representa uma celebração ao início da vida adulta de uma jovem. Existe uma hipótese de que no passado este ritual seria usado para que a mulher escolhesse seu pretendente para o casamento, mas não encontrei nenhuma evidência que comprove esta hipótese, bastante difundida aqui no Brasil.

A música usada para Hagalla faz parte da tradição de “Kaff” no Egito. Kaff é uma forma muito interessante de fazer música com palmas e é um elemento que é incorporado em outras musicalidades egípcias como o Kaff (ou kafafa) do alto Egito ou a Sensemeya da região de Suez.

Raqs El Kaff ou Kaffafa - Alto Egito

Na década de 1960 o famoso coreógrafo egípcio Mahmoud Reda e a então primeira dançarina de sua trupe, Farida Fahmy conseguiram estar presentes a uma celebração de casamento na região de Marsa Matruh onde puderam assistir a uma apresentação de Hagalla original e desenvolveram um trabalho muito importante para palco e cinema representando esta parte da cultura beduína egípcia. A performance de Hagalla adaptada para o cinema pela Reda Trupe foi incluída no filme egípcio Gharam Fil Karnak de 1965. Ainda hoje, a adaptação de Reda é a principal fonte de estudo sobre Hagalla em todo o mundo. Muitos coreógrafos usam o estilo Reda como inspiração para suas próprias coreografias. É importante entender que por mais bonito que seja, Reda fazia uma interpretação teatral de danças folclóricas, nunca foi a intenção reproduzir fielmente as danças como as viam em sua raiz popular. Trata-se de uma estilização folclórica, como já explicado em artigos anteriores desta coluna “Folclore em foco”.

De qualquer forma, sua pesquisa de campo foi bastante rica em detalhes e o artigo redigido por Farida Fahmy, essencial como fonte de pesquisa. Segundo eles, Hagalla era uma performance celebrativa protagonizada por uma dançarina profissional durante o casamento.


A seguir, faço uma tradução livre de um trecho deste artigo publicado em seu site, onde ela descreve o que viu de Haggala no casamento em que pode estar presente há tantos anos:

“A Hagalla geralmente acontece para celebrar casamentos ou as vésperas de um enlace, ou também são é apresentada em festas para honrar visitantes ou selar um compromisso”.

“Na Hagalla há um aspecto competitivos onde diferentes grupos batem palmas chamando a solista, e aquele grupo mais forte ou carismático ganha a presença da solista perto dele. Essas palmas sofrem flutuações de dinâmica e velocidade, o que pode alterar a construção da dança. Uma mulher ou uma dupla de mulheres, dançam movidas pelas palmas de grupos de homens, que cometem entre si para ganhar a atenção das mesmas.”

“Quando o evento começou, os homens da comunidade se organizaram em pequenos grupos em formações em semicírculo. Eles ficaram ombro a ombro e começaram a cantar em seu dialeto local e a bater palmas enquanto se inclinavam para frente e para trás em uníssono. Enquanto isso, a Haggala amarrou seus quadris com um tecido parecido com uma toga - semelhante ao que os homens usavam - que é exclusivo desta região do Egito. Ela arrumou o tecido de uma forma que as dobras e babados dessem volume extra aos quadris. Ela só começou a dançar quando as palmas e o canto ganharam força. Cada formação de homens competia com os outros grupos. Os homens dançando ficaram mais animados. Cada grupo aumentou sua competição adicionando síncopes às palmas, flexões profundas dos joelhos, inclinações para a frente e intercalando seu canto com gritos de encorajamento. Al Haggala começou a dançar, o tempo todo mantendo uma atitude indiferente, recatada e reservada. Ela alternou sua atenção de um grupo para o outro e avançou em direção ao grupo que demonstrou mais zelo. Isso criou um fervor competitivo entre os participantes. Essa interação ofereceu uma dinâmica única para a dança. O movimento do quadril de Al-Haggala era basicamente uma oscilação pélvica contínua. Esta oscilação foi executada simultaneamente quando ela andava. Depois que a dança acabou, consegui uma demonstração mais próxima do movimento do quadril de al-Haggala em seus aposentos privados. A maioria das danças indígenas são aprendidas por meio da imitação. Depois de repetir o movimento muitas vezes, consegui aprendê-lo. Posteriormente, após quebrar o movimento, esse tipo de oscilação foi agregado ao vocabulário da dança e foi apresentado aos exercícios de aula da Trupe Reda.”

A movimentação da dança Hagalla é bastante focada na movimentação dos quadris, rica em torsões e shimmies. Twists, oito para trás, batidas secas verticais como o que conhecemos aqui no Brasil como “soldadinho” ou “maia quebrado”, básico egípcio, shimmies de ombro e shimmies de quadril combinados com outros movimentos, como o twist. O movimento mais usado na dança do ventre e estilo tribal é o que conhecemos como “Shimmy Hagalla”, que é um deslocamento com shimmy de 3/4 (intenção para baixo) combinado com torsão de quadril. Também encontro no vocabulário de Hagalla um deslocamento com shimmy de quadril que no vocabulário de ATS® / FCBD® conhecemos como “Turkish Shimmy”, ou (Shimmy Turco em português). A dançarina de Hagalla pode entremear sua movimentação com pequenos saltos e palmas, uma vez que as palmas são bem marcantes na encenação como um todo. A apresentação é sempre vibrante e estimula o público a acompanhar com palmas também.

A sonoridade da música beduína é bastante atraente para estilo tribal, principalmente ATS® / FCBD® com bases rítmicas comuns a muitas músicas de dança do ventre tradicional, como malfuf (ou Laff), felahi (bases 2/4), ricas em flautas bem agudas e percussão marcante. Existem músicas feitas para shows de dança que são mais trabalhadas em arranjos de violinos, com uma musicalidade mais acessível para ouvidos ocidentais, como nas músicas utilizadas pela Reda Troupe e alguns professores de folclore egípcio que trabalham na Europa. 

Uma referência musical bem interessante é o disco “Bedouin Tribal Dance”, lançado por Hossan Ramzy em 2007 com participação do grupo Gypsies of the Nile. Várias canções usadas em festividades e casamentos beduínos no noroeste do Egito foram regravadas nesta obra e são bastante utilizadas pelas dançarinas de estilo tribal mundo à fora.



Fontes

http://hannaaisha.blogspot.com/2010/12/danca-hagalla.html

https://teachmideast.org/articles/hand-clapping-egypt/

http://www.shira.net/about/reda-interview07-hagalla.htm

http://www.faridafahmy.com/haggala.html

https://www.facebook.com/watch/?v=872982859542516

______________________________________________________________________________

Folclore em Foco


Nadja El Balady (Rio de Janeiro-RJ) é diretora do grupo Loko Kamel Tribal Dance e proprietária do Oriental Studio de Dança no Rio de Janeiro, dedicando-se há 21 anos a estudar danças orientais. Professora de Dança do Ventre, American Tribal Style® e Tribal Fusion, com experiência internacional na Europa em shows e workshops. Estuda o Estilo Tribal desde 2005 e é uma das pioneiras da Fusão Tribal Brasileira. . Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >> 



Comentários
0 Comentários

Nenhum comentário:

Postar um comentário

LinkWithin

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...