[Formação no Tribal] Conteúdo: Um trabalho pedagógico

por Ana Clara Oliveira

Paulo Freire | Ilustração de Alisson Afonso. Fonte: Brasil de fato, 2021

Nas matérias anteriores, contidas em janeiro e em abril, desenvolvemos uma introdução acerca da coluna FORMAÇÃO NO TRIBAL a partir dos temas respectivos, “Em que tempo estamos na formação” e “Quando sinto que já sei” (documentário). Em nossa matéria de hoje, partiremos de uma pergunta que me entusiasma enquanto professora do estilo tribal de dança do ventre: conteúdos - qual é o conhecimento que importa na nossa dança?

Sendo direta nesse assunto amplo, é do entendimento de conteúdo, apresentado de diversas formas pelo educador brasileiro Paulo Freire, que apoiaremos os argumentos que se iniciam na presente matéria. A escolha se justifica não somente pela admiração das obras educacionais e similitude na compreensão do trabalho pedagógico, como também, por estarmos no ano do Centenário de Paulo Freire. A ausência/presença do educador nos faz recordar a importância de pensar os conteúdos através do seu imenso legado.

No livro “Pedagogia da Tolerância”, 7ª edição no ano de 2020, que reúne uma coletânea de reflexões e diálogos, Freire discute com esperança a tolerância como qualidade de conviver com a diferença e a tolerância para com a incoerência das ações pedagógicas que em muitos casos, são atos desumanizantes. Por se tratar de uma obra com 934 páginas, podemos destacar um aspecto que serve de nutriente para ampliarmos a ideia de conteúdos para nossas aulas de dança.

1 “Mudar é difícil, mas é possível” (FREIRE, 2020, p. 181): um aspecto

Freire (2020, p. 183) expõe que “é impossível ser professor sem o sonho da mudança permanente das pessoas, das coisas e do mundo”. Admite que apesar da dificuldade que temos de mudar e até considerar o saber da transformação como um rigor de trabalho, esse elemento é um compromisso mútuo que fundamenta a prática educativa, inclusive a organização dos conteúdos. Sem ele, é impossível entender que ensinar conhecimentos não é transpor informações ao educando. Um ponto relevante para Freire é a curiosidade como fenômeno vital: 

“É a partir da descoberta de você como não eu meu que eu me volto sobre mim e me percebo como eu e, ao mesmo tempo, enquanto eu de mim, eu vivo o tu de você. É exatamente quando o meu eu vira um tu dele, que ele descobre o eu dele. É uma coisa formidável”. (FREIRE, 2020, p. 185)

Em outras palavras, a curiosidade é um motor da produção de conhecimento que inserida na prática transformadora de cada realidade se torna um caminho para o ensinar. Tal trajetória convoca a curiosidade do aluno e “quanto mais metodicamente rigorosa fica a curiosidade, tanto mais a curiosidade fica crítica” (p. 189), que o aluno se transmuta em sujeito da produção de saber que lhe é ensinado. Pensando no ensino do estilo tribal, por exemplo, o que interessa não é a memorização dos conteúdos/movimentos e sim, a curiosidade crítica e, portanto, fazedora de conhecimento onde o fato de decorar passos vem como consequência da aprendizagem repetitiva vívida, reflexiva e incessante. Para tanto, Freire apresenta que aprender só se faz quando se apreende, ou seja, aprendemos que ensinar conteúdos não é depositar conhecimentos, quando apreendemos verdadeiramente essa afirmação, no momento em que se faz a apreensão do significado profundo de tal discurso. Na transcrição de uma palestra contida nesse livro, ele diz:

Quando a gente entende que ensinar não é transferir conhecimento, a gente tem todo um campo pela frente para inventar maneiras de tratar, melhorar o objeto, o chamado conteúdo que a gente vai ensinar e certas abordagens dos conteúdos e certas maneiras de experimentar e possibilitar que o aluno se experimente na relação com o conteúdo, desde que entendamos os alunos e as alunas como sujeitos criadores e nós também – como é, por exemplo, que eu posso pensar em alunos e alunas criadores, se eu, como professor, estou amarrado a um pacote de orientações que me chegam[...]? (FREIRE, 2020, p. 190 -191)

Para irmos além desse pacote de instruções no caso do ensino do “antigo” chamado método ATS ou ainda, para ofertar saberes técnicos no campo do Tribal Fusion, será necessário correr risco no que se refere ao selecionar e organizar os conteúdos, e assim, obtermos criatividade, produção e mudança no aprenderensinar dança. Nas palavras de Freire: “não há curiosidade que não seja um permanente estado de risco, como não há criação humana que seja um permanente correr riscos, uma aventura” (p. 191). 

Aqui, não se pretende dizer os conteúdos que importam. Na realidade, os conteúdos na perspectiva freiriana possuem como base a tolerância de conviver com o diferente, não com o inferior, para desenhar a partir do diálogo os saberes necessários para cada realidade. No entanto, para não sairmos daqui com certa angústia por falta de respostas mais concretas, o nosso educador brasileiro responde: “eu penso que a educação de que nós precisamos é aquela que, ao mesmo tempo que se preocupa com a formação técnica e científica do educando, se preocupa também com o que chamo de desocultação das verdades” (p. 235). Isto é, aquela educação em dança que não distorce os fatos relacionados ao estilo e também aquela pedagogia comprometida com os oprimidos nas questões de classe, gênero e raça. Enfim, uma educação não-conteudista cuja prioridade é a centralidade docente e sim, uma pedagogia em dança a partir de conteúdos significativos que, desvelados respondem com criticidade os poderes dominantes dentro e fora da nossa comunidade de dança. Obviamente, isso não é uma tarefa fácil, por isso “mudar é difícil, mas é possível” (p.181). 

Certamente, continuaremos na próxima matéria com a exploração dos conteúdos que importam, de modo mais específico com os ensinamentos do Currículo Crítico-libertador de Paulo Freire para o estilo tribal. Finalizamos a presente matéria com a imagem da artista/professora/pesquisadora da dança, Camila Saraiva, que nos inspira aos novos olhares acerca da professoralidade em dança.

Camila Saraiva: ensaio fotográfico | Fotografia: Marcelo Delfino. Ano: 2016. Fonte: @camilasaraivadance


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² “Aprenderensinar” é um conceito desenvolvido pela artista/professora/pesquisadora da dança Neila Baldi. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/23643. Acesso em: 18 de maio de 2021.

³  “Professoralidade” é um termo desenvolvido pelo autor Marcos Vilella Pereira na obra Estética da Professoralidade: um estudo crítico sobre a formação do professor, ano 2013.

Referências

FREIRE, Paulo. PEDAGOGIA DA TOLER NCIA. Organização e notas Ana Maria Araújo Freire. 7ª edição. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Paz e Terra Editora, 2020.

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Formação no Tribal


Ana Clara Oliveira (Maceió-AL) é dançarina e pesquisadora do estilo Tribal de Dança do Ventre. Professora de Dança na Escola Técnica de Artes (UFAL). Doutoranda em Artes (UFMG) onde pesquisa a formação no Tribal. Mestrado em Dança (UFBA). Diretora da Zambak Cia de Dança Tribal ... Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >>


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