[Dançando Narrativas] (Re)Criando Deuses: A pluralidade dos seres mitológicos aplicada à dança.

 por Keila Fernandes

Deuses, entidades, heróis e criaturas presentes nas variadas mitologias ou nos folclores, não são figuras estáticas. 

Todos possuem características centrais, no entanto, apresentam uma diversidade de traços que podem variar de acordo com o período e contexto dos quais fazem parte.

Portanto não devemos tratá-los como algo absoluto, ignorando suas variações, pois eles são reflexos de como determinada cultura vê e vivencia o mundo.

É importante entender o contexto, os traços culturais, políticos, históricos que envolvem os seres mitológicos e alinhar isso com a sua intenção na hora de representá-los.

Não é simples, mas a dança é uma forma de arte, e como arte ela demanda estudo, compreensão e sensibilidade. Nossa liberdade artística exige essa responsabilidade de conhecer os elementos da dança e os que a perpassam, para sempre mostrar nossa dança de forma coesa e séria. Sem desrespeitar nosso trabalho (e, consequentemente o trabalhos de outras bailarinas e bailarinos) e sem desrespeitar as histórias e manifestações de culturas diferentes.

Assim, compreendendo a profundidade das narrativas e personagens míticos e folclóricos, podemos trazê-las para nossos movimentos e expressividade.

Loki, o deus nórdico da trapaça e do caos, também associado ao fogo, é uma figura plural. Filho de gigantes e adotado pelos aesir, é uma criatura que não se encaixa em seu ambiente, e difere muito dos conceitos de honra e força apreciados pelos nórdicos e representados pelos deuses.

Apesar de ser considerado um trapaceiro e ter sido transformado em vilão pela cultura pop, Loki é muito inteligente e aparece em várias histórias ao lado de Thor. Em vários momentos é sua sagacidade que salva a pele dos dois. Além disso, é uma figura ambígua no gênero e no sexo, tendo por diversas vezes assumido um papel considerado feminino sem nenhuma vergonha, além de ter sido mãe de Sleipnir, o cavalo de Odin.

Loki com uma rede de pesca em em manuscrito islandês (1760)

Medusa é uma figura comumente vista de maneira bastante rasa. Muitas vezes é retratada como uma vilã cruel (geralmente bastante sexualizada) que transforma homens em pedra, pois se tornou um ser cheio de rancor.

Há uma relutância em explanar os motivos desse rancor. Medusa era uma bela sacerdotisa de Atena, que resistiu às investidas Poseidon e por ele foi violentada. Por conta disso, foi amaldiçoada pela deusa a quem prestava culto, sendo transformada em uma criatura que odeia homens e os petrifica com o olhar, incapaz de amar e ser amada, para acabar decapitada por Perseu. 


Medusa é uma figura trágica, um dos mais antigos casos de como funciona a cultura do estupro. E sua imagem, mesmo sendo originada de um mito nefasto, foi usada como figura protetiva em casas e templos, na forma de esculturas e mosaicos.


Mosaico de cabeça de Medusa: Museu Arqueológico de Palência, Espanha.


Outra figura feminina tratada de forma bastante estereotipada é Lilith, cuja origem se encontra em textos sumérios nos quais ela é referida como um dos sete demônios filhos do deus Anu.

Lilith era uma entidade perigosa, associada à morte de bebês e de mulheres em trabalho de parto. Ela também causava sonhos eróticos nos homens para roubar seu sêmen e dar à luz monstros.


Por conta do cativeiro na Babilônia, os hebreus absorveram muito da cultura mesopotâmica, e Lilith aparece na tradição oral judaica como a primeira esposa de Adão que, se recusando ser submissa à ele, foi expulsa e amaldiçoada por Deus a ser a mãe dos demônios.


Lilith é uma entidade complexa que se modificou com o tempo e foi se tornando algo muito diferente de sua origem. Talvez por isso existam muitos equívocos em suas representações que, atualmente, evidenciam o aspecto sensual e sexualizado, suavizando, ou até mesmo apagando, a face do feminino monstruoso.


Lilith representada presa por correntes em amuleto hebreu com os dizeres: “prenda Lilith com correntes”, século 19/18 AEC.

A deusa suméria Inanna, conhecida por ser a deusa do amor e da guerra possui uma multiplicidade de características que vão dos domínios bélicos à proteção das prostitutas. A mesma deusa cultuada pelos reis a quem prometia limpar o chão com a barba de seus inimigos, também era cultuada pelas mulheres virgens em busca um bom casamento, pelas mulheres casadas, que desejavam satisfação sexual e fertilidade e pelas prostitutas, à quem era comparada em diversos poemas, por possuir pleno domínio de sua sexualidade e buscar o prazer pelo prazer.  

Inanna com um guerreiro, apresentando prisioneiros ao rei.

Estes são apenas alguns exemplos de como os seres míticos possuem camadas que podem ser exploradas e trazidas para a dança, como ferramentas para a criatividade.

Os mitos nos trazem personagens e narrativas cheias de significado e ideais, nas quais os deuses e heróis são aquilo que os humanos almejam ser. Possuem virtudes e histórias destacando seus valores e funcionam como um fio condutor para o comportamento humano.

No entanto, os deuses foram pensados à existência pelos humanos, e assim apresentam características boas e ruins, tão comuns em nós.

Somos invejosos, ciumentos, inteligentes, belicosos, sensuais, sexualmente diversos, pois assim o são os deuses. E como seríamos seus criadores e também suas criaturas, compartilhamos com eles tais virtudes e defeitos.

Quando dançamos essas entidades, recontamos suas histórias que, de uma forma ou de outra, estão entrelaçadas com a nossa. Por meio de nossa arte, trazemos à vida deuses, monstros e heróis, tão plurais quanto nós mesmos.


Referências Bibliográficas:

DUPLA, Simone Aparecida. Quando os deuses copulavam: a sexualidade da deusa Inanna no Antigo Oriente Próximo. Temporalidades – Revista de História, ISSN 1984-6150, Edição 21, V. 8, N. 2 (maio/agosto 2016) Disponível em: <https://periodicos.ufmg.br/index.php/temporalidades/article/view/198461502128>

KINRICH, Lauren, "Demon at the Doorstep: Lilith as a Reflection of Anxieties and Desires in Ancient, Rabbinic, and Medieval Jewish Sexuality" (2011). Pomona Senior Theses. 4. https://scholarship.claremont.edu/pomona_theses/4 Disponível em: <https://scholarship.claremont.edu/pomona_theses/4/>

MILES, Helen. A collection of ancient mosaic Medusa heads. Helen Miles, 2016.

Disponível em: <https://helenmilesmosaics.org/ancient-mosaics-general/mosaic-medusa-heads/>

PERRUSI, Martha Solange. O lugar da pluralidade de deuses em oposição ao monoteísmo a partir de Nietzsche. Ágora Filosófica

Universidade Católica de Pernambuco. Cv. 1, n. 1 (2008) Disponível em: <http://www.unicap.br/ojs/index.php/agora/article/view/69>

PIRES, Hélio. Sexualidade e Divindade na Mitologia Nórdica SCANDIA: JOURNAL OF MEDIEVAL NORSE STUDIES N. 2, 2019 (ISSN: 2595-9107) Disponível em <https://periodicos.ufpb.br/index.php/scandia/article/view/47788>

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Dançando Narrativas


Keila Fernandes (Curitiba-PR) é escritora, professora de história e  historiadora, especialista na área de Religiões e Religiosidades e História Antiga e Medieval. É aluna da bailarina e professora Aerith Asgard e co-diretora do Asgard Tribal Co. Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >> 
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