por Nadja El Balady
Snujs, sagat, zills, finger cymbals, crótalos, címbalos. Se você é uma dançarina de qualquer estilo
de dança do ventre, você já está familiarizada com algum destes termos. Você
sabe que são importantes acessórios para a prática da dança, sobretudo para as
dançarinas de ATS®/FCBD Style® e folclore árabe. Mas você sabe por
que nós dançamos tocando? Sabe qual a
importância este instrumento tem em suas culturas de origem?
Venha comigo descobrir um pouco
da história dos snujs e entender o que estamos representando quando
simplesmente os colocamos nos dedos e tocamos na nossa dança.
Snujs são instrumentos
musicais, da classe das percussões leves, que atuam como guia para os outros
músicos, ajudando a manter o andamento da música igual para todos os
instrumentos. São pequenos pratos de metal, que se prendem aos dedos com
elásticos e que em conjunto de quatro unidades formam dois pares de címbalos,
sendo um par para cada mão.
Existem inúmeros
tipos, formatos, variedades e tamanhos de snujs, bem como diferentes
nomes, como demonstrado na primeira linha deste artigo. Isso acontece porque
são instrumentos ancestrais, existentes há milhares de anos e em culturas de
diversos locais do planeta: Da África à Ásia, do Marrocos à Índia, sobretudo no
Oriente Médio, encontramos indícios de que este instrumento atravessou o tempo
e permanece como traço identitário da musicalidade de diversos povos. A palavra
snujs, é proveniente do dialeto sírio/libanês utilizados por imigrantes
árabes no Brasil. Sagat é a palavra egípcia e zills é como o
instrumento é chamado na Turquia.
Os snujs podem ser feitos de materiais diferentes, com espessuras
diferentes e tamanho do diâmetro diferente também. Cada especificação gera um
som diferente. Dependendo da região, são tocados de maneira diferente também. Snujs mais finos tendem a ressoar por
mais tempo, snujs mais grossos tendem
a ter um som mais seco. Dependendo do som que se quer produzir, pode-se usar
técnicas diferentes para tocar. Existe um artigo em inglês bem interessante a
respeito de diferenças entre sagat tradicional egípcio e os zills produzidos
nos Estados Unidos, no site Gilded Serpent, escrito pela Yasmin Henkesh em
2011. O link de acesso estará no final deste artigo.
No Egito, existem sagat de diversos tamanhos: Entre 3 e 6
centímetros de diâmetro, normalmente usados por dançarinas, entre 8 e 10
centímetros, para músicos e entre 12 e 15 centímetros para rituais religiosos.
Muito se especula a respeito de
uma origem sagrada para o instrumento. Mas não são de origem sagrada todos os
instrumentos? A própria arte nasceu da catarse para expressão dos sentimentos humanos
e a tentativa de comunhão com o divino: A música, a dança, a pintura. A arte servia
aos antigos como forma de conexão entre o visível e o invisível. Existem
comprovações de uso de címbalos com diversos formatos em algumas culturas
ancestrais como antigo Egito, Babilônia, Tibete e muitos outros países da
África e da Ásia. Algumas pessoas escrevem a respeito da elevação do astral do
ambiente, atribuindo ao som emitido pelos címbalos características positivas e
alegres. Outras pessoas ainda afirmam a capacidade de que o som teria de
afastar os maus espíritos e por isso serem tão importantes em templos e
atividades religiosas. Apesar destas afirmações terem mais ou menos indícios de
comprovação, nunca foi de meu especial interesse estabelecer certezas neste
sentido, pois ao longo do tempo os címbalos foram mudando de formato, material
e também de função cultural, antes que chegasse na prática da dança do ventre
como conhecemos.
Ainda sobre o uso sagrado dos snujs, é importante saber que a música árabe tem uma tradição antiga de música religiosa. A música islâmica medieval se voltava constantemente para o sagrado, assim como sagrado era o uso dos instrumentos. A partir do momento em que a música atinge outros objetivos sociais além do louvor, também o uso dos instrumentos musicais ganha um outro significado, servindo para celebrações, para a guerra, para situações cotidianas e assim se torna um elemento da identidade cultural de cada povo e é a partir deste ponto de vista que os snujs ganham importância para quem dança.
Sendo usado como
acessório fundamental da dança em locais diversos do norte da África, vamos
encontrar registros abundantes do uso de snujs no Egito, onde o
instrumento é conhecido como “sagat”. O sagat está integrado ao
cotidiano musical do povo egípcio e o uso em conjunto com a dança faz parte da
tradição cultural. Não conheço registro preciso de quando o sagat foi
incorporado à dança, mas se sabe que durante a idade média já era utilizado
inclusive como forma de entretenimento agregado a apresentações de grupos de
músicos e dançarinas em celebrações e ocasiões especiais. A partir de meados do
século XIX, encontramos evidências de duas classes de dançarinas profissionais
atuando no Egito: As Awalen e as Ghawazee. Ambas as classes de
dançarinas profissionais existiam durante a idade média, desde o período
otomano, sobrevivendo e se adaptando às transformações da cultura egípcia. Awalen
era uma classe de mulheres profissionais da música e da dança que, eram
educadas para se tornarem artistas. Atuavam principalmente nos centros urbanos
do Cairo e Alexandria. Ghawazee é uma palavra para descrever a função de
artista desempenhada pelas mulheres de etnias relacionadas ao povo Dom, entre
eles algumas famílias que se identificam como etnia Nawar, que teriam migrado para o Egito na idade média, trazendo em
sua tradição a prática da performance pública como forma de sustento. Essas
pessoas são conhecidas como os “ciganos egípcios” (termo pejorativo, com o qual
muitos não se identificam), tendo sofrido toda sorte de preconceitos ao longo
da história recente do Egito. A dança ghawazee é uma arte considerada
vulgar desde a invasão francesa no final do século XVIII, forçada a deixar os
centros urbanos e migrar para as regiões rurais, se adaptando aos costumes de
cada local. Seguiram realizando sua forma de arte espontânea e familiar a
contento do povo da zona rural em suas celebrações, levando consigo a
identidade cultural da região onde atuam, sendo reconhecidas como tal. Ghawazee
e Awalen, apesar de diferentes em termos sociais e étnicos, eram semelhantes em
suas performances no período do final do século XIX até a metade do século XX.
Usavam figurinos semelhantes e sempre usavam sagat em suas performances.
Uma marca das performances ghawazee e awalen.
Nos centros urbanos do
Egito, estas duas classes de profissionais da dança aos poucos foram sendo
substituídas por uma terceira classe: A dançarina oriental (raqisah), educada no contexto artístico
para performances em teatro, casas de show e cinema. Podemos ver nos filmes do
período considerado como “era de ouro” do cinema egípcio, performances de
dançarinas que sempre usavam sagat para ilustrar cenas de celebrações populares
e folclóricas. Pouco a pouco o uso dos sagat foi sendo limitado à
representação folclórica nos shows de dança. Embora exímias tocadoras de sagat,
as dançarinas profissionais foram deixando de tocar nos longos shows egípcios,
deixando para tocar no trecho folclórico do show. Nos dias de hoje alguns shows
não têm nem mesmo o uso do sagat pela dançarina, principalmente tendo em
vista que uma grande parte das profissionais que atuam no Egito são agora
estrangeiras.
Nos Estados Unidos, o instrumento
chegou junto com as ghawazee que para lá migraram e influenciaram as
primeiras dançarinas de belly dance profissionais. Os zills, como
são mais conhecidos por lá, se tornaram parte imprescindível da performance do
estilo “cabaré americano”, que é como a estilização da dança do ventre passou a
ser conhecida nos Estados Unidos. Dominar diferentes padrões de toque para zills
é fundamental para a dançarina profissional estadunidense. Elas usam os
instrumentos para diversos fins, inclusive para abrilhantar solos de percussão,
onde exibem destreza e agilidade de toque na composição musical. Zills
são importantes para cativar a atenção do público e criam uma conexão cênica
perfeita entre música e dança.
A famosa Jamila Salimpour, que
durante as décadas de 60 e 70 formou muitas dançarinas profissionais, tinha o
uso de zills como obrigatório em seu formato. Sua filha Suhaila deu
continuidade ao seu legado formando pelas décadas subsequentes incontáveis
dançarinas que precisam dominar os zills para terem sua formação completa.
O formato Salimpour foi o ponto de partida para o surgimento da estética tribal
que se desenvolveria ao longo das décadas de 80 e 90, levando este elemento
étnico e ancestral como parte fundamental do estilo tribal americano.
As praticantes das fusões
aprendem a tocar os snujs, mas muitas
vezes não entendem bem o porquê. Quem estuda o folclore árabe, aprende a
relação do instrumento com as danças populares.
Toda a estética tribal se inspira
na música, movimentos e figurinos usados pelas mulheres em suas danças
populares no norte da África: Das tribos nômades do povo Amazigh
(Berberes), das ghawazee egípcias aos povos beduínos do Oriente Médio. O
estilo tribal carrega em si estas referências importantíssimas da origem
popular da dança do ventre, tendo no uso dos zills a conexão definitiva
com povos que ao longo do século XX sofreram inúmeras perseguições culturais,
tendo suas tradições massacradas pelo colonizador europeu, sofrendo
preconceitos e limitações sociais e econômicas.
A classe das awalen
não mais existe e as ghawazee estão em extinção. As dançarinas naiyliat
(ouled nail) da Argélia também. Para nós ocidentais, praticantes de uma
arte que tem origem tão antiga e diversa, saber quem são, quem foram e qual a
importância da dança nas vidas destas mulheres é uma questão de se reconhecer
como mulher que dança. É entender a ancestralidade da dançarina, suas raízes.
Uma arte que muitas vezes era transmitida de mãe para filha. A dança era para
elas meio de vida, como é para muitas de nós. Meio de vida não apenas como
forma de pagar as contas, mas também como forma de afirmação da vida e de
celebração de suas tradições. A arte é parte fundamental da identidade de um
povo. Ao colocar os snujs nos dedos, estamos fazendo algo muito maior do
que simplesmente tocar um instrumento musical na intenção de demonstrar
agilidade. Estamos nos conectando a mulheres de povos distantes, de tempos
remotos, estamos dando prosseguimento a uma tradição. A dança do ventre se
espalhou pelo mundo no século XX e seguiu, se adaptando, se transformando de
acordo com a passagem do tempo, de acordo com o local e história corporal das
mulheres que a praticam. Uma prática que nos conecta a estas mulheres da
história, às suas descendentes e respectivas culturas. Quando tocamos snujs,
trazemos um pouco delas conosco. Quando tocamos snujs, as representamos
para o nosso público. Quando tocamos snujs, evocamos os mistérios do
tempo e de coisas que fogem à nossa compreensão.
Que possamos elevar a nossa
consciência no uso das coisas por entender que as coisas carregam consigo
memórias escondidas de sua história e que ao usá-las estamos fazendo parte, nos
integrando a este fluxo de tempo que dá continuidade a esta mesma
história. Olhe para seus snujs e pense nas mulheres que tocam desde
tempos remotos até hoje. Honre estas mulheres e os povos de sua origem.
Propague a beleza da cultura viva que se espalha em forma de arte e não esqueça
que você também faz parte disso.
☛ Indicação de leitura complementar:
You say zills, I say sagat -
Yasmin Henkesh, Gilded Serpent, 2011.
http://www.gildedserpent.com/cms/2011/04/25/yasmini-zills-sagat-difference/
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Folclore em Foco
Nadja El Balady (Rio de Janeiro-RJ) é diretora do grupo Loko Kamel Tribal Dance e proprietária do Oriental Studio de Dança no Rio de Janeiro, dedicando-se
há 21 anos a estudar danças orientais. Professora de Dança do Ventre, American Tribal Style® e Tribal Fusion, com experiência internacional na Europa em shows e workshops. Estuda o Estilo Tribal desde 2005 e é uma das pioneiras da Fusão Tribal Brasileira. . Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >>