por Monni Ferreira
Na
semana de 06 a 10 de julho de 2020 aconteceu a terceira edição do Fórum Orienta
- Diversidade promovido pela Revista Shimmie desta vem numa versão online no
perfil da revista no Instagram. A proposta consistia em realizar um ciclo de
lives para debater sobre racismo e preconceitos dentro do segmento da dança do
ventre bem como as suas consequências tanto para aqueles que praticam quanto
para o próprio mercado.
O
projeto foi idealizado e elaborado pela bailarina e professora Angela Cheirosa,
pioneira nos debates sobre a questão racial dentro da dança do ventre. Durante
uma semana, Cheirosa assumiu o comando do perfil da Revista Shimmie para conduzir
as lives com participação das também bailarinas Joice Amaral, Eliza Fari, Monni
Ferreira, Shirlei Cunha e Jessie Ra’idah.
Já
na primeira noite foi possível perceber a potência deste evento. Angela
Cheirosa abriu a semana falando sobre racismo estrutural e contextualizando o
legado deixado pela escravidão na construção da sociedade brasileira. Foi uma
noite de muita emoção, lágrimas e revelações. De forma cronológica e didática, Cheirosa demonstrou como o racismo se apresenta na nossa sociedade e como os
danos e as mazelas oriundas da escravidão no Brasil são colhidos até hoje.
Ela falou
sobre a história do Brasil e da colonização a partir da perspectiva de uma
mulher negra e que esta não é a história contada nos livros didáticos, uma vez
que estes livros contam a história pelo viés de quem escravizou.
O
racismo estrutural é a formalização e a normalização dos costumes racistas que
são continuamente representados dentro da sociedade e que pautam as nossas relações, uma vez que estamos inseridos neste sistema e muitas vezes nem percebemos que
praticamos estes costumes. Não adianta afirmar que racismo não existe ou que
todos somos iguais ou ainda se posicionar afirmando que não enxerga cor quando
na prática somos indivíduos completamente diferentes uns dos outros e somos
julgados por isso. É preciso entender que estruturalmente somos racistas uma
vez que estamos inseridos numa sociedade que normaliza atitudes racistas e que o
racismo está inteiramente relacionado a perdas, a desvantagens, a tudo que tira
direitos, espaços e até a vida.
É
possível afirmar que esta live foi, na realidade, uma verdadeira aula super
necessária para contextualizar tudo que ainda seria levantado nos próximos
dias. Além de bailarina e professora, Cheirosa é também coreógrafa, produtora
cultural e mantenedora do projeto social Flor de Lótus em Camaçari (BA), que há
oito anos empodera mulheres através da arte da dança. Sua luta pela
democratização da dança já dura muitos anos e neste momento de explosão da luta
antirracista se faz necessário ressignificar tanto a história da Revista
Shimmie, quanto a própria dança do ventre. Durante toda live ela frisou que
este debate seria para aquelas pessoas que se importam e querem fazer parte da
solução deste problema e ainda enfatizou que todas as reflexões abordadas
durante a semana não representariam em totalidade todas as pessoas negras, pois, acima de tudo, existe o respeito pela individualidade. Cheirosa também destacou
como marco histórico da ressignificação da dança do ventre no Brasil: a edição
da Revista Shimmie em que ela foi capa no ano de 2017.
A
segunda noite de debates teve como tema as estratégias de combate ao racismo na
dança e contou com a participação de Monni Ferreira e mediação de Angela Cheirosa.
Para iniciar fez-se necessário pontuar que o racismo não ocorre apenas quando
há violência física uma vez que existe todo um sistema social que corrobora
para a normalização de práticas racistas que passa pela falta de legitimidade
das religiões de matriz africana até a marginalização do indivíduo pela cor da
sua pele. Dito isso, é possível entender que o racismo estrutural valida a
ausência de corpos negro em situação de protagonismo e que tanto a falta de
pertencimento quanto a falta de representatividade promovem a invisibilidade
destes corpos de geração em geração.
De
forma pratica, o que observamos ao longo dos anos dentro do cenário da dança é
o apagamento de corpos negros naturalizando, por exemplo, o embranquecimento da
dança do ventre e dos deuses egípcios mesmo o Egito sendo um país do continente
africano. Com isso é possível entender as reflexões colocadas quanto a
existência do racismo na dança:
Tal
provocação surgiu de um incomodo antigo quanto a falta de representatividade e
consequentemente de protagonismo negro na dança. Quando paramos para contestar
estes questionamentos é necessário pensar que esta não é uma questão
individual, mas sim a reprodução de toda uma estrutura que considera natural a
ausência desses indivíduos. Por isso é tão importante romper com este padrão
estrutural para enfim mudar o cenário atual.
Para
isso foram apresentadas diferentes formas de possibilitar esta mudança, como, por exemplo, consumindo, contratando e divulgando o trabalho de profissionais
negros, com o intuito de dar oportunidade para estes artistas. Outras ações pontuadas
foram:
- Produtores de eventos e escolas de dança:
assumir a missão de ter diversidade em seus eventos, escolas, workshops,
concursos e etc. Questionar a ausência de estudantes negros (as) em suas salas
de aula. Tornar acessível a entrada destes indivíduos através de políticas de
acessibilidade. Abolir regras racistas como padrões de beleza em suas
avaliações;
- Bailarinos (as), alunos (as) e
consumidores (as) não negros (as): questionar os
eventos e escolas sobre a falta de profissionais negros e se posicionar quanto
a ausência destes indivíduos. Não consumir o que não tem diversidade;
- Bailarinos (as), alunos (as) e
consumidores (as) negros (as): consumir e conhecer o
trabalho dos seus comuns. Não consumir o que não te representa ou aquilo em que
você não se enxerga.
Na
terceira noite do fórum contamos com a presença de Eliza Fari e Joice Amaral
contando um pouco da trajetória delas na dança do ventre enquanto bailarinas
negras e também falando sobre concursos e carreira. Como uma das primeiras
bailarinas negras de dança do ventre no Brasil, Eliza traz em sua bagagem uma
história de muita determinação e superação. Após sofrer um acidente de carro
onde fraturou as duas pernas e os dois braços , ela precisou passar por um longo
e doloroso processo de recuperação para continuar dançando. Anos depois do
acidente, já como bailarina profissional e professora de dança, Eliza percebeu
que existia um padrão no mercado ao qual ela não se encaixava, então não
bastava conhecer os ritmos árabes, dominar o estilo clássico, estudar muito e
fazer inúmeros workshops, ela precisava se enquadrar no perfil exigido pelo tal
mercado da dança. Por conta disso, Eliza passou a alisar e parou de cortar o
cabelo, começou a tomar remédio para emagrecer e parou de pegar sol na praia
para não escurecer mais a pele. Em toda sua trajetória, Eliza viu muitas colegas
também bailarinas desistindo dos seus sonhos e carreira na dança por conta
deste padrão estético e para ela é preciso ter muita maturidade para perceber o
quão violento é este sistema dentro e fora dos palcos.
Já
como bailarina padrão casa de chá, em viagem ao Egito, Eliza chegou a ser
comparada a Mona El Said pela banda de Soraia Zaied exatamente por ter um
quadril tipicamente egípcio. Após conquistar o 1º lugar na categoria solo
profissional de dança oriental no festival internacional Ahla Wa Sahlan, realizado
no Cairo em 2018, Eliza voltou para o Egito um ano depois, agora como uma das
mestras deste mesmo festival para ministrar uma aula de construção coreográfica
para o quadril. Apesar de tantas conquistas, ao voltar para o Brasil, Eliza
percebeu que havia um certo boicote e apagamento com relação a sua ascensão
como bailarina profissional internacional, o que nos faz questionar: Será que esta
baixa repercussão aconteceria se Eliza estivesse dentro do padrão estético aqui
exigido?
A
segunda hora desta live contou com a participação de Joice Amaral que relatou
como é ser bailarina de dança do ventre em Salvador (BA), onde inúmeras
oportunidades de trabalho lhe foram negadas por parte de contratantes que chegavam
a questionar se não haveria uma bailarina com mais cara de dança do ventre para
o seu evento. Ela ainda contou que a maioria das oportunidades recebidas para apresentar
o seu trabalho vinham de convites de amigos e que a sua maior motivação para
entrar em competições foi justamente ser notada e ter o seu trabalho
reconhecido. A busca pelo selo padrão de qualidade Khan el Khalili nada mais
era do que a oportunidade de se tornar uma bailarina conhecida no mercado da
dança, mas ela ainda alertou que para atingir este objetivo muitas vezes se faz
necessário ser aquilo que você não é apenas para se enquadrar num padrão
exigido.
Falando
especificamente sobre avaliações em bancas para obter selos de qualidade e
conquistar colocações em concursos, ela comentou que geralmente existe um
critério de avaliação chamado aparência que deveria ser questionado e abolido
pelo mercado da dança. Afinal, o que exatamente configura uma boa ou uma má
aparência na dança do ventre? Joice também levantou o questionamento quanto a
presença de profissionais racistas que se aproveitam deste tipo de critério
para avaliar mal bailarinas em premiações por conta do cabelo afro, dos traços negroides,
do quadril largo e etc. Quantas oportunidades e quantos talentos não foram
perdidos por conta deste padrão?
Joice
contou que para iniciar os estudos na dança do ventre ela precisou do apoio
financeiro de toda família, pois aulas de dança não seriam prioridades naquele
momento. Um dos seus sonhos realizados foi estudar com Fernanda Guerreiro, que
é sua maior inspiração na dança, tendo todo suporte necessário ao longo dos
anos para desenvolver sua carreira na dança. Já como bailarina profissional, e
atualmente consagrada bicampeã do Festival Shimmie São Paulo, Joice relatou o
quão solitário e pesado é ser a única negra ou uma das poucas negras no camarim
dos eventos. Esta solidão sentida não é confortável, é necessário haver companhia
e dividir o peso de representar tantas outras bailarinas pretas que se enxergam
nela, que se sentem representadas por ela, por isso para ela errar não é uma
opção.
A
mestra e doutoranda em educação Shirlei Cunha trouxe para a quarta noite deste
ciclo de lives o enfrentamento ao racismo através da educação. Formada em Letras,
pós-graduada em psicopedagogia e mestra em educação para formação de
professores, Shirlei pontuou o quão importante é a educação no combate as
práticas racistas existentes até hoje. Para ela, o racismo é aprendido ainda
dentro de casa através dos exemplos disponíveis no âmbito familiar. Já na
escola muitos destes exemplos seguem sendo reproduzidos fazendo com que este
ambiente infelizmente seja um grande propagador do racismo na sociedade. Ela
ainda comenta que qualquer pessoa que se propõe a dar aula tem que ter o
compromisso com a pedagogia e não apenas em passar o conteúdo, é importante se
preocupar com a didática em sala de aula e suas implicações na vida dos
indivíduos.
Ainda
na infância já é possível perceber um tratamento diferenciado entre crianças
negras e não negras por parte dos educadores que tratam episódios racistas como
brincadeira de criança. O que era pra ser um ambiente seguro torna-se cenário
de ridicularização do ser negro que, por exemplo, precisa “arrumar” o cabelo
para não chegar na escola com ele “bagunçado”. É neste ambiente que crianças
negras experienciam pela primeira vez o prejulgamento e a rejeição, aprendendo
erroneamente que se você não falar do racismo ele não vai existir e que é
preciso ser forte e não se abater com certas “brincadeiras”.
Shirlei
também comentou que o que possibilita acabar com o racismo hoje é a educação.
Por isso é tão necessário se policiar para não reproduzir discursos e atitudes
racistas em salas de aula e em nossas vidas. Quanto maior o conhecimento, maior
será a percepção e atuação frente a situações discriminatórias em ambientes
pautado no mito da democracia racial. O questionamento é a primeira ferramenta
crítica da educação e sendo a nossa educação ainda tão racista precisamos
agora, a partir de todo aprendizado adquirido, pautar nossas ações dentro de
uma educação antirracista.
Pra
fechar o ciclo de lives com chave de ouro, tivemos a contribuição de Jessie Ra’idah
falando sobre o mercado da dança do ventre e o racismo. Para iniciar o debate
foi pontuado que só existe mercado quando há uma relação de troca onde tem alguém
remunerando e alguém sendo remunerado. Como artista profissional da dança e do
teatro também formada em design gráfico, atuando como produtora de evento e há
12 anos trabalhando profissionalmente com dança, Jessie avalia a necessidade de
pensar no mercado de dança do ventre de forma abrangente, incluindo outros
estilos como o próprio folclore árabe, o Tribal Fusion, as danças étnicas como
as danças ciganas, entre outros. Ainda é possível pensar e subdividir este
mercado em dois: um com remuneração financeira e outro onde a remuneração ocorre
em forma de prestigio. Pensando no mercado de remuneração financeira é possível
destacar serviços como aulas, shows, festivais, ateliês de figurinos,
palestras, eventos privados, fotografia e etc, enquanto que no mercado de
remuneração por prestígio o valor recebido é em visibilidade e autoridade.
Jessie
também propôs uma reflexão a partir de alguns questionamentos:
·
Pra quem é esse mercado? Podemos contar com
ele?
·
Existe qualificação suficiente?
·
Existe oportunidade real de trabalho e remuneração
equivalente?
Como
a dança é uma arte de alto investimento, ela ainda pontuou a importância de se
ter um propósito muito bem definido e alinhado com o caminho que cada um deseja
trilhar dentro da dança para que não haja frustração. Pensando no mercado de
dança do ventre é possível encontrar aulas que visam o entretenimento e aulas
com objetivo de formação profissional, por exemplo. A falta de direcionamento e
propósito alinhada a falta de regulamentação acaba gerando profissionais
despreparados e prejudicando o profissionalismo dentro da dança o que favorece
a desvalorização da arte dentro dela mesma.
Pra
fechar a noite, Jessie e Cheirosa ainda explicaram que não adianta tratar a
dança do ventre como um passatempo e exigir resultados de profissão, pois não haverá
resultado sem investimento de vida. É necessário pensar no propósito, no
caminho e no investimento disponibilizado pra fazer acontecer. Elas ainda reiteraram
a importância de proporcionar um ambiente seguro para bailarinas negras em sala
de aula, concursos, eventos e etc, pois são elas que mais sofrem com o padrão
estético imposto por este mercado. A luta antirracista deve ser de todos, mas é
imprescindível respeitar e reconhecer a voz de quem fala, de quem sente a dor
pelo não pertencimento. Ao olhar para uma tendência mundial atual o mercado de
dança do ventre precisa entender que se não houver diversidade não haverá
consumo, afinal vamos consumir aquilo que nos representa.
O 3º
Fórum Orienta – Diversidade foi sem dúvida um evento de grande aprendizagem e
conscientização para todos que participaram. O momento atual pede mudanças em
diferentes âmbitos da nossa sociedade e não podemos mais fechar os olhos para
os efeitos do racismo dentro do mercado da dança. Se omitir apenas legitima a
normalidade quanto a ausência de corpos negros dançantes, mas esta não é mais
uma opção. O que conta agora é entender o que ainda está errado e fazer parte
da solução do problema. Seja atento e vigilante as suas falas, as suas
práticas, ao seu trabalho, para o que você consome e o que não consome. Você
está a serviço do racismo quando você não se importa, quando você naturaliza,
não questiona e não reconhece os seus privilégios. Uma vez adquirida a
consciência não há mais espaço para omissão, é preciso agir.
Quer
conferir tudo o que rolou no 3º Fórum Orienta – Diversidade? Então acesse o
perfil da Revista Shimmie no Instagram e aproveite para maratonar todas as
lives desta semana de muito conhecimento, troca e emoção.
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Sankofa
Monni Ferreira (São Paulo-SP) entrou para o mundo da dança com 10 anos de idade e durante toda a sua trajetória nesta arte teve a oportunidade de vivenciar diferentes estilos de dança, como: árabes, contemporâneo, afro, moderna, street dance, brasileiras, flamenco, indiana, ballet, entre outras.Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >>