Desde
a primeira apresentação feita no Brasil por Zuleika Pinho em 1954, passando
pelo trabalho de Shahrazad Shahid nos anos 70 e tendo seu auge nos anos 2000
com a transmissão da novela O Clone, a Dança do Ventre percorreu um longo
caminho dentro da cultura artística brasileira, sendo influenciado pelos
corpos, ritmos e leituras locais. De Sambuka (solo percussivo de Artem Uzunov)
até as recentes performances fusionadas com músicas afro-brasileiras; a leitura
ensinada às bailarinas que adentram a Dança do Ventre permanece sofrendo enorme
influência de outros estilos embranquecidos como o Balé e o Jazz. Sendo assim,
o que essas influências geram de diferença na leitura dos movimentos em corpos
pretos e brancos?
Se
você é uma bailarina preta ou bailarino preto já deve ter sido instruído a
“segurar” seus movimentos para que sua leitura fosse mais suavizada e fluida de
forma análoga aos movimentos de bailarinas clássicas. Pés em En dedan e En
dehor criam o costume da base onde seu corpo irá reverberar movimentos
milimetricamente calculados para a leitura musical Belly Dance, principalmente das
conhecidas Rotinas Orientais (já não tão orientais assim).
Imagem ilustrativa da posição básica dos pés aplicada nas danças clássicas |
De
acordo com os estudos realizados por Bejan, Jones e Charles (2010) em “The
evolution of speed in athletics: why the fastest runners are black and swimmers
white” (A evolução da velocidade em atletas: porque os corredores mais
rápidos são pretos e os nadadores brancos), até mesmo em atividades de
atletismo existem diferenças antropométricas (parte da antropologia que trata
da mensuração do corpo humano ou de suas partes) entre pretos e brancos devido
a uma diferença de 3% na posição do centro de gravidade. Com isso indica-se que
pessoas pretas tenham um centro de gravidade acima, o que proporciona maior
desenvolvimento na realização de atividades que exijam maior desempenho da
parte inferior do corpo (no estudo é demonstrado pelo atletismo) enquanto que pessoas
brancas possuem um maior desenvolvimento na realização de atividades com a
parte superior do corpo (no estudo, demonstrado através da natação).
E cá
estamos... nesse momento nos questionando sobre o porquê de uma dança de berço
africano, e que tem como essência uma leitura musical que mais se aproxima dos
nossos corpos, é ensinada no Brasil, onde pretos e não-brancos são maioria,
através de uma base embranquecida que ao invés de nos estimular ao uso de
movimentos que nosso corpo conhece através de uma ancestralidade inerente,
somos instruídas a segurar nossos intensos quadris e nos adaptar a uma leitura
mais clássica, mais “Belly”, tendo como referência maioritariamente pessoas com
centros de gravidade mais baixos e consequentemente ocupando um maior espaço de
notoriedade. Não faria mais sentido que nós ocupássemos esse espaço de
visibilidade?
Mulher Núbia |
E
mesmo se focarmos especificamente em nossos corpos brasileiros, excluindo por
um segundo os movimentos que aprendemos na dança do ventre; danças como o
Samba, Carimbó e Jongo tem como raíz uma percussão trazida por nossos ancestrais africanos e que
nos é passada desde a infância, pois são danças que por muito tempo foram tidas
como “coisa de preto” e mais comumente tidas nos subúrbios e periferias. Logo,
nossos corpos (que podem vir a manifestar leituras de diversas intensidades) já
possuem em sua memória muscular a naturalidade da leitura percussiva.
Mas
a realidade é que essa origem da dança não nos é apresentada quando iniciamos
nossa jornada na dança do ventre e suas fusões. Através de um fetiche
“Jadiânico”, cria-se a imagem que uma bailarina deve ter cabelos longos, lisos
ou ondulados, barriga chapada, busto e quadril modestos, figurinos luxuosos, mas
principalmente... branca. Esse estereótipo reforçado por cartazes de shows de
gala, casas de chás e concursos são na verdade um grande balde de água fria
para nós que entramos na dança seduzidas por uma proposta de sororidade e
sagrado feminino, mas que somos invisibilizadas pelo Mercado a ponto de não ter
como referência para nossa dança uma maioria de bailarinas pretas.
Personagem Jade da novela 'O Clone' |
Mulher Egípcia |
Agora
vamos pensar na nossa estrada como bailarina. Pense em todas as suas vivências
dentro da dança e responda as perguntas abaixo:
- Quantas vezes você já pensou em alisar seu cabelo (ou pediram para você alisar)
para se encaixar no padrão existente em concursos ou coreografias de grupo?
- Você já se viu constantemente ocupando posições de fundo ou canto de palco nas
coreografias de grupo?
- Já recebeu avaliações em concurso que mencionavam seu cabelo, seu corpo ou
qualquer coisa da sua aparência mesmo que indiretamente para justificar
desconto de pontos?
- Quantas vezes você já se viu como a única pessoa preta dentro de um espaço de
dança?
- Qual posição você aparece na maioria das fotos de grupo: Fundo, canto ou em destaque no centro?
Tais questionamentos não têm como objetivo criar uma indisposição entre você e o seu local de estudo da dança, porém tem como objetivo muito direto cultivar um pensamento crítico para que não nos deixemos colocar em uma posição de submissão perante o Mercado, pois também é o nosso dinheiro que alimenta essas posições, então nós temos o direito de reivindicar que ele nos contemple como artistas e consumidoras da arte de outras profissionais.
Felizmente, desde 2018, nos juntamos em uma tomada de consciência simbolizada pelo Movimento
Bellyblack. Através dele construímos espaços de poder e visibilidade preta para
contrapor diretamente a prática de “Dividir e conquistar” utilizada pela
branquitude e que nos separa e oprime, fazendo com que haja uma sensação de não
pertencimento em uma dança que surgiu junto a nossa ancestralidade. O que faz
crescer uma corrente de acolhimento e incentivo para a leitura que nosso corpo
genuinamente se propõe a construir, além da aceitação da nossa diversidade
estética, fenotípica e de pensamentos que fazem nascer novos debates que só
tendem a nos empoderar e enriquecer.
Página da Revista Shimmie com artigo sobre Movimento Bellyblack |
Faz
parte da descoberta e construção do nosso corpo negro enquanto diáspora
entender que vem da nossa ancestralidade a força que constitui nossa essência e
que a ciência estuda e comprova que nosso centro de gravidade, ou seja, o que
nos equilibra na vida, se aproxima do nosso coração e consequentemente do nosso
sentimental. O que nos equilibra enquanto artistas é o sentimento vivo que
emanamos em nossa dança, é o axé que reverbera em nossos quadris e a força da
nossa raiz que evocamos a cada passo, giro e expressão que fazemos. Nossa
estética expõe sem pudor o orgulho que temos de ser pretas e de nos posicionar com
firmeza enquanto comentários, antes tão normalizados sobre nossa leitura de
dança e aparência, se enfraquecem diante do reconhecimento inegável da nossa
presença nesse espaço. Porque já fizemos entender que estamos aqui, somos
muitas e temos uma dança de exímia qualidade que carrega em cada movimento a
essência de nossos ancestrais.
Não podemos deixar que o embranquecimento da Dança do Ventre e de suas fusões apague o que temos de mais único e coletivo. A presença de corpos negros mostra a força da nossa comunidade e a influência que teremos para outras bailarinas e bailarinos que entrarem para a modalidade. Seremos nós a referência e motivação. Bellyblacks, avante!
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Sankofa