Na coluna deste mês gostaria de apresentar um pouco do legado da cultura africana na nossa sociedade através do conjunto ideográfico conhecido como Adinkra. Pertencente aos povos Akan da antiga Costa do Ouro (atual Gana), Costa do Marfim, Togo e outros países da África Ocidental, os Adinkras representam um grupo linguístico de ideogramas com significados específicos que visam preservar e valorizar as tradições africanas. São mais de 80 símbolos e cada um preserva e transmite não apenas um valor estético, mas principalmente a história e as normas socioculturais desses povos.
Presentes em documentos escritos, nas estampas de tecidos, na arquitetura, na cerâmica, em peças de madeira, objetos de ferro, bronze e etc, os Adinkra são símbolos gráficos utilizados para representar uma palavra ou conceito abstrato, estão relacionados a algum provérbio ou conjunto de ideias, fazem referência a algum evento histórico ou simplesmente expressam uma característica de um animal, vegetal ou simplesmente um comportamento humano. Eram muito utilizados em cerimônias formais e especiais como os funerais onde as roupas eram estampadas com os símbolos à mão para transmitir uma mensagem de despedida, como forma de homenagear pessoas importantes como líderes espirituais e da realeza. Adinkra significa “adeus à alma”, é a mensagem que se dá a um outro ao sair.
Homem estampando um tecido com símbolos adinkra
Um dos mais conhecidos Adinkra é o Sankofa, que representa a sabedoria de aprender com o passado para construir o presente e o futuro. Já comentamos um pouco sobre o seu conceito quando esta coluna foi criada, mas agora vamos aprofundar um pouco mais sobre o seu significado. Sankofa vem de “Sanko” que significa voltar, retornar, e de “fa” que significa buscar, trazer, procurar; é um provérbio tradicional do povo Akan que diz “se wo were fi na wo sankofa a yenkyi” (não é tabu voltar atrás e buscar o que esqueceu). O símbolo Sankofa é representado por um pássaro que tem sua cabeça voltada para trás e carrega em seu bico um ovo, uma semente, que representa o futuro. Outro símbolo que também representa Sankofa é um coração estilizado muito similar ao desenho de coração que conhecemos.
Símbolos Sankofa
O principal ensinamento deste Adinkra é quanto a importância de se aprender com o passado, com as lições que a vida nos deu, para ressignificar o presente e construir o futuro. No Brasil, Sankofa está muito presente na história dos negros escravizados e na arquitetura do período colonial. Sendo a mão de obra majoritariamente dos povos africanos escravizados e seus descendentes, houve influência direta das suas raízes e memórias na construção e desenvolvimento das cidades brasileiras, como por exemplo o próprio Sankofa muitas vezes esculpido em ferro e que até hoje pode ser encontrado em portões e janelas antigas nas cidades construídas no período colonial.
Imagem 3 - Grade de janela com o "coração estilizado" na rua da Liberdade, em Salvador-BA
Sankofa do “coração estilizado” em portões
Acredita-se que naquela época muitas mensagens eram transmitidas através do uso dos Adinkra e que muitos desses símbolos se popularizaram sem ter o seu real significado conhecido pelos colonizadores, mas aqueles recém chegados do continente africano identificavam os símbolos de luta, resistência e preservação de sua história.
Ficou curioso(a) pra conhecer outros símbolos Adinkra? Então não perca as próximas edições desta coluna, pois vamos descobrir muito mais do rico legado africano.
Para saber mais:
NASCIMENTO, Elisa Larkin. GA, Luiz Carlos. Adinkra, Sabedoria Em Simbolos Africanos. Pallas, 1ª edição (11 setembro 2009).
WILLIS, W. Bruce. The Adinkra dictionary: A visual primer on the language of Adinkra. Pyramid Complex (1998).
SLOLEY, Patti Gyapomaa. Ghana’s Adinkra: Symbols from our African Heritage. Emmalily Ltd (17 dezembro 2012).
Monni Ferreira (São Paulo-SP)entrou para o mundo da dança com 10 anos de idade e durante toda a sua trajetória nesta arte teve a oportunidade de vivenciar diferentes estilos de dança, como: árabes, contemporâneo, afro, moderna, street dance, brasileiras, flamenco, indiana, ballet, entre outras.Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >>
Quando utilizamos os termos
Oriente e Ocidente, o sentido primário desses termos é a noção geográfica de
Leste (Oriente) e Oeste (Ocidente). Mas até essa noção básica precisa de um
ponto de referência. Leste de onde? O Oeste de X é o Leste de Y? Como essa
divisão é feita? Por interesse de quem? Oriente e Ocidente são conceitos que se
modificaram no decorrer da história e foram ganhando outros contornos e
implicações, novas camadas de significados dependendo do local, do período
histórico e dos objetivos, como por exemplo a divisão do Império Romano no
final do século IV em Império Romano do Ocidente, com capital em Roma, e
Império Romano do Oriente, com capital em Constantinopla; ou como o Cisma
do Oriente no século XI que dividiu o catolicismo em Igreja Católica Apostólica Romana (ocidental)
e Igreja Católica Apostólica Ortodoxa (oriental).
Império Romano
A divisão mais conhecida (e ainda hoje utilizada) entre Oriente e Ocidente é a que coloca o sudeste e sudoeste asiático e o norte da África em oposição à Europa (e hoje, também aos EUA). Essa divisão tem um peso político e econômico muito forte: começou a ser delineada a partir da Idade Média e ganhou força com a ascensão das potências marítimas europeias nos séculos XV e XVI e posteriormente com o Imperialismo europeu dos Séculos XVIII e XIX.
Entender como o Orientalismo
funciona é essencial para compreender essa divisão entre Oriente e Ocidente (e
como ela nos atinge), e para isso é necessário conhecer Edward Said e a sua
principal obra.
Edward Said
Edward W. Said (1935-2003)
foi um intelectual nascido na Palestina, que passou parte da infância no Egito
e concluiu seus estudos nos EUA. Se tornou um importante crítico literário e
professor universitário. Também foi ativista político pró-Palestina, além de
ser considerado um dos precursores dos estudos pós-coloniais. Publicou em 1978
sua principal obra: “O Orientalismo”, que no Brasil recebeu o subtítulo
“o oriente como invenção do ocidente”.
Nesse trabalho, Said se
propôs a analisar um gigantesco número de obras artísticas e acadêmicas
produzidas pela Europa nos séculos XVIII, XIX e XX acerca de povos e regiões consideradas
orientais. Ele percebeu que o Oriente apresentado em tantas obras era uma
construção ocidental, não tendo pretensões de ser fiel à fatos e contextos
reais, mas sim retratar o que a Europa imaginava e projetava sobre o Oriente,
portanto, uma forma de autoafirmação europeia, de se mostrar diferenciada e
superior em oposição ao “Outro”, ou seja, o oriental, considerado exótico e
antiquado. Só existe Ocidente em oposição ao Oriente. Um civilizado e o outro
primitivo. Ao considerar o Oriente primitivo, violento e despótico, o Ocidente
ao mesmo tempo, está se considerando avançado, democrático e esclarecido.
Capa Orientalismo
Edward Said denominou de
Orientalismo esse discurso que, de diferentes formas, contribuiu para
subalternizar diversos povos que foram rotulados como orientais. Orientalismo,
pois era o termo utilizado largamente pra denominar de forma genérica esses trabalhos
acadêmicos ou artísticos que de alguma forma abordavam temas considerados
orientais, sempre pela ótica europeia. Ou seja, o Orientalismo é um produto
europeu.
Esse discurso
orientalista presente em tratados, pinturas, relatos de viagens, palestras
entre outras produções, estava intrinsecamente atrelado ao Imperialismo europeu
dos séculos XIX e XX, que teve como principais alvos de exploração os
territórios do continente Africano e Asiático. Essa produção contribuiu para a
construção de um imaginário que transformou os povos ditos orientais em um
bloco uniforme que unia o Norte da África, o Oriente Médio e parte da Ásia, apagando
a diversidade cultural das áreas abordadas e enfatizando o seu “não
desenvolvimento” e “exotismo”. Assim, justificando a dominação como
uma missão civilizadora, onde os europeus levariam aos “bárbaros
orientais”, o progresso, não importando a vontade desses povos, afinal eram
“atrasados”. O “fardo do homem branco” era civilizar essas
regiões.
Mapa Imperialismo Europeu
Lorde Cromer, representante
da Grã-Bretanha no Egito na virada do século XVIII para o XIX, em discurso que
visava justificar a dominação imperialista com a “ausência de inteligência” do
oriental:
“O
europeu é um bom raciocinador: suas afirmações factuais não possuem nenhuma
ambiguidade; ele é um lógico natural, mesmo que não tenha estudado lógica,
(...) sua inteligência treinada funciona como um mecanismo. A mente do
oriental, por outro lado, como as suas ruas pitorescas, é eminentemente carente
de simetria. Seu raciocínio é dos mais descuidados. Embora os antigos árabes
tivessem adquirido num grau bem mais elevado a ciência da dialética, seus
descendentes são singularmente deficientes na faculdade lógica.”
(Lorde Cromer, Apud SAID, 2007,p.71)
Essa fala de Lorde Cromer
foi respaldada por anos e anos de produções artísticas e intelectuais que
declaravam a inferioridade dos povos orientais, as vezes de forma sutil, outras
mais descaradas, mas todas deixavam claro a oposição entre Oriente e Ocidente. Em
um outro exemplo, uma das personagens de Agatha Christie, no livro “Morte na
Mesopotâmia”, em visita à uma escavação arqueológica no Iraque descreve o
seguinte:
“Quem
me provocou riso foi a equipe de escavação. Eu nunca tinha visto tanto
espantalho junto – todos em andrajos e anáguas compridas, com as cabeças
enfaixadas como se estivessem com dor de dente. E, de vez em quando, nas idas e
vindas com os cestos de terra, começavam a entoar (ao menos acho que a intenção
era essa) uma esquisita espécie de cantilena infindável e monótona. Notei que a
maioria tinha olhos medonhos – todos cobertos de supurações, e alguns pareciam
caolhos.” (CHRISTIE, 2011, p.55)
Livro "Morte na Mesopotamia"
Uma verdadeira desumanização
dos trabalhadores locais. E esse tipo de fala é encontrada em outras passagens
desse livro, e em outros livros da autora que se passam em cenários
“orientais”. Outros autores famosos, clássicos e ainda lidos, também reproduzem
esse tipo de imagens, como Jules Verne, Joseph Conrad, Flaubert, entre outros...
Um dos principais estereótipos criados pelo
orientalismo é o da mulher oriental: sexualizada, submissa, animalizada, pronta
para satisfazer os desejos do “sultão” ou do viajante europeu. Ora coberta de
tecidos, dócil e misteriosa, ora provocante e desnuda, a mulher oriental retratada
pelo orientalismo não tem vontade própria, não é dona nem da própria vida,
encerrada no harém, uma peça valiosa do tesouro do seu senhor. A dançarina
egípcia era o ápice desse estereótipo, tendo seu corpo e sua dança o único
objetivo de ser um deleite aos olhos masculinos. Muitos pintores se valeram
dessa imagem e fizeram muito sucesso em exposições europeias. E essas pinturas
continuam sendo amplamente utilizadas como referências estéticas para dança do
ventre, folclores e estilo tribal. Será que as utilizamos com criticidade?
Essas imagens são contextualizadas? Conhecemos sua autoria, sua procedência,
seus propósitos?
Danse de l'Almee - Jean-Léon Gérôme (1824–1904)
L'esclave et le lion – Georges Antoine Rochegrosse (1859-1938)
Odalisque – Georges Antoine Rochegrosse (1859-1938)
Almee an Egyptian Dancer - Gunnar Berndtson (1854-1895)
O Orientalismo colaborou e justificou o imperialismo europeu. Quando esse sistema de dominação entrou em colapso na segunda metade do século XX, o Orientalismo sobreviveu enquanto ideologia e prática. Para isso ele passou por uma ressignificação, mantendo alguns elementos acrescidos de novos estímulos e temas, como por exemplo, o controle das migrações e o combate ao terrorismo, que são utilizados como justificativa para perseguições religiosas, maus-tratos e não acolhimento de refugiados, entre outras atitudes violentas e preconceituosas.
Barco de refugiados Sírios cruzando o mar mediterrâneo.
Portanto, no contexto
contemporâneo, o Orientalismo adquire novas formas, se adaptando aos novos
jogos de poder, e continua servindo como justificativa ideológica para os
grupos hegemônicos.
Mas afinal, porquê falar de
Orientalismo?
O Orientalismo faz parte da
formatação da Dança do Ventre e do estilo Tribal, e isso é um fato. Debater e
refletir sobre como o orientalismo está presente na nossa dança, no nosso
mercado, nas nossas escolhas e preferências, é um caminho que muitas de nós
estão tomando na busca de construir uma comunidade mais ética e responsável. Arte
também é política e é importante compreendermos quais mensagens estamos
veiculando, tomar consciência das implicações da nossa dança, para então
criarmos novas formas de lidar com a herança histórica da nossa arte, sem mais negações
ou silenciamentos.
Bibliografia
CHRISTIE, Agatha. Morte na Mesopotâmia.
Tradução de Henrique Guerra. Porto Alegre, RS: L&PM, 2011.
DIB, Marcia. Mulheres árabes como odaliscas:
Uma imagem construída pelo orientalismo através da pintura. Revista UFG,
ano XIII, n.11. Dezembro de 2011.
PASCHOAL, Nina Ingrid. Discursos
orientalistas sobre a dança: o caso de Almée, an egyptian dancer, de Gunnar
Berndtson. In. Faces da História, Assis/SP, v.6, nº2, jul./dez., 2019.
SAID, Edward W. Orientalismo: o
Oriente como invenção do Ocidente. Tradução Rosa Eichenberg. 1 ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007.
SILVA, Leonardo Luiz Silveira. O embate entre
Edward Said e Bernard Lewis no contexto da ressignificação do Orientalismo. In.
Revista Antropolítica, n.40, Niterói, 1 sem. 2016.
Fran Lelis (Volta Redonda-RJ)é professora SEEDUC RJ, especialista em História do Brasil pela UFF, mestra em História pela UFRRJ. Dançarina de Tribal Fusion com registro profissional pelo SPDRJ (DRT:56/032).
Monni Ferreira (São Paulo-SP)entrou para o mundo da dança com 10 anos de idade e durante toda a sua trajetória nesta arte teve a oportunidade de vivenciar diferentes estilos de dança, como: árabes, contemporâneo, afro, moderna, street dance, brasileiras, flamenco, indiana, ballet, entre outras.Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >>
Chegamos com mais uma edição da coluna Sankofa e dessa vez vamos abordar um tema muito polêmico e recorrente na nossa cena. Então para começar a gente precisa saber o que realmente é essa tal “Apropriação Cultural” para então entender as suas consequências.
Bem, quando falamos desse tema o que primeiro devemos entender é que a apropriação cultural não é sobre indivíduos, não é sobre você, não é sobre mim, é sobre o coletivo, sobre a sociedade como um todo. Dito isso devemos então questionar como esta mesma sociedade enxerga e avalia os mesmos elementos culturais quando aplicados em corpos negros e não negros, por exemplo. Neste texto vamos nos aprofundar nos elementos da cultura negra por questões óbvias para exemplificar como a apropriação cultural age de forma a apagar os significados e a demonizar o uso destes elementos em sua cultura original.
Então podemos definir apropriação cultural como sendo um fenômeno estrutural e sistêmico onde uma cultura adota elementos específicos de outra cultura distante dela, como objetos, vestimentas, costumes, símbolos, religião, entre outros, removendo o seu contexto original e assumindo significados divergentes, reafirmando a exotização dos elementos colonizados e a marginalização destes mesmos elementos quando inseridos na cultura apropriada.
Pensando nisso podemos destacar alguns clássicos da apropriação cultural:
Tranças e/ ou Dreads - uma pessoa não negra ao usar tranças e/ou dreads é vista como descolada, empoderada, fashion, porém uma pessoa negra usando as mesmas tranças/ dreads é vista pela sociedade como “suja”, desleixada e largada, pra não citar outros adjetivos pejorativos;
Turbantes - uma mulher branca usando turbante é estilosa, enquanto que uma mulher preta usando o mesmo adorno é apontada como macumbeira, no sentido mais negativo da palavra;
Estampas étnicas - um homem branco usando uma roupa com estampa étnica é visto como elegante e ousado, já um homem negro usando uma roupa com a mesma estampa étnica é chamado, em São Paulo, de "baiano" e, no Rio de Janeiro, de "paraíba" , exaltando negativamente o uso dessa vestimenta.
De maneira didática o artista Diogo Soares explica como funciona a lógica da apropriação cultural através da tirinha de sua série “A vida moderna de Djinn”:
A apropriação cultural existe porque há toda uma estrutura social racista que considera como superior uma cultura em relação as outras. Neste processo estereótipos racistas são alimentados e elementos culturais são comercializados muitas vezes sem o consentimento dos indivíduos que pertencem a esta cultura. Aqui ainda vale um questionamento quanto ao que recebem em troca aqueles que pertencem a cultura que foi apropriada, se existe verdadeiramente um ganho por conta desta interculturalidade.
Devemos pensar nisso, pois em alguns casos a apropriação cultural não está relacionada exclusivamente ao desrespeito com uma cultura, mas também ao quão lucrativo um elemento ou símbolo apropriado é e quanto deste lucro efetivamente chega para os membros desta cultura. Entender como este sistema funciona é de vital importância para evitar que elementos de identidade social e cultural sejam invisibilidade e esvaziados de seu significado perdendo assim a sua essência muitas vezes de resistência e luta.
Campanha Arezzo Verão 2009 com as atrizes Claudia Raia, Mariana Ximenez e Patrícia Pillar
Desfile do estilista Marc Jacobs em 2016 com modelos desfilando com dreads coloridos.
Daniela Mercury usando peruca black power como fantasia no Carnaval de Salvador em 2017
Um ponto também importante a se considerar é que apropriação cultural não é intercâmbio cultural uma vez que não há o elemento de dominação em relações de intercâmbio entre pessoas de diferentes culturas. Também não devemos confundir a apropriação com a assimilação cultural que ocorre da incorporação de elementos de uma cultura dominante por parte de um grupo social marginalizado como forma de sobrevivência, ocasionando até a extinção da cultura que foi dominada. Talvez isso te lembre alguma História… mas este tema fica para um outro texto, ok?!😉
Mulheres Masai, tribo do Quênia e norte da Tanzânia.
Então uma mulher negra que alisa o cabelo está fazendo apropriação da cultural branca?
Meu povo, isso faz algum sentido na cabeça de vocês? Sinceramente eu espero que não, pois onde está definido que cabelo liso é exclusividade de pessoas brancas? Povos indígenas, asiáticos e indianos apresentam esta característica e não são brancos, correto? Então não podemos pensar que o cabelo liso é um elemento cultural de povos brancos europeus. Inclusive o historiador e antropólogo Cheikh Anta Diop afirma em seu artigo “A origem dos Antigos Egípcios” a existência de pessoas negras de cabelo liso na África, os povos núbios, e na Ásia, os dravidianos. Muitas das argumentações de Diop foram baseadas em análises de documentos escritos, imagens e material arqueológico que comprovam que a civilização do Egito antigo era composta por pessoas negras.
Criança núbia
Escultura de guerreiros núbios do Egito antigo.
Acredito que aqui ainda vale a reflexão de que muitas vezes a mulher negra precisa alisar o cabelo simplesmente para conseguir um emprego, então nem sempre é sobre uma questão estética ou de gosto pessoal. Falar sobre apropriação racial consiste também em rever privilégios e todo um mecanismo que alimenta uma estrutura racista que há anos desumaniza e silencia a existência de povosque não correspondem ao padrão eurocêntrico e norte americano.
Mas afinal, eu posso ou não posso usar trança/ turbante/ dreads/ roupas étnicas e etc.?
A resposta para essa pergunta é muito simples: você pode usar o que quiser! O corpo é seu, correto?! Nem eu, nem nenhuma outra pessoa negra será fiscal do que você ou qualquer pessoa não negra pode usar. A verdade é que a apropriação cultural não é uma questão sobre usar ou não usar tranças/ turbante/ dreads ou qualquer outro elemento característico de uma cultura, a questão geralmente envolve o poder sobre alguma coisa e o medo da censura, por essa razão que pessoas não negras sempre questionam se podem ou não usar algo que talvez nem faça sentido ser usado por elas.
O debate quanto a apropriação cultural deve ser maior do que usar ou não usar um adorno como peça de moda, pois existem culturas que foram e continuam sendo massacradas e condenadas em nome de um padrão estético. Por isso é sempre importante pesquisar os significados por trás dos elementos que pertencem a uma cultura bem como os desafios que enfrentam os povos desta cultura.
Mais uma vez... Apropriação Cultural não é uma questão individual, não é uma crítica sobre o que pode ou não usar uma pessoa não negra, não é sobre escolhas de símbolos e afins, mas é sim sobre respeito ao significado e conexão com valores coletivos.
E o ATS® / FCBD®Style/ Tribal Fusion são exemplos de apropriação cultural???
Bem, aqui precisamos ser didáticos:
Usa vestimentas específicas que provavelmente carregam significados até complexos para um grupo ou povo específico?
Usa adornos e ornamentos como parte do figurino, mas que originalmente são de uma cultura específica?
Imita características físicas que servem como identidade cultural de um grupo de indivíduos, como por exemplo dreadlocks, tranças afro, etc.?
Transforma rituais, tradições, danças típicas ou qualquer elemento com significado cultural, mesmo que “adaptado” ou “modificado” ou “inspirado”, em algo comercial onde os lucros não chegam aos povos originários?
Se você respondeu SIM para as perguntas acima, então eu não preciso dizer mais nada, não é mesmo?!
Monni Ferreira (São Paulo-SP)entrou para o mundo da dança com 10 anos de idade e durante toda a sua trajetória nesta arte teve a oportunidade de vivenciar diferentes estilos de dança, como: árabes, contemporâneo, afro, moderna, street dance, brasileiras, flamenco, indiana, ballet, entre outras.Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >>
Nossa entrevistada do mês de Novembro é a poderosa Monni Ferreira, artista que fusiona diferentes linguagens em sua dança, como contemporâneo, danças urbanas e afro-brasileiras. Monni compartilha com a gente sua história, conquistas, lutas e muito mais! Bora conhecer mais sobre essa deusa do agito? Boa leitura!
BLOG: Conte-nos sobre sua trajetória
na dança do ventre/tribal. Como tudo começou para você?
Bem,
eu sou nascida e criada em Salvador (BA) e lá foi onde eu me apaixonei pela
dança. Minha primeira aula foi aos 10 anos de idade, eu estudava numa das
poucas escolas públicas que tinham atividades artísticas extracurriculares e
tive a sorte de encontrar no meu caminho uma professora incrível que me ensinou
a importância da arte na nossa formação enquanto indivíduo. Professora Isabel,
como carinhosamente a chamo até hoje, sempre se dedicou ao ensino da dança, mas
as suas aulas ensinavam muito mais que alongamentos e coreografias, a gente
aprendia também sobre ética e cidadania; foi com ela que descobri não só a
dança, mas também o teatro musical. Baiana que sou, foi com a mistura do Brasil
com o Egito que eu tive o meu primeiro contato com algo próximo ao que seria a
dança do ventre.
Anos
depois, já estudando na Fundação Cultural do Estado da Bahia (Funceb/SecultBA),
eu fiz uma aula experimental com o professor Rafael Jones e me encantei com
essa dança. Por conta de outras atividades eu acabei parando com as aulas de
Rafael, mas voltei para a dança do ventre em 2008 com a professora Lory Rabie
onde permaneci até minha mudança para São Paulo. Foi com Lory que tive o meu
primeiro contato com o Tribal através de algumas movimentações que ela trouxe
para as aulas.
Naquela
época a gente não tinha acesso à internet como temos hoje, então eu só vim
conhecer professoras do estilo em Salvador quando eu já estava morando em outro
estado. Em 2011, já em São Paulo, eu comecei a estudar oficialmente o estilo
tribal com a professora Rebeca Piñeiro que algum tempo depois lançaria a escola
e festival Campo das Tribos.
BLOG: Quais foram as professoras que
mais marcaram no seu aprendizado e por quê?
Que
difícil essa pergunta (rs). Eu sempre gostei muito de estudar então durante a
minha trajetória eu tive a oportunidade de aprender com muitos profissionais da
dança. Certamente eu vou esquecer algum nome (e eu já peço desculpas por
isso!), mas vou tentar lembrar de uma forma cronológica para facilitar.
Já
falei da Professora Isabel, a minha primeira professora de dança, que foi a
grande responsável por essa minha paixão que é dançar. Marília Galvão foi a
segunda professora que marcou a minha trajetória, pois foi ela que me
apresentou a dança contemporânea e foi com ela que eu amadureci como bailarina.
Meu saudoso Mestre King, minha referência em dança afro. Isis Carla minha fonte
de inspiração nas danças brasileiras. Rafa e Lory que me conectaram com a dança
do ventre. Rebeca que foi minha primeira professora de Tribal e ATS®. Najwa
Zaidan que me reconectou com a dança do ventre. Todas as mestras que me
ensinaram tanto durante o curso técnico em dança. E Marlon Vila Nova que incrivelmente me fez
apaixonar pelo ballet depois dos 30.
Monni com Marília Galvão, Mestre King, Isis Carla, Najwa Zaidan e Rafael Jones
BLOG: Além da dança tribal você já
fez ou faz mais algum tipo de dança? Há quanto tempo?
Minha
primeira formação foi em dança contemporânea, mas eu já fiz outros diferentes
estilos. Em Salvador tive a oportunidade de estudar dança afro na escola de
dança da Funceb, uma das maiores referências em dança no Brasil, e onde eu
também comecei a estudar dança do ventre e brasileiras. Além destas eu
também me aventurei no teatro musical. Quando comecei o curso técnico em dança
eu já estudava o Estilo Tribal, então tomei como linha de pesquisa as bases
deste e fui me aprofundar nas danças indianas e flamenca, além das danças
árabes que eu já fazia. O ballet apareceu neste período como uma obrigação por
fazer parte da minha grade curricular, mas acabou que eu me apaixonei e percebi
uma melhora significativa na minha dança, então não parei mais. Neste meio
tempo eu conheci um pouco mais das danças urbanas e deste então sigo estudando
as diferentes vertentes deste estilo.
BLOG: Quais foram suas primeiras
inspirações? Quais suas atuais inspirações?
Eu
sou completamente apaixonada pelo legado de Isadora Duncan, Martha Graham, Pina
Bausch e Angel Vianna. No Tribal minha primeira inspiração foi Ebony Qualls. Eu
lembro do primeiro vídeo que assisti dela e da mistura de sentimentos que eu
senti naquele momento. Era a primeira bailarina negra que eu assistia dançando
Tribal Fusion e para mim foi como se eu recebesse um recado dizendo "ei
garota, você também pode dançar isso sendo você mesma". Depois desse vídeo
eu comecei a pesquisar por mais mulheres pretas dentro do tribal e foi então
que eu conheci o trabalho da Donna Mejia. Que mulher incrível! Hoje sigo
apaixonada por elas duas e ainda tenho como inspiração no estilo os trabalhos
de Piny e de todo o grupo Orchidaceae, Jill Parker, Julieta Maffia, April Rose,
Luisana e das brazucas Paula Braz, Jessie Ra'idah, o grupo Resistência
Bellyblack e tantas outras mulheres maravilhosas como as minhas queridas
parceiras de Mahapsara e de tantos outros projetos: Raquel Coelho, Dany Anjos e
Mari Garavelo.😍
Monni com Jill Parker, Ebony Qualls e Julieta Maffia
BLOG: O que a dança acrescentou em
sua vida?
Nossa,
eu acho que de tudo um pouco. Com a dança eu aprendi sobre ética, humanidade,
responsabilidade, acolhimento, disciplina...
Além
disso, foi a dança que me apresentou pessoas e histórias incríveis. Sou
extremamente grata a esta arte por me proporcionar tais encontros nesta vida.
BLOG: O que você mais aprecia nesta
arte?
Acho
que a experimentação, o fato de me permitir ser e criar. No Fusion trabalhamos
muita a consciência corporal e nos permitimos ir muito além do que é orgânico.
Nos desafiamos a cada movimentação e descobrimos a nossa força interior através
da dança.
BLOG: O que prejudica a dança do
ventre e como melhorar essa situação? Você acha que o tribal está livre disso?
Acho
que as chamadas "panelinhas" e, principalmente, a falta de
oportunidades. Como bailarina negra e nordestina eu vejo que o mercado da dança
do ventre ainda vende um padrão eurocêntrico que não condiz com a realidade dos
corpos brasileiros. Bailarinas do Norte e Nordeste ainda são desconhecidas pelo
grande público e muitas vezes precisam deixar as suas regiões de origem para
conquistar um lugar ao sol. Além disso o corpo negro dentro deste estilo ainda
é visto como fora do padrão. Isso é desanimador demais, cansa!
De
forma alguma o cenário tribal está livre disso. Na verdade, o que observamos é
exatamente uma cena espelhada a da dança do ventre, só que um pouco mais
restrita e, até mesmo, camuflada numa falsa filosofia de tribo. Vou deixar aqui
para reflexão sobre este ponto:
Quantas
bailarinas nordestinas você viu estampando um evento da região Sul ou Sudeste
nos últimos anos?
E quantas bailarinas pretas você viu nesses mesmos
cartazes?
BLOG: Você já sofreu preconceitos na
dança do ventre ou no tribal? Como foi isso?
Sim,
inúmeras vezes. Quando me julgam pela minha aparência, quando esperam de mim um
mesmo tipo de performance caricata, quando não possibilitam o meu acesso a
aulas e eventos. Aqui acho importante ressaltar que o preconceito, bem como o
racismo, nem sempre vai se manifestar através de uma ação direta e
violenta.
BLOG: Houve alguma indignação ou
frustração durante seu percurso na dança?
Sim,
infelizmente. Eu comecei a dançar ainda muito pequena e quando criança a gente
sonha e cria muitas expectativas pra vida, comigo não seria diferente. Por
exemplo, quando pequena eu sonhei em ser uma bailarina profissional de ballet,
mas este estilo não se apresentou de forma amigável para mim num primeiro
momento. Durante muito tempo eu fui a fora do padrão, a que sempre ficava no
fundo, a que nunca poderia errar pra não chamar mais atenção. Nesse processo a
gente vai crescendo tentando se encaixar em um padrão e essa caminhada é tão
dolorosa e solitária que muitas de nós desistem no caminho. Eu desisti algumas
(muitas!) vezes, mas tive a sorte de encontrar forças dentro de mim mesma para
voltar e continuar.
Acho
que hoje a minha maior frustração ainda é chegar num evento de dança e me vê
ali como a única bailarina preta. Isso sempre me faz pensar em quantas irmãs
ficaram pelo meio do caminho.
BLOG: E conquistas? Fale um pouco
sobre elas.
Monni com o grupo do Intensivo Coreográfico e Piny Orchidaceae
Uma
grande conquista para mim foi a realização do curso técnico em dança. Este era
um sonho antigo meu e quando eu já nem imagina mais fazer a oportunidade surgiu
e eu finalmente consegui me formar em dança. Também destaco um 3º lugar (com
sabor de 1º!) no concurso solo tribal feminino no Festival Shimmie Rio de
Janeiro em 2016. Algumas apresentações também foram grandes conquistas para
mim, como as que realizei em Curitiba, no Underworld Fusion Fest, e em Buenos
Aires, na Muestra Show de Polina Shandarina, e ainda a oportunidade de estudar
com grandes mestras como Jill Parker, Ebony Qualls e Piny Orchidaceae. Nesta
última ainda destaco o fato de ter dançado uma coreografia de sua autoria no
Festival Tribal Spin, em Salvador.
Porém
eu acredito que minha maior conquista ainda é sobreviver às adversidades e
continuar dançando.
BLOG: Como é o cenário da dança
tribal em São Paulo?Pontos
positivos, negativos, apoio das cidades, repercussão por parte do público bem como
pela comunidade de dança do ventre/tribal?
São
Paulo é uma cidade gigantesca e que te apresenta inúmeras possibilidades, mas
quando você vive em São Paulo o difícil é você consumir tudo aquilo que a
cidade te oferece. Na dança isso não é diferente. Quando eu cheguei em São
Paulo o cenário tribal estava em ascensão e eu tive a oportunidade de estudar
com profissionais incríveis. Naquela época muita gente estava começando a
conhecer o estilo e eu lembro que a escola Campo das Tribos logo virou
referência, pois conseguiu reunir a maioria dos profissionais da região num só
lugar. Atualmente existem mais profissionais e mais escolas que abriram a sua
grade se aulas para o Fusion, isso foi uma conquista imensa para o estilo. Uma
dificuldade que eu enxergo hoje tem relação com uma questão de acessibilidade,
pois, no caso da capital, existe uma concentração de aulas na zona oeste,
enquanto que na zona leste e norte são pouquíssimas as escolas.
Acredito
que a variedade seja um ponto positivo de São Paulo, pois existem profissionais
de diferentes vertentes do estilo e o público pode escolher o que mais agradar
ao seu próprio estilo. Como ponto negativo eu poderia destacar o alto custo dos
eventos e aulas, mas isso acontece muito porque São Paulo é uma cidade cara.
Por exemplo, o custo de uma pauta num teatro bem localizado, com uma boa
estrutura de iluminação e acústica, um palco razoavelmente grande e uma plateia
bem distribuída é altíssimo e, na maioria das vezes, esses eventos não são
patrocinados.
Quanto
ao público, eu acho que hoje existe um pouco mais de conhecimento e acolhimento
do estilo, principalmente dentro da dança do ventre. A inclusão também é maior
do que há dez anos atrás. Alguns eventos grandes de dança do ventre hoje
possuem categorias dedicadas ao Tribal, coisa que antigamente não existia. O
que não mudou muito é que a maior parte deste público ainda é formada por
pessoas da própria dança e não ocorre muita renovação.
BLOG: Conte-nos um pouco sobre suas principais
performances. O que a inspirou para a formulação da parte conceitual e técnica
das mesmas, assim como seus processos de elaboração dos figurinos e maquiagens.
Como essas coreografias repercutiram na cena tribal?
O processo
criativo das minhas performances geralmente segue um mesmo caminho. Quando a
música não me escolhe eu costumo partir de uma ideia, um conceito ou personagem
que desejo expressar com a minha dança. Definido isso, eu começo a pensar nas
características deste personagem ou na narrativa que eu pretendo seguir. Neste
momento o trabalho coreográfico é iniciado utilizando também elementos
cinestésicos que vão me ajudar na construção de uma memória corporal. Durante todo
esse processo eu procuro pensar no figurino, maquiagem, cabelo e tudo mais que
possa me ajudar a expressar este personagem e/ou este conceito.
Posso destacar
as performances Oiá Igbalé, Guardião e Sabá Odoyá como
exemplos deste meu processo de criação coreografia. Todas estas tinham como
inspiração a fusão com a dança afro e os arquétipos dos orixás. Enquanto que em
Oiá Igbalé e Guardião eu trabalhei com a construção de
personagens, em Sabá Odoyá o meu objetivo foi trabalhar com um conceito
de Iemanjá não só como rainha do mar, mas também como a Grande Mãe, aquela que
acolhe, mas também destrói. Eu recebi feedbacks maravilhosos nestas três
performances, acho que foram importantíssimos para me manter em linha com esse
meu processo criativo.
Sabá Odoyá
BLOG: Como é fazer parte de um grupo
de ATS®/ FCBD® Style? Qual a importância que você vê no ATS®/ FCBD® Style?
Melíade Tribal ITS
Uma
delícia! Eu sou apaixonada pelo ATS®, agora FCBD® Style, e lembro o quão
difícil foi me adaptar a esse sistema de improviso coordenado, mas hoje eu
sinto muita falta de dançar com 'azamigas'. Durante a minha trajetória
no Tribal eu tive a oportunidade de participar de alguns grupos do gênero e
essa possibilidade de criar em conjunto é maravilhoso. O grupo Melíade
Tribal ITS, do qual fiz parte de 2012 até 2017, tinha como base a estrutura e
movimentações do ATS®, mas enquanto grupo de ITS (Improv Tribal Style) a gente
tinha liberdade para criar e experimentar.
Eu acho esse um estilo incrível e super
recomendo pra qualquer pessoa. Você vai trabalhar não só o físico, mas também
vai desenvolver consciência corporal e percepção espacial.
BLOG: Conte-nos sobre a sua participação em outros grupo de Tribal,seus integrantes, qual estilo marcante de cada grupo e se ele sofreu alguma mudança estrutural ou de estilo desde quando foi criado.
Como eu comentei numa outra pergunta, eu fiz parte do grupo Melíade Tribal ITS durante alguns anos e a gente utilizava como base a estrutura do ATS®. O grupo inicialmente era formado por Juliana Araújo, Zambak Parikhan, Ludmila Fornes e eu, depois se uniram ao grupo Ana Meredith e Raven Kirsh. Nós costumávamos trabalhar nas apresentações alguma temática visando construir uma narrativa. Foi assim com a performance "Tríade" onde trabalhamos a Deusa Tríplice em suas três figuras femininas: a Donzela, a Mãe e a Anciã. Acredito que o Melíade se destacava na cena justamente por ter como característica a criatividade e a inovação. Certamente foi uma fase muito feliz e de grande aprendizagem na minha trajetória.
Em 2017 recebi um convite muito especial da querida Mari Garavelo para participar de um projeto que tinha como proposta trazer um olhar devocional à dança. O Mahapsara Dance Group surgiu no ano seguinte e foi uma delícia embarcar nesta aventura com Mari, Raquel Coelho, Dany Anjos e Nina Araújo. Indo muito além de um grupo que dança Tribal Fusion, o Mahapsara é uma reunião de mulheres que usa a linguagem da dança para falar das diferentes deidades femininas. Das nossas apresentações mais marcantes eu posso destacar a que realizamos no show da banda Corvus Corax na FolkFair 2018 e a do Jantar Medieval do Taberna Folk que ainda contou com o show da banda Faun. Mari é muito criativa e talentosa, como coreógrafa acho que ela ainda vai preparar coisas bem interessantes para o Mahaps.
BLOG: Um dos seus trabalhos dentro do Tribal é a fusão com hip hop. Conte-nos um pouco como surgiu essa preferência e como você busca fusionar essa linguagem na sua dança. Na sua opinião, qual a principal característica para uma performance ser considerada Urban Fusion?
Eu sempre curti muito as danças urbanas, assistia em vídeos e achava a coisa mais incrível do mundo. Não sei como funciona hoje, mas em Salvador aconteciam muitas intervenções e batalhas, mas eu só ficava assistindo e não arriscava nenhum passinho, demorei pra tomar coragem e me jogar. Daí quando eu comecei a estudar o Fusion e vi que era possível trabalhar também com as danças urbanas nas minhas movimentações eu senti que tinha que me permitir isso. Depois foi fácil juntar os dois.
Primeiro eu fui estudar o hip hop, o locking e o popping que eram as movimentações que eu mais identificava nas performances de Fusion. Depois me encantei pelo house, mas foi no dancehall que eu pirei e me encontrei. As aulas são incríveis, os steps são divertidos e a energia é surreal. Particularmente gosto de estudar e experimentar um estilo de dança até deixar o meu corpo o mais confortável possível com a nova leitura corporal, mas quando eu conheci o dancehall eu fui um pouco além, eu senti que precisava estudar também a base musical. Lógico que ninguém precisa fazer um curso de música pra dançar, mas naquele momento eu senti que precisava aprender muito mais e isso abriu minha mente para inúmeras possibilidades.
Eu considero uma performance como Urban Fusion quando eu vejo repertório de danças urbanas, independente do estilo, em harmonia com o vocabulário do Fusion, mas além do repertório o que eu procuro encontrar é a chamada "atitude hip hop" que minhas alunas super conhecem. Infelizmente ainda existe muito preconceito com esse estilo e cultura que tem tanto pra nos ensinar.
BLOG: Conte-nos sobre suas fusões do
estilo Tribal Fusion com danças populares brasileiras e africanas. Como surgiu
a afinidade por tais fusões?
Foi
muito natural. Eu já falava em dançar ATS® ao som de Margareth Menezes durante
as aulas, por exemplo. Sempre que possível eu trazia para a minha dança alguma
referência da minha história. Acho que quando eu fui adquirindo mais confiança
e segurança na técnica do Fusion eu comecei a experimentar movimentações com as
danças que eu já tinha afinidade e tinha trabalhado em outros momentos da minha
trajetória. Então tudo foi acontecendo muito naturalmente, pois a afinidade e o
conhecimento já existiam.
No
caso das danças africanas, eu acho que houve também um resgate a ancestralidade.
Eu fui buscar referências em danças de matriz africana para então voltar e
olhar para as minhas bases na dança afro lá da época em que eu estudava na
escola de dança da Funceb, em Salvador.
BLOG: O tema sobre “apropriação
cultural” tem sido debatido na comunidade Tribal em âmbito mundial. Qual sua
opinião sobre o assunto dentro do universo da Dança Tribal?
Ahhh
muita gente me escreve pra saber/entender sobre esse assunto tão polêmico. Eu
até fico surpresa por ainda ter que contextualizar o que de verdade seria essa
tal apropriação cultural, mas de fato essa ainda é uma pauta existente dentro
da cena Tribal. Então eu convido você que está lendo esta entrevista a
acompanhar no próximo mês a minha coluna "Sankofa" aqui no Blog, pois
>>ALERTA DE SPOILER<<
vamos falar desse tema lá 😆🤫
BLOG: Como é ser colunista do Coletivo Tribal? Qual a importância desse espaço para a cena Tribal Brasileira? Fale um pouco sobre a proposta da sua coluna , a Sankofa. Como você seleciona os temas a serem abordados nessa plataforma e como os desenvolve?
Olha este certamente foi um grande presente de recebe neste ano tão caótico. Quando a Aerith me fez o convite eu nem pensei duas vezes. Pra mim esse blog sempre foi uma grande referência na cena tribal pela relevância dos conteúdos abordados. Eu estou adorando ser colunista do Coletivo Tribal, pois sinto que posso contribuir bastante com o crescimento da cena. A proposta da minha coluna “Sankofa” passa inclusive pelo significado da própria palavra que tem como essência voltar ao passado para ressignificar o presente. A minha ideia é apresentar o quanto que as culturas africanas influenciaram e continuam influenciando o Estilo Tribal, é destacar a importância da diversidade na dança e, quem sabe, fazer desta uma arte mais inclusiva. Sei que o processo é lento, mas precisamos dar um primeiro passo. Sobre os temas eu penso que eles precisam conversar com esta proposta da coluna, precisa existir essa identificação com a temática afro, pois é algo praticamente esquecido no nosso meio. A minha ideia é que a coluna seja colaborativa, por isso já convidei algumas bailarinas pretas para contribuir com essa temática. Eu posso te garantir que tem muita coisa boa vindo por aí, muito conteúdo bacana pra contribuir com o crescimento do estilo, fiquem ligades!!! E se você tem interesse em contribuir com a coluna pode me procurar pra gente bater um papo e desenrolar essa colab.
BLOG: Atualmente, muitas bailarinas
do tribal fusion estão saindo um pouco do rótulo e fazendo várias
experimentações. Como você encara as fusões experimentais?Quais fusões você tem mais interesse em desenvolver em sua dança?Qual principal cuidado que o estudante de
tribal deve ter ao querer apresentar esse tipo de performance?
Eu
super apoio as experimentações. Acredito que a gente enquanto artista precisa
manter a mente aberta e livre para experimentar. Por outro lado, é importante
também ter atenção com alguns pontos importantes quando estamos trabalhando uma
fusão como a técnica do estilo e a sua identidade. Não basta apenas usar uma
música de tango e dizer que está fazendo uma fusão, é preciso trabalhar a
essência desse estilo dentro da sua proposta de performance, por exemplo.
Eu
já trabalhei com a fusão de alguns estilos, o primeiro deles foi através da
leitura musical dentro do estilo DUB que é caracterizado pelas marcações de
baixo e bateria e estudo da cultura Dancehall, ambos originais da Jamaica.
Desde 2017, venho desenvolvendo um trabalho com as danças afro-brasileira dentro
do Tribal Fusion através dos arquitetos dos Orixás.
Todas
as vezes que eu pensei em fazer uma fusão eu fui estudar para conhecer mais do
estilo e me aprofundar nas movimentações. Acho importante esse mergulho de
cabeça quando existe o interesse em trabalhar a fusão com algum estilo.
Obviamente que você não precisa se aprofundar, mas um mínimo de pesquisa e
cuidado com a essência é necessário.
BLOG: Atualmente, o ativismo em prol à causa negra na dança do ventre e estilo Tribal tem se fortalecido com várias ações como lives, shows onlines e presenciais, fóruns, grupos, entre outras manifestações culturais. Qual importância desses movimentos? Como eles tem se desenvolvido e repercutido na nossa cena de dança? Qual a maior dificuldade participantes e colaboradores desses projetos tem sofrido? Quais são as principais causas e pautas que a comunidade bellyblack busca no contexto do artista preto brasileiro na cena Tribal?
Olha, nem sei por onde começar a responder todas essas perguntas (risos). Bem, primeiro eu acho que preciso pontuar aqui que esse ativismo já existe há algum tempo, mas agora ganhou uma proporção maior e eu me atrevo a dizer que a grande responsável por todo esse movimento seja Angela Cheirosa, uma das maiores bailarinas que eu já conheci. Cheirosa é muito mais que uma inspiração, ela é um exemplo a ser seguido. Admiro o trabalho dela e a força que essa mulher tem para quebrar tantos paradigmas. Eu sempre me senti muito sozinha na dança, mesmo quando estava numa sala cheia ou num evento lotado, pois a vida de uma bailarina negra é solitária, olhar para os lados e perceber que você é a única preta no local é triste demais. A verdade é que o racismo está presente na dança assim como ele está presente nas nossas vidas, no nosso dia-a-dia, e o que sempre ocorreu na arte foi manter esse racismo velado, era um assunto que ninguém poderia falar, pois na dança não existia algo assim. Então eu acredito que esse movimento é legítimo e surge como forma de reivindicação de espaço, reconhecimento e oportunidade não só para o povo negro, pois ele possibilita a quebra do padrão hoje existente e busca uma maior diversidade de corpos na nossa dança.
Quanto à repercussão eu acredito que ainda é pouca, na verdade eu acho que faltam ações efetivas no mercado da dança do ventre e tribal. O trabalho de conscientização é diário e pesado e a gente ainda precisa desconstruir muito coisa nesse meio, então a falta de ações convergentes com a causa desanima demais. Dá aquela sensação de estar rodando em circulo sabe?! Esta precisa ser uma pauta presente em escolas e eventos, a gente precisa questionar a falta de diversidade, não dá mais para aceitar que o cabelo black de uma bailarina preta seja avaliado como fora do padrão, a gente precisa questionar que padrão é esse, não dá mais para fingir que a gente não tá vendo a professora colocando a única aluna preta no fundo da coreografia, não dá pra achar normal ver o cartaz de um evento só com profissionais não negros, não dá mais para ver tantos sonhos desfeitos por conta deste sistema. Entendam, a nossa luta, que também precisa ser sua, é por oportunidade e reconhecimento.
BLOG: Apesar de estar cada vez mais
se consolidando e ganhando força, a dança tribal ainda é recente no universo da
Dança.Como a dança tribal está ganhando espaço na
cena acadêmica?E o que você
considera importante ainda ser trabalhado no âmbito acadêmico para a dança ser
mais valoriza e reconhecida?
Acredito
que o estilo vem ganhando espaço a passos bem curtos na academia. Além do
desconhecimento, existe também um preconceito com esta dança principalmente
entre os mais clássicos. Por este ser um estilo ainda recente e em constante
transformação acho que dificulta ainda mais a sua valorização. Para mim, ainda é
necessário que haja mais pesquisas e trabalhos científicos que abordem o estilo
tribal, as danças árabes e também as danças de fusão. Um repertório definido
bem como uma metodologia de ensino universal também ajudaria no reconhecimento deste
estilo. Sinceramente, enquanto estivermos olhando para o Fusion buscando o
pioneirismo individual será cada vez mais difícil o acesso desta dança no
cenário acadêmico.
BLOG: Qual importância da prática do
Yoga para a dança?
Eu
acredito que a prática seja muito útil para qualquer pessoa, independente se é
da dança ou não. Igualmente a terapia, que eu acho que todo mundo deveria fazer
sabe?! (risos)
A
primeira vez que eu escutei sobre a importância do Yoga e experenciei na dança
foi durante os workshops de Sharon Kihara. Eu lembro que logo depois das aulas
dela eu já estava pesquisando onde estudar e praticar. Eu fiquei tão encantada
com a forma como ela falava do Yoga e dos benefícios, não só na dança como na
vida, que eu comecei com as aulas regulares pouco tempo depois.
BLOG: Em sua opinião, o que é tribal
fusion?
Uma
grande salada muito saborosa!!!
Eu
amo salada, logo dá pra entender o porquê desta minha comparação (ou não! já
diria Caetano 😅). Pra mim o Estilo Tribal significa
liberdade no sentido de possibilitar a experimentação, mas além disso, e aí
pensando mais na parte teoria e histórica, eu enxergo essa dança com uma base
muito sólida nas danças árabes para guiar as diferentes estilizações
existentes. E o tempero dessa salada é a referência pessoal, a personalidade de
cada corpo.
BLOG: O que você mais gosta no
tribal fusion?
As
inúmeras possibilidades. Eu sempre comentei com as minhas alunas como isso me
fascina no estilo, como desperta a minha criatividade e o quão desafiador ele
é. Eu percebo que no Fusion é possível enxergar mais facilmente a identidade de
cada bailarina.
BLOG: Você considera a dança tribal
uma dança étnica contemporânea? Por quê?
Sinceramente,
pelo meu entendimento do que seja uma dança étnica, eu não acho que o que
conhecemos como dança tribal seja uma dança étnica. Para mim o Estilo Tribal é
uma grande mistura de outros estilos de dança que em suas origens podem ser
classificadas como étnicas, mas essa fusão que trabalhamos hoje não poderia ser
definida como tal. Acho que ainda estamos caminhando para uma definição de
nomenclatura do estilo que é muito novo e ainda deve sofrer muitas modificações
pela frente.
BLOG: Como você descreveria seu
estilo?
Eu
não faço a menor ideia 😅 🙈
Olha
eu nunca parei pra pensar sobre isso e sinceramente acho muito difícil rotular
a dança. Eu entendo meu estilo como Tribal Fusion (ou seja lá qual o nome que o
estilo recebe atualmente RS) e no momento eu trabalho a fusão com as danças de
matriz africana sem esquecer de toda bagagem adquirida em outros diferentes
estilos que estudei ao longo da minha trajetória. Acho que estou vivendo este
momento agora e está muito bom.
BLOG: Como você se expressa na
dança?
Isso
depende muito de cada performance e da sua proposta em cena, mas basicamente eu
procuro levar verdade na minha dança. Eu me entrego e mergulho de cabeça, então
tem muita intensidade em tudo que eu faço. Penso em cores, formas, cheiros,
texturas e tudo o que pode compor a minha construção coreográfica e me ajudar a
expressar aquilo que eu estou levando com a minha dança.
BLOG: Sobre sua carreira, qual/quais seu momento
tribal favorito ou inesquecível?
Eu
sinto que ainda estou em processo de construção da minha bailarina dentro deste
estilo, mas acredito que os momentos mais inesquecíveis desta minha trajetória
foram nas minhas apresentações com o solo “Oiá Igbalé”.
Já na estreia, no Underworld Fusion Fest em Curitiba (2018), eu senti que
aquela não seria uma performance qualquer, pois além de feedbacks incríveis eu
pude perceber a emoção do público, mas a ficha só caiu pra mim na segunda
apresentação no Sarau Shamando as Tribos Dark Side, em Piracicaba (SP). O clima
mais intimista me deixou mais próxima da plateia e a energia reverberou de uma
maneira indescritível. Eu fiquei tão assustada com a repercussão destas duas
apresentações que a minha primeira reação foi de simplesmente tentar negar e
não seguir com esta performance, evitando até divulgar vídeos destas
apresentações temendo a reação das pessoas ao assistir, mas foi exatamente com
a divulgação de um desses vídeos que eu percebi que esta não era uma
performance só minha e que eu não tinha o direito de guardá-la só para mim,
pois a arte não pode ser contida e a mensagem que esta performance transmite
tem assinatura de Oiá. Minha última apresentação com esta performance foi na Argentina,
na Muestra Show de Polina Shandarina (2019) e
foi igualmente intensa e visceral. Eu já tinha decidido não me apresentar mais
com esta dança, mas uma vez mais Ela me mostrou que esta decisão não depende
apenas de mim.
Oiá Igbalé
BLOG: Quais seus projetos para 2021?
E mais futuramente?
Eu
confesso que não estou fazendo muitos planos para o próximo ano. Como eu tive
que adiar alguns projetos para 2020 por conta da pandemia, eu devo retomar as
minhas pesquisas nas danças de origem africana e suas singularidades. Mais
futuramente eu não sei, talvez eu volte a dar aulas regulares, pois tive que
parar para me dedicar as minhas pesquisas.
BLOG: Improvisar ou coreografar? E
por quê?
Depende. Acredito que os dois são igualmente importantes. Não conseguiria escolher um
só. Pra mim coreografar é uma delícia! Existe todo um processo de criação que
me fascina, onde eu posso explorar a minha criatividade e experimentar
diferentes movimentações.
Quanto
a improvisar, acho incrível a oportunidade de deixar o meu corpo ser levado
pela energia daquele momento presente, mas eu confesso que demorei pra me jogar
no improviso, foi um processo longo até me sentir confortável. Para improvisar
você precisa ter na bagagem um bom repertório, uma técnica afinada, uma boa
noção de leitura musical, velocidade no raciocínio e tantas outras coisas que
eu imaginava ser impossível dançar de improviso. Com o tempo eu fui ganhando
segurança e hoje eu sempre coloco um trecho de improvisação nas minhas
coreografias, assim sempre será uma apresentação única.
BLOG: Você trabalha somente
com dança?
Infelizmente
não. Eu tenho uma outra carreira que tento conciliar com a dança, mas é muito
difícil e super cansativo. Além da dança eu também tenho formação em
Comunicação Social e atualmente trabalho com gestão de projetos de mídia. A
minha rotina diária para manter as duas carreiras é insana e exige muita gestão
de tempo, então por isso eu acabei levando para minha carreira como bailarina e
professora de dança muito do que eu aplico nos projetos em que trabalho. Quem
me conhece sabe que eu sou "aloka" do cronograma e do check
list.
BLOG: Deixe um recado para os
leitores do blog.
Acredite
em você! Na nossa trajetória a
gente nem sempre vai encontrar palavras de incentivo para seguir, mas acredite
em você e nos seus sonhos. E pretas: vocês não estão sozinhas!
Aerith (Curitiba-PR)( pronuncia-se 'Aéris' e não Aeriti ❤) é carioca, blogueira desde 2010, idealizadora e produtora do Underworld Fusion Fest e dos Encontros Folks PR, e diretora do Asgard Tribal Co. Adora o universo da dança tribal, principalmente as fusões mais undergrounds. Atualmente, reside em Curitiba-PR, em que está desenvolvendo novos projetos e parcerias envolvendo o estilo 'Tribal'. Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >>