[Sankofa] Afinal, o que queremos dizer quando falamos de Orientalismo?

por Fran Lelis  (Rio de Janeiro-RJ)
Colaboração especial para coluna Sankofa
Coordenação: Monni Ferreira

Quando utilizamos os termos Oriente e Ocidente, o sentido primário desses termos é a noção geográfica de Leste (Oriente) e Oeste (Ocidente). Mas até essa noção básica precisa de um ponto de referência. Leste de onde? O Oeste de X é o Leste de Y? Como essa divisão é feita? Por interesse de quem? Oriente e Ocidente são conceitos que se modificaram no decorrer da história e foram ganhando outros contornos e implicações, novas camadas de significados dependendo do local, do período histórico e dos objetivos, como por exemplo a divisão do Império Romano no final do século IV em Império Romano do Ocidente, com capital em Roma, e Império Romano do Oriente, com capital em Constantinopla; ou como o Cisma do Oriente no século XI que dividiu o catolicismo em  Igreja Católica Apostólica Romana (ocidental) e Igreja Católica Apostólica Ortodoxa (oriental).


Império Romano


A divisão mais conhecida (e ainda hoje utilizada) entre Oriente e Ocidente é a que coloca o sudeste e sudoeste asiático e o norte da África em oposição à Europa (e hoje, também aos EUA). Essa divisão tem um peso político e econômico muito forte: começou a ser delineada a partir da Idade Média e ganhou força com a ascensão das potências marítimas europeias nos séculos XV e XVI e posteriormente com o Imperialismo europeu dos Séculos XVIII e XIX.

Entender como o Orientalismo funciona é essencial para compreender essa divisão entre Oriente e Ocidente (e como ela nos atinge), e para isso é necessário conhecer Edward Said e a sua principal obra.


Edward Said

Edward W. Said (1935-2003) foi um intelectual nascido na Palestina, que passou parte da infância no Egito e concluiu seus estudos nos EUA. Se tornou um importante crítico literário e professor universitário. Também foi ativista político pró-Palestina, além de ser considerado um dos precursores dos estudos pós-coloniais. Publicou em 1978 sua principal obra: “O Orientalismo”, que no Brasil recebeu o subtítulo “o oriente como invenção do ocidente”.

Nesse trabalho, Said se propôs a analisar um gigantesco número de obras artísticas e acadêmicas produzidas pela Europa nos séculos XVIII, XIX e XX acerca de povos e regiões consideradas orientais. Ele percebeu que o Oriente apresentado em tantas obras era uma construção ocidental, não tendo pretensões de ser fiel à fatos e contextos reais, mas sim retratar o que a Europa imaginava e projetava sobre o Oriente, portanto, uma forma de autoafirmação europeia, de se mostrar diferenciada e superior em oposição ao “Outro”, ou seja, o oriental, considerado exótico e antiquado. Só existe Ocidente em oposição ao Oriente. Um civilizado e o outro primitivo. Ao considerar o Oriente primitivo, violento e despótico, o Ocidente ao mesmo tempo, está se considerando avançado, democrático e esclarecido.


Capa Orientalismo

Edward Said denominou de Orientalismo esse discurso que, de diferentes formas, contribuiu para subalternizar diversos povos que foram rotulados como orientais. Orientalismo, pois era o termo utilizado largamente pra denominar de forma genérica esses trabalhos acadêmicos ou artísticos que de alguma forma abordavam temas considerados orientais, sempre pela ótica europeia. Ou seja, o Orientalismo é um produto europeu.

Esse discurso orientalista presente em tratados, pinturas, relatos de viagens, palestras entre outras produções, estava intrinsecamente atrelado ao Imperialismo europeu dos séculos XIX e XX, que teve como principais alvos de exploração os territórios do continente Africano e Asiático. Essa produção contribuiu para a construção de um imaginário que transformou os povos ditos orientais em um bloco uniforme que unia o Norte da África, o Oriente Médio e parte da Ásia, apagando a diversidade cultural das áreas abordadas e enfatizando o seu “não desenvolvimento” e “exotismo”. Assim, justificando a dominação como uma missão civilizadora, onde os europeus levariam aos “bárbaros orientais”, o progresso, não importando a vontade desses povos, afinal eram “atrasados”. O “fardo do homem branco” era civilizar essas regiões.


Mapa Imperialismo Europeu

Lorde Cromer, representante da Grã-Bretanha no Egito na virada do século XVIII para o XIX, em discurso que visava justificar a dominação imperialista com a “ausência de inteligência” do oriental:

“O europeu é um bom raciocinador: suas afirmações factuais não possuem nenhuma ambiguidade; ele é um lógico natural, mesmo que não tenha estudado lógica, (...) sua inteligência treinada funciona como um mecanismo. A mente do oriental, por outro lado, como as suas ruas pitorescas, é eminentemente carente de simetria. Seu raciocínio é dos mais descuidados. Embora os antigos árabes tivessem adquirido num grau bem mais elevado a ciência da dialética, seus descendentes são singularmente deficientes na faculdade lógica.” (Lorde Cromer, Apud SAID, 2007,p.71)

Essa fala de Lorde Cromer foi respaldada por anos e anos de produções artísticas e intelectuais que declaravam a inferioridade dos povos orientais, as vezes de forma sutil, outras mais descaradas, mas todas deixavam claro a oposição entre Oriente e Ocidente. Em um outro exemplo, uma das personagens de Agatha Christie, no livro “Morte na Mesopotâmia”, em visita à uma escavação arqueológica no Iraque descreve o seguinte:

“Quem me provocou riso foi a equipe de escavação. Eu nunca tinha visto tanto espantalho junto – todos em andrajos e anáguas compridas, com as cabeças enfaixadas como se estivessem com dor de dente. E, de vez em quando, nas idas e vindas com os cestos de terra, começavam a entoar (ao menos acho que a intenção era essa) uma esquisita espécie de cantilena infindável e monótona. Notei que a maioria tinha olhos medonhos – todos cobertos de supurações, e alguns pareciam caolhos.” (CHRISTIE, 2011, p.55) 

Livro "Morte na Mesopotamia"

Uma verdadeira desumanização dos trabalhadores locais. E esse tipo de fala é encontrada em outras passagens desse livro, e em outros livros da autora que se passam em cenários “orientais”. Outros autores famosos, clássicos e ainda lidos, também reproduzem esse tipo de imagens, como Jules Verne, Joseph Conrad, Flaubert, entre outros...

 Um dos principais estereótipos criados pelo orientalismo é o da mulher oriental: sexualizada, submissa, animalizada, pronta para satisfazer os desejos do “sultão” ou do viajante europeu. Ora coberta de tecidos, dócil e misteriosa, ora provocante e desnuda, a mulher oriental retratada pelo orientalismo não tem vontade própria, não é dona nem da própria vida, encerrada no harém, uma peça valiosa do tesouro do seu senhor. A dançarina egípcia era o ápice desse estereótipo, tendo seu corpo e sua dança o único objetivo de ser um deleite aos olhos masculinos. Muitos pintores se valeram dessa imagem e fizeram muito sucesso em exposições europeias. E essas pinturas continuam sendo amplamente utilizadas como referências estéticas para dança do ventre, folclores e estilo tribal. Será que as utilizamos com criticidade? Essas imagens são contextualizadas? Conhecemos sua autoria, sua procedência, seus propósitos?

Danse de l'Almee - Jean-Léon Gérôme (1824–1904)


L'esclave et le lion – Georges Antoine Rochegrosse (1859-1938)


Odalisque – Georges Antoine Rochegrosse (1859-1938)

Almee an Egyptian Dancer - Gunnar Berndtson (1854-1895)


 O Orientalismo colaborou e justificou o imperialismo europeu. Quando esse sistema de dominação entrou em colapso na segunda metade do século XX, o Orientalismo sobreviveu enquanto ideologia e prática. Para isso ele passou por uma ressignificação, mantendo alguns elementos acrescidos de novos estímulos e temas, como por exemplo, o controle das migrações e o combate ao terrorismo, que são utilizados como justificativa para perseguições religiosas, maus-tratos e não acolhimento de refugiados, entre outras atitudes violentas e preconceituosas. 

Barco de refugiados Sírios cruzando o mar mediterrâneo.

 

Portanto, no contexto contemporâneo, o Orientalismo adquire novas formas, se adaptando aos novos jogos de poder, e continua servindo como justificativa ideológica para os grupos hegemônicos.

Mas afinal, porquê falar de Orientalismo?

O Orientalismo faz parte da formatação da Dança do Ventre e do estilo Tribal, e isso é um fato. Debater e refletir sobre como o orientalismo está presente na nossa dança, no nosso mercado, nas nossas escolhas e preferências, é um caminho que muitas de nós estão tomando na busca de construir uma comunidade mais ética e responsável. Arte também é política e é importante compreendermos quais mensagens estamos veiculando, tomar consciência das implicações da nossa dança, para então criarmos novas formas de lidar com a herança histórica da nossa arte, sem mais negações ou silenciamentos.

 

Bibliografia

CHRISTIE, Agatha. Morte na Mesopotâmia. Tradução de Henrique Guerra. Porto Alegre, RS: L&PM, 2011.

DIB, Marcia. Mulheres árabes como odaliscas: Uma imagem construída pelo orientalismo através da pintura. Revista UFG, ano XIII, n.11. Dezembro de 2011.

PASCHOAL, Nina Ingrid. Discursos orientalistas sobre a dança: o caso de Almée, an egyptian dancer, de Gunnar Berndtson. In. Faces da História, Assis/SP, v.6, nº2, jul./dez., 2019.

SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Tradução Rosa Eichenberg. 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

SILVA, Leonardo Luiz Silveira. O embate entre Edward Said e Bernard Lewis no contexto da ressignificação do Orientalismo. In. Revista Antropolítica, n.40, Niterói, 1 sem. 2016.

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Sankofa 



Fran Lelis (Volta Redonda-RJ) é professora SEEDUC RJ, especialista em História do Brasil pela UFF, mestra em História pela UFRRJ. Dançarina de Tribal Fusion com registro profissional pelo SPDRJ (DRT:56/032).



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Monni Ferreira (São Paulo-SP) entrou para o mundo da dança com 10 anos de idade e durante toda a sua trajetória nesta arte teve a oportunidade de vivenciar diferentes estilos de dança, como: árabes, contemporâneo, afro, moderna, street dance, brasileiras, flamenco, indiana, ballet, entre outras.Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >>

Comentários
2 Comentários

2 comentários:

  1. Excelente artigo. Infelizmente essa divisão entre Ocidente e Oriente permanece até hoje. Sinceramente já havia lido essa obra de Agatha Christie e não tinha percebido esse olhar preconceituoso, mas lendo esse fragmento do texto, realmente tem uma visão discriminatória do povo daquela região.
    Parabéns pela matéria. Muito bom.

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    1. Muito bom o texto. Também fiquei decepcionada com o trecho do livro da Agatha Christie. Essa descrição preconceituosa pode ser a única informação disponível para muitas pessoas. Não podemos contribuir para isso. Obrigada pela texto.

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