Quando utilizamos os termos Oriente e Ocidente, o sentido primário desses termos é a noção geográfica de Leste (Oriente) e Oeste (Ocidente). Mas até essa noção básica precisa de um ponto de referência. Leste de onde? O Oeste de X é o Leste de Y? Como essa divisão é feita? Por interesse de quem? Oriente e Ocidente são conceitos que se modificaram no decorrer da história e foram ganhando outros contornos e implicações, novas camadas de significados dependendo do local, do período histórico e dos objetivos, como por exemplo a divisão do Império Romano no final do século IV em Império Romano do Ocidente, com capital em Roma, e Império Romano do Oriente, com capital em Constantinopla; ou como o Cisma do Oriente no século XI que dividiu o catolicismo em Igreja Católica Apostólica Romana (ocidental) e Igreja Católica Apostólica Ortodoxa (oriental).
Império Romano |
A divisão mais conhecida (e ainda hoje utilizada) entre Oriente e Ocidente é a que coloca o sudeste e sudoeste asiático e o norte da África em oposição à Europa (e hoje, também aos EUA). Essa divisão tem um peso político e econômico muito forte: começou a ser delineada a partir da Idade Média e ganhou força com a ascensão das potências marítimas europeias nos séculos XV e XVI e posteriormente com o Imperialismo europeu dos Séculos XVIII e XIX.
Entender como o Orientalismo funciona é essencial para compreender essa divisão entre Oriente e Ocidente (e como ela nos atinge), e para isso é necessário conhecer Edward Said e a sua principal obra.
Edward Said |
Edward W. Said (1935-2003)
foi um intelectual nascido na Palestina, que passou parte da infância no Egito
e concluiu seus estudos nos EUA. Se tornou um importante crítico literário e
professor universitário. Também foi ativista político pró-Palestina, além de
ser considerado um dos precursores dos estudos pós-coloniais. Publicou em 1978
sua principal obra: “O Orientalismo”, que no Brasil recebeu o subtítulo
“o oriente como invenção do ocidente”.
Nesse trabalho, Said se propôs a analisar um gigantesco número de obras artísticas e acadêmicas produzidas pela Europa nos séculos XVIII, XIX e XX acerca de povos e regiões consideradas orientais. Ele percebeu que o Oriente apresentado em tantas obras era uma construção ocidental, não tendo pretensões de ser fiel à fatos e contextos reais, mas sim retratar o que a Europa imaginava e projetava sobre o Oriente, portanto, uma forma de autoafirmação europeia, de se mostrar diferenciada e superior em oposição ao “Outro”, ou seja, o oriental, considerado exótico e antiquado. Só existe Ocidente em oposição ao Oriente. Um civilizado e o outro primitivo. Ao considerar o Oriente primitivo, violento e despótico, o Ocidente ao mesmo tempo, está se considerando avançado, democrático e esclarecido.
Capa Orientalismo |
Edward Said denominou de
Orientalismo esse discurso que, de diferentes formas, contribuiu para
subalternizar diversos povos que foram rotulados como orientais. Orientalismo,
pois era o termo utilizado largamente pra denominar de forma genérica esses trabalhos
acadêmicos ou artísticos que de alguma forma abordavam temas considerados
orientais, sempre pela ótica europeia. Ou seja, o Orientalismo é um produto
europeu.
Esse discurso orientalista presente em tratados, pinturas, relatos de viagens, palestras entre outras produções, estava intrinsecamente atrelado ao Imperialismo europeu dos séculos XIX e XX, que teve como principais alvos de exploração os territórios do continente Africano e Asiático. Essa produção contribuiu para a construção de um imaginário que transformou os povos ditos orientais em um bloco uniforme que unia o Norte da África, o Oriente Médio e parte da Ásia, apagando a diversidade cultural das áreas abordadas e enfatizando o seu “não desenvolvimento” e “exotismo”. Assim, justificando a dominação como uma missão civilizadora, onde os europeus levariam aos “bárbaros orientais”, o progresso, não importando a vontade desses povos, afinal eram “atrasados”. O “fardo do homem branco” era civilizar essas regiões.
Mapa Imperialismo Europeu |
Lorde Cromer, representante
da Grã-Bretanha no Egito na virada do século XVIII para o XIX, em discurso que
visava justificar a dominação imperialista com a “ausência de inteligência” do
oriental:
“O
europeu é um bom raciocinador: suas afirmações factuais não possuem nenhuma
ambiguidade; ele é um lógico natural, mesmo que não tenha estudado lógica,
(...) sua inteligência treinada funciona como um mecanismo. A mente do
oriental, por outro lado, como as suas ruas pitorescas, é eminentemente carente
de simetria. Seu raciocínio é dos mais descuidados. Embora os antigos árabes
tivessem adquirido num grau bem mais elevado a ciência da dialética, seus
descendentes são singularmente deficientes na faculdade lógica.”
(Lorde Cromer, Apud SAID, 2007,p.71)
Essa fala de Lorde Cromer
foi respaldada por anos e anos de produções artísticas e intelectuais que
declaravam a inferioridade dos povos orientais, as vezes de forma sutil, outras
mais descaradas, mas todas deixavam claro a oposição entre Oriente e Ocidente. Em
um outro exemplo, uma das personagens de Agatha Christie, no livro “Morte na
Mesopotâmia”, em visita à uma escavação arqueológica no Iraque descreve o
seguinte:
“Quem me provocou riso foi a equipe de escavação. Eu nunca tinha visto tanto espantalho junto – todos em andrajos e anáguas compridas, com as cabeças enfaixadas como se estivessem com dor de dente. E, de vez em quando, nas idas e vindas com os cestos de terra, começavam a entoar (ao menos acho que a intenção era essa) uma esquisita espécie de cantilena infindável e monótona. Notei que a maioria tinha olhos medonhos – todos cobertos de supurações, e alguns pareciam caolhos.” (CHRISTIE, 2011, p.55)
Livro "Morte na Mesopotamia" |
Uma verdadeira desumanização
dos trabalhadores locais. E esse tipo de fala é encontrada em outras passagens
desse livro, e em outros livros da autora que se passam em cenários
“orientais”. Outros autores famosos, clássicos e ainda lidos, também reproduzem
esse tipo de imagens, como Jules Verne, Joseph Conrad, Flaubert, entre outros...
Um dos principais estereótipos criados pelo orientalismo é o da mulher oriental: sexualizada, submissa, animalizada, pronta para satisfazer os desejos do “sultão” ou do viajante europeu. Ora coberta de tecidos, dócil e misteriosa, ora provocante e desnuda, a mulher oriental retratada pelo orientalismo não tem vontade própria, não é dona nem da própria vida, encerrada no harém, uma peça valiosa do tesouro do seu senhor. A dançarina egípcia era o ápice desse estereótipo, tendo seu corpo e sua dança o único objetivo de ser um deleite aos olhos masculinos. Muitos pintores se valeram dessa imagem e fizeram muito sucesso em exposições europeias. E essas pinturas continuam sendo amplamente utilizadas como referências estéticas para dança do ventre, folclores e estilo tribal. Será que as utilizamos com criticidade? Essas imagens são contextualizadas? Conhecemos sua autoria, sua procedência, seus propósitos?
Danse de l'Almee - Jean-Léon Gérôme (1824–1904) |
L'esclave et le lion – Georges Antoine Rochegrosse (1859-1938) |
Odalisque – Georges Antoine Rochegrosse (1859-1938) |
Almee an Egyptian Dancer - Gunnar Berndtson (1854-1895) |
O Orientalismo colaborou e justificou o imperialismo europeu. Quando esse sistema de dominação entrou em colapso na segunda metade do século XX, o Orientalismo sobreviveu enquanto ideologia e prática. Para isso ele passou por uma ressignificação, mantendo alguns elementos acrescidos de novos estímulos e temas, como por exemplo, o controle das migrações e o combate ao terrorismo, que são utilizados como justificativa para perseguições religiosas, maus-tratos e não acolhimento de refugiados, entre outras atitudes violentas e preconceituosas.
Barco de refugiados Sírios cruzando o mar mediterrâneo. |
Portanto, no contexto
contemporâneo, o Orientalismo adquire novas formas, se adaptando aos novos
jogos de poder, e continua servindo como justificativa ideológica para os
grupos hegemônicos.
Mas afinal, porquê falar de
Orientalismo?
O Orientalismo faz parte da
formatação da Dança do Ventre e do estilo Tribal, e isso é um fato. Debater e
refletir sobre como o orientalismo está presente na nossa dança, no nosso
mercado, nas nossas escolhas e preferências, é um caminho que muitas de nós
estão tomando na busca de construir uma comunidade mais ética e responsável. Arte
também é política e é importante compreendermos quais mensagens estamos
veiculando, tomar consciência das implicações da nossa dança, para então
criarmos novas formas de lidar com a herança histórica da nossa arte, sem mais negações
ou silenciamentos.
Bibliografia
CHRISTIE, Agatha. Morte na Mesopotâmia.
Tradução de Henrique Guerra. Porto Alegre, RS: L&PM, 2011.
DIB, Marcia. Mulheres árabes como odaliscas: Uma imagem construída pelo orientalismo através da pintura. Revista UFG, ano XIII, n.11. Dezembro de 2011.
PASCHOAL, Nina Ingrid. Discursos orientalistas sobre a dança: o caso de Almée, an egyptian dancer, de Gunnar Berndtson. In. Faces da História, Assis/SP, v.6, nº2, jul./dez., 2019.
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Tradução Rosa Eichenberg. 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
SILVA, Leonardo Luiz Silveira. O embate entre Edward Said e Bernard Lewis no contexto da ressignificação do Orientalismo. In. Revista Antropolítica, n.40, Niterói, 1 sem. 2016.
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Sankofa