[Sankofa] Apropriação Cultural

  por Monni Ferreira

Ilustração por: Leandra Gonçalves

Olá meu povo! 

Chegamos com mais uma edição da coluna Sankofa e dessa vez vamos abordar um tema muito polêmico e recorrente na nossa cena. Então para começar a gente precisa saber o que realmente é essa tal “Apropriação Cultural” para então entender as suas consequências. 

Bem, quando falamos desse tema o que primeiro devemos entender é que a apropriação cultural não é sobre indivíduos, não é sobre você, não é sobre mim, é sobre o coletivo, sobre a sociedade como um todo. Dito isso devemos então questionar como esta mesma sociedade enxerga e avalia os mesmos elementos culturais quando aplicados em corpos negros e não negros, por exemplo. Neste texto vamos nos aprofundar nos elementos da cultura negra por questões óbvias para exemplificar como a apropriação cultural age de forma a apagar os significados e a demonizar o uso destes elementos em sua cultura original.

Então podemos definir apropriação cultural como sendo um fenômeno estrutural e sistêmico onde uma cultura adota elementos específicos de outra cultura distante dela, como objetos, vestimentas, costumes, símbolos, religião, entre outros, removendo o seu contexto original e assumindo significados divergentes, reafirmando a exotização dos elementos colonizados e a marginalização destes mesmos elementos quando inseridos na cultura apropriada.

Pensando nisso podemos destacar alguns clássicos da apropriação cultural:

  • Tranças e/ ou Dreads - uma pessoa não negra ao usar tranças e/ou dreads é vista como descolada, empoderada, fashion, porém uma pessoa negra usando as mesmas tranças/ dreads é vista pela sociedade como “suja”, desleixada e largada, pra não citar outros adjetivos pejorativos;

  • Turbantes - uma mulher branca usando turbante é estilosa, enquanto que uma mulher preta usando o mesmo adorno é apontada como macumbeira, no sentido mais negativo da palavra;

  • Estampas étnicas - um homem branco usando uma roupa com estampa étnica é visto como elegante e ousado, já um homem negro usando uma roupa com a mesma estampa étnica é chamado, em São Paulo, de "baiano" e, no Rio de Janeiro, de "paraíba" , exaltando negativamente o uso dessa vestimenta.

 

De maneira didática o artista Diogo Soares explica como funciona a lógica da apropriação cultural através da tirinha de sua série “A vida moderna de Djinn”:

A apropriação cultural existe porque há toda uma estrutura social racista que considera como superior uma cultura em relação as outras. Neste processo estereótipos racistas são alimentados e elementos culturais são comercializados muitas vezes sem o consentimento dos indivíduos que pertencem a esta cultura. Aqui ainda vale um questionamento quanto ao que recebem em troca aqueles que pertencem a cultura que foi apropriada, se existe verdadeiramente um ganho por conta desta interculturalidade.

Devemos pensar nisso, pois em alguns casos a apropriação cultural não está relacionada exclusivamente ao desrespeito com uma cultura, mas também ao quão lucrativo um elemento ou símbolo apropriado é e quanto deste lucro efetivamente chega para os membros desta cultura. Entender como este sistema funciona é de vital importância para evitar que elementos de identidade social e cultural sejam invisibilidade e esvaziados de seu significado perdendo assim a sua essência muitas vezes de resistência e luta.

Campanha Arezzo Verão 2009 com as atrizes Claudia Raia, Mariana Ximenez e Patrícia Pillar

Desfile do estilista Marc Jacobs em 2016 com modelos desfilando com dreads coloridos.


Daniela Mercury usando peruca black power como fantasia no Carnaval de Salvador em 2017

Um ponto também importante a se considerar é que apropriação cultural não é intercâmbio cultural uma vez que não há o elemento de dominação em relações de intercâmbio entre pessoas de diferentes culturas. Também não devemos confundir a apropriação com a assimilação cultural que ocorre da incorporação de elementos de uma cultura dominante por parte de um grupo social marginalizado como forma de sobrevivência, ocasionando até a extinção da cultura que foi dominada. Talvez isso te lembre alguma História… mas este tema fica para um outro texto, ok?! 😉

Mulheres Masai, tribo do Quênia e norte da Tanzânia.


Então uma mulher negra que alisa o cabelo está fazendo apropriação da cultural branca?

Meu povo, isso faz algum sentido na cabeça de vocês? Sinceramente eu espero que não, pois onde está definido que cabelo liso é exclusividade de pessoas brancas? Povos indígenas, asiáticos e indianos apresentam esta característica e não são brancos, correto? Então não podemos pensar que o cabelo liso é um elemento cultural de povos brancos europeus. Inclusive o historiador e antropólogo Cheikh Anta Diop afirma em seu artigo “A origem dos Antigos Egípcios” a existência de pessoas negras de cabelo liso na África, os povos núbios, e na Ásia, os dravidianos. Muitas das argumentações de Diop foram baseadas em análises de documentos escritos, imagens e material arqueológico que comprovam que a civilização do Egito antigo era composta por pessoas negras. 

Criança núbia



Escultura de guerreiros núbios do Egito antigo.



Acredito que aqui ainda vale a reflexão de que muitas vezes a mulher negra precisa alisar o cabelo simplesmente para conseguir um emprego, então nem sempre é sobre uma questão estética ou de gosto pessoal. Falar sobre apropriação racial consiste também em rever privilégios e todo um mecanismo que alimenta uma estrutura racista que há anos desumaniza e silencia a existência de povos que não correspondem ao padrão eurocêntrico e norte americano.

 

Mas afinal, eu posso ou não posso usar trança/ turbante/ dreads/ roupas étnicas e etc.?

A resposta para essa pergunta é muito simples: você pode usar o que quiser! O corpo é seu, correto?! Nem eu, nem nenhuma outra pessoa negra será fiscal do que você ou qualquer pessoa não negra pode usar. A verdade é que a apropriação cultural não é uma questão sobre usar ou não usar tranças/ turbante/ dreads ou qualquer outro elemento característico de uma cultura, a questão geralmente envolve o poder sobre alguma coisa e o medo da censura, por essa razão que pessoas não negras sempre questionam se podem ou não usar algo que talvez nem faça sentido ser usado por elas.

O debate quanto a apropriação cultural deve ser maior do que usar ou não usar um adorno como peça de moda, pois existem culturas que foram e continuam sendo massacradas e condenadas em nome de um padrão estético. Por isso é sempre importante pesquisar os significados por trás dos elementos que pertencem a uma cultura bem como os desafios que enfrentam os povos desta cultura.

Mais uma vez... Apropriação Cultural não é uma questão individual, não é uma crítica sobre o que pode ou não usar uma pessoa não negra, não é sobre escolhas de símbolos e afins, mas é sim sobre respeito ao significado e conexão com valores coletivos.

 

E o ATS® / FCBD®Style/ Tribal Fusion são exemplos de apropriação cultural???

 

Bem, aqui precisamos ser didáticos:


  1. Usa vestimentas específicas que provavelmente carregam significados até complexos para um grupo ou povo específico?

  2. Usa adornos e ornamentos como parte do figurino, mas que originalmente são de uma cultura específica?

  3. Imita características físicas que servem como identidade cultural de um grupo de indivíduos, como por exemplo dreadlocks, tranças afro, etc.?

  4. Transforma rituais, tradições, danças típicas ou qualquer elemento com significado cultural, mesmo que “adaptado” ou “modificado” ou “inspirado”, em algo comercial onde os lucros não chegam aos povos originários?

 

Se você respondeu SIM para as perguntas acima, então eu não preciso dizer mais nada, não é mesmo?!


Mulheres da tribo Rabari na Índia


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Sankofa

 
Monni Ferreira (São Paulo-SP) entrou para o mundo da dança com 10 anos de idade e durante toda a sua trajetória nesta arte teve a oportunidade de vivenciar diferentes estilos de dança, como: árabes, contemporâneo, afro, moderna, street dance, brasileiras, flamenco, indiana, ballet, entre outras.Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >>

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