por Mimi Coelho
Estou muito feliz por retornar ao Blog Coletivo Tribal agora sob uma nova coluna que propõe o meu compartilhar sobre as “andanças” que a dança me leva pelo mundo real e cada vez mais pelo mundo virtual. Posso dizer com grande convicção que grande parte da minha vida foi e é conduzida consciente e por vezes, inconscientemente, pela dança. Ela me proporciona vivências únicas, especiais, uma trajetória que agora divido prazerosamente com vocês aqui.
Atualmente, vivemos um momento conturbado de mudanças repentinas e diárias. E para que possamos sobreviver enquanto artistas e seres criativos neste cenário tão dinâmico precisamos desenvolver nossa capacidade de adaptação rápida, abraçando novas estratégias e tecnologias.
Estamos sendo pressionados com tudo para dentro do mundo virtual, sejamos preparados ou não. A impossibilidade de se apresentar a nossa arte, que sempre foi vista como efêmera e presencial da maneira de costume, diante de um público físico em um espaço considerado de dança, estremece nossas estruturas e nosso sentir. E isto talvez se deva ao fato de dependermos enquanto artistas da troca de energia com a nossa audiência no ato da nossa performance.
Lidamos então com uma nova forma de apresentação (se pensarmos bem, nem tão nova assim, pois já existiam os filmes de dança previamente a tudo isso). Contamos agora com a possibilidade de criarmos através da tela um novo espaço para nossa dança.
Mas como fazer dessa experiência de dança uma vivência completa para o espectador? Como transmitir através da tela a energia, o “sentir do momento” que nossa arte proporciona quando temos a presença física tanto do artista quanto do público?
Essas questões impulsionam a reflexão sobre como queremos entregar a imagem de nossa dança. Isto é, como gerar intencionalmente a percepção do espectador acerca do movimento pelo corpo e do seu desenho pelo espaço. E essa problemática ganha uma escala ainda maior quando envolvemos o processo criativo, ou seja, a concepção da dança com relação ao espaço cênico e ao entendimento do mesmo pelo público. Além de criar o movimento há agora a necessidade de se conceber também a forma de enquadramento das cenas no espaço de dança para que o público perceba a intensidade e sinta a sensação de estar presente no momento em que assiste à obra.
“A ausência é absoluta, mas a presença tem seus níveis de intensidade”.
- Genette, 1972
Em outras palavras, a dança por ser uma arte viva se beneficia da presença física para transmitir a intensidade de seu efeito ao espectador. A fim de que a nossa audiência sinta essa sensação de presença ao assistir a dança pela tela, cabe ao artista criar possibilidades de enquadramento de cenas seja pela edição, seja pela forma de se posicionar a câmera e/ou seja pela maneira de se filmar (câmera móvel ou estática, múltiplas câmeras em diversos ângulos, dentre outros), aproximando, transportando o público para dentro da obra.
“Estamos presentes onde nossa atenção está focada, seja um ambiente físico real, seja por meio de um dispositivo mediado. […] Nas artes ficcionais, a vivência da imersão em um mundo imaginário constitui um poderoso elemento atrativo da atenção do espectador, que envolve sua atividade mental. Quando a ação dramatúrgica de uma performance ou de um filme o seduz, sua atenção fica inteiramente absorvida pelo desenvolvimento ficcional dos personagens ou das situações que o tornam presente ao ato de espectatura”.
-René Bourassa, 2013
A maneira mais simples e previsível de se apresentar a dança pela tela ocorre através da utilização de uma câmera frontal estática que registra a coreografia através de um único enquadramento, um único ângulo de visão. Tal visão corresponde ao que as Artes Cênicas incluem nos conceitos de Quarta Parede e Palco Italiano. O espectador presencia a apresentação da obra como se esta se desse dentro de uma caixa, com um fundo e duas paredes laterais. Dessa forma, somente esta tela “chapada” configura a experiência de quem assiste como sem maiores interferências ou sensação de participação proporcionando em geral uma impressão de bidimensionalidade (não há percepção de texturas ou profundidade, somente do plano com altura e largura). Há alguns recursos cênicos, no entanto, que podem enriquecer esta perspectiva e até trazer uma ideia superficial de textura e/ou de profundidade.
Neste vídeo produzido por Illan Rivière, percebemos diversas camadas no plano ainda que este seja somente um. Illan utilizou diferentes formas de iluminação e luzes presentes no espaço cênico como uma forma de criar profundidade. Além disso, a disposição de elementos cênicos e de um cenário nas paredes laterais e as plantas no proscênio cria não só a ideia de várias camadas na tela, mas também traz a sensação de textura para as imagens, o que faz transparecer uma profundidade maior, chegando a quebrar a ideia de bidimensionalidade que este tipo de enquadramento único concebe. Estas são estratégias relevantes quando consideramos esta alternativa de filmagem.
“O Efeito de Presença é o sentimento de um espectador de que os corpos ou objetos percebidos por seus olhos (ou por seus ouvidos) realmente estão ali, no mesmo espaço e no mesmo tempo nos quais se encontra, mesmo sabendo que eles estão ausentes. - Josette Fèral, 2012
Outras estratégias que possibilitam um maior efeito de presença na audiência envolvem as ideias de amplificação e aproximação. Ou seja, ao se criar uma proximidade artificial utilizando-se planos fechados e multiplicando os pontos de vistas, a presença pode ser recuperada. Os planos fechados inspiram uma intimidade física com o artista que está sendo filmado.
Os enquadramentos aproximados reduzem a distância entre o local do filme e o seu público. Ainda, a mediação do artista/diretor/produtor (que em grande parte dos casos somos nós mesmos, os dançarinos), no intuito de provocar uma participação ativa por parte da plateia do filme, pode incluir efeitos de simulação, os quais deslocamentos em geral, entradas e saídas por exemplo, criam a ligação que uma continuidade de enredo requer. A mediação e edição também permitem que se conceba uma montagem capaz de reproduzir a imediatez de elementos/momentos surpresas (Highlights/ high points – clímax, momento alto, ápices). Esta "sensação de imediato" enriquece o fluir, o desenrolar do filme, proporcionando nuances, texturas e movimento à retórica do mesmo.
Dessa forma, destaca-se a relevância em se alterar a perspectiva por duas principais razões. Primeira: o envolvimento efetivo na ação pelo espectador do filme, que está ausente da presença material dos artistas, depende da aproximação virtual. A presença, então, pode ser recuperada de duas formas:
- pela proximidade artificial que a câmera proporciona;
- pela multiplicação dos pontos de vista.
Segunda: a diversidade das escalas de planos garante uma composição plástica que proporciona volume à bidimensionalidade da imagem, reforçando a ilusão de tridimensionalidade. A profundidade do campo, obtida por meio da perspectiva, busca produzir um espaço imaginário em conformidade com a percepção óptica do mundo real. Isto se refere à possibilidade de criação de um extracampo, uma ideia que vai depender da referência artista e local estabelecida em diferentes planos e escalas e até mesmo pela utilização de uma câmera móvel.
Em outras palavras, quando estabelecemos diversos pontos de filmagem, ainda que estáticos, há a possibilidade na edição de se elaborar uma colagem que transporte o espectador para a cena. Ele consegue perceber noções de profundidade, acompanhar ângulos diferentes da movimentação e diferentes formas que o movimento desenha no espaço conforme as perspectivas diversas disponíveis. O público do filme consegue se transportar para o local de filme e recupera a presença.
No vídeo da Ebony Qualls, pode-se notar esta utilização de múltiplas câmeras estáticas, assim como a edição com alteração de foco o que evidencia este efeito de presença mencionado acima. A aproximação ganha o efeito esperado pelas diversas escalas e camadas em cada enquadramento escolhido. O uso de elementos cênicos e composições específicas de cenário, como a parede de espelhos, auxilia na criação de um extracampo e o espectador consegue relacionar o local, como um meio real, para além do fictício. O público do filme consegue se transportar para o ambiente de dança e o efeito de presença, e a impressão de certa tridimensionalidade são alcançados.
É claro que nem todos nós temos condições de viabilizar um espaço cênico e múltiplas possibilidades de filmagem. Na maioria dos casos, somos os produtores e artistas do filme. Entretanto, com a prática e o planejamento de algumas estratégias, ainda pode ser possível a garantia do efeito de presença e uma colagem resultante que conduza o público pela energia e enredo desejados.
O vídeo acima é uma produção minha (longe de ser uma superprodução, viu gente? E sim, muitos erros e também muitos acertos podem ser percebidos). Eu tinha um enredo em mãos, os elementos de cena específicos (dentre eles a plataforma com água), além da estrutura coreográfica que compreendia os efeitos e os momentos altos. Estes foram intencionalmente filmados em ângulos e enquadramentos específicos em diversas tomadas. Como resultado, consegui de certa maneira conduzir o espectador pelos movimentos, proporcionando uma aproximação maior da obra artística. Houve a possibilidade de entendimento do espaço de dança, das texturas e das diversas camadas que possuía. Como complemento de efeitos, integrei também o som ambiente do vento, da água e do bebê ao fundo, para obter um toque de realidade. Tudo isso seguindo o objetivo de se produzir um efeito de presença mais próximo do real. No entanto, foi impossível evitar a mudança de luz durante todo o período de filmagem (filmei no fim do dia e a luz altera muito e rapidamente com a proximidade do pôr do Sol). Isto porque não possuo equipamento completo com diversas fontes de iluminação e múltiplas câmeras. Conclusão, tive que assumir a diferença de luz, descontinuidade no balanço das plantas pelo vento e por aí vai.
Um outro exemplo bem interessante para se analisar é o vídeo “Day Dreams”, produzido pelo Variat Dance Collective. Há claramente um enredo, um roteiro seguido que se compõe de uma parte teatral e uma parte de movimento de dança. Utilizou-se na edição elementos cênicos que apoiam a história e também estabelecem efeitos de texturas e camadas. O espectador participa da dinâmica em que se constrói a retórica do filme e o uso de filtros de cor na edição colabora com a sua imersão no local de dança. A utilização de uma câmera móvel, alterando os enquadramentos e os focos, evidenciando-se os planos fechados, aproxima e torna o espectador parte do movimento. O público vivencia uma proximidade que inspira uma intimidade física com as artistas. A colagem de enquadramentos das cenas se dá de forma harmoniosa com momentos altos definidos. As artistas comunicam-se diretamente para câmera como se convidassem a audiência a participar da obra. Há não somente o efeito de presença, como também a sensação de se relacionar diretamente com as artistas pelo movimento, o que significa a ruptura da Quarta Parede e a produção da ideia de tridimensionalidade. O espectador se transporta para o ambiente de dança e sente o movimento como se interferisse ativamente no mesmo.
São tantos e diversos os elementos que interferem na qualidade da dança na tela. A combinação estratégica de alguns destes juntamente à ideia de se planejar os enquadramentos das cenas, associados às intenções de criação da obra artística, possibilitam a produção de filmes de dança impactantes e com profundidade. Lembrando que a aproximação e a amplificação colaboram para que o efeito de presença seja gerado e, assim, a experiência do espectador torna-se mais interessante e dinâmica. O público dos filmes de dança quer sentir o movimento no espaço da obra e isso é extremamente dependente da forma que você irá conduzí-lo pelo sua visão de foco. O público verá aquilo que você evidenciar e sentirá também pela forma que você o conduzir. E no final, é só tentar se divertir e se armar de disposição para errar e aprender. Todo esse produzir artístico é uma jornada!
Pra finalizar, eu produzi este vídeo especialmente para este artigo. Nele eu utilizei a câmera móvel que permite o espectador participar mais intimamente da movimentação. Essa variação dinâmica de enquadramentos e proximidade produz o efeito de presença e a ideia de um espaço real. Há o diálogo direto com a câmera, o que convida a participação do público e implica na quebra da Quarta Parede, além de permitir que haja a percepção de tridimensionalidade. E aqui eu favorito a minha opção atual de filmagem, diversos enquadramentos, câmera móvel e edição dinâmica. Tento priorizar também as camadas e as texturas de imagens e de sons para que o ambiente esteja bem próximo, real, quase ao alcance dos dedos do espectador.
Referências
ANDES, Anna. The Instability of Suspending Audience Disbelief: Filming Productions at The Globe and The National Theater. In: SIMÉON, Sandrine; ALCAYAGA, Agathe Torti. Coup de Théâtre. Paris: Radac, 2017. P. 83-101.
BAZIN, André. Théâtre et cinéma. Esprit, Paris, v. 19, p. 232-253, Août 1951.
BAZIN, André. Qu’est-ce que le cinéma? Paris: Editions du Cerf, 1981.
BOURASSA, René. De la présence aux effets de présence: entre l’apparaître et l’apparence. In: FÉRAL, Josette; PERROT, Edwige. Le Réel à l’Èpreuve des Technologies. Les Arts de la scène et les arts médiatiques. Rennes: Presses universitaires de Rennes, 2013. P. 129-148.
FÉRAL, Josette; PERROT, Edwige. De la présence aux effets de présence. Ecarts et enjeux. In: FÉRAL, Josette. Pratiques Performatives, Body Remix. Rennes: Presses universitaires de Rennes , 2012. P. 11-26.
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