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[Campo em Cena] Apreciação coreográfica: Analisando suas referências, construindo uma identidade


 por Thaisa Martins

COVEN & Zoe Jakes (EUA) |
Foto por Tori & Yaniv Halfon - The Massive Spectacular

Cada dançarina é única no seu fazer. Por mais que existam passos, músicas, regras, indumentárias e etc que unem a manifestação artística em uma estética, o que cada uma faz com a sua dança é particular e especial. A forma de mover, de ver o mundo, de se expressar através do movimento, enfim, cada pedaço que a constitui enquanto ser humano influenciará diretamente na produção artística. Aprender a apreciar as peculiaridades das dançarinas que te inspiram, pode ser uma ferramenta poderosa para a construção da sua dança. Propomos neste artigo, uma reflexão sobre como e por que desenvolver um trabalho de apreciação coreográfica no Tribal Fusion. 


Estamos chamando de “apreciação coreográfica” a ação de assistir de forma analítica um conjunto de obras coreográficas, com o intuito de investigar pontos que se destacam e que foram fundamentais para a sua experiência estética. Através da análise das obras coreográficas, vai-se construindo um emaranhado de referenciais artísticos que podem servir de pontos de execução e investigações no processo criativo. 


É importante ressaltar que não se trata de um processo analítico que visa copiar/mimetizar/plagiar a obra de uma dançarina, mas sim de uma busca referencial para investigações pessoais. Não compactuamos com a prática, infelizmente ainda comum, de plágio tanto estético quanto intelectual. 


Como utilizar a apreciação coreográfica?

A apreciação coreográfica pode ser direcionada para uma pergunta específica, este tipo de exploração tem como principal fator agregador a compreensão de uma questão que já esteja em andamento no seu trabalho pessoal, as soluções que você encontrará nas obras apreciadas podem ser experimentadas no seu processo de criação.


Exemplo 1: Gostaria de criar uma coreografia que explorasse diferentes pontos espaciais. Quais dançarinas que eu conheço costumam fazer coisas nesse sentido?

Resposta: X e Y.


  • Quais as obras coreográficas das dançarinas X e Y eu mais gostei? 1, 2, 3 e 4.
  • Quais as soluções espaciais que elas adotaram nas obras 1, 2, 3 e 4? Variação de nível e diferentes ângulos na camêra.

    Agora é trazer esses pontos para o seu corpo:
  •  Como você se relaciona com os níveis?
  • Quais partes do corpo você pode variar na sua leitura espacial?
  • Será que não está na hora de buscar dicas de enquadramentos na internet?


Exemplo 2: Quero compreender melhor o que foi o início do Tribal Fusion.


  • Quais foram as principais dançarinas?
  • Qual a diferença entre as coreografias delas?
  • Quais os elementos principais do figurino nas suas apresentações?
  • Como elas se relacionavam com a música?
  • Como os movimentos de Dança do Ventre são usados?
  • Os vídeos são de festivais ou de apresentações menores?
  • As peças eram longas ou curtas?
    Todas essas perguntas são respondidas através de apreciação coreográfica e podem servir de insumo para a criação ou compreensão de uma obra com temática old school (por exemplo).


Essas são algumas das investigações criativas que podem surgir após uma apreciação coreográfica direcionada a uma questão. Note que não se trata de um checklist que será seguido rigorosamente, mas sim de uma ferramenta que se constrói cada vez que é utilizada. Você pode (e deve) retornar nestes mesmos vídeos com outras questões para novas possibilidades de investigação.  


Uma outra potente utilização da apreciação coreográfica é a compreensão do que nos atrai no Tribal Fusion, para então encontrar caminhos de criação que estejam de acordo com a nossa identidade. Por se tratar de uma modalidade de dança que tem uma estética elástica e maleável, muitas coisas são Tribal Fusion e se não sabemos o que realmente gostamos de ver e de fazer, acabamos no “limbo da moda”, seja a estética das “russas alongadas e saradas” , das “old school cheias de kuchi e assuit”, das “experimentais conceituais”, das “Rachels Brices super técnicas”, sejam as Indian Fusion, Rock Fusion, Dark Fusion, Flamenco Fusion, Neo Fusion e etc somos capturadas por um mar de possibilidades e referências.


Neste sentido, preparar diversas playlists no YouTube com os vídeos das dançarinas que você conhece, e até gosta superficialmente, pode ser a solução para os seus problemas. Saber dizer “Eu respeito a dançarina X por tudo que ela representa, mas o trabalho dela não me move como o da dançarina Y” é de grande importância para encontrar por onde você quer construir a sua dança. E essas escolhas não são eternas, em algum momento você pode se (re)encontrar com uma dançarina que passa a te mover. Assim, o processo contínuo de apreciação coreográfica te ajudará a consumir a arte de forma totalmente consciente e te apontará para caminhos criativos afins com o que você se identifica.


Um último ponto que acreditamos ser relevante em relação a apreciação coreográfica é mais direcionado para pessoas que gostam de compreender como a cena está se desenhando e onde os discursos estão convergindo, ou não. Como teórica da dança de formação, essa é uma pergunta que muito me atrai. Saber como as pessoas estão produzindo suas danças, como os grandes festivais estão selecionando as artistas principais e como as influenciadoras estão se posicionando em cena é uma caminho para compreender para onde vamos com a manifestação artística num tempo futuro.


Como exemplo, o evento Tribal Massive que aconteceu em março de 2020 publicou todas as apresentações que anteriormente seriam chamadas de Tribal Fusion Bellydance, como Fusion Bellydance. Esse nome que ainda não circulava aqui no Brasil, nessa época, com tanta força passou a ser amplamente utilizado pelas profissionais alguns meses após a divulgação dos vídeos (por volta de maio/junho). O favorito no país, até então, era Dança do Ventre do Estilo Tribal que acabou sendo abandonado por muitas das profissionais que seguiram, talvez de forma até inconsciente, o nome definido pelo festival meses antes.


Conclusão  



Buscamos no presente artigo apresentar o conceito de apreciação coreográfica como uma importante ferramenta do campo da Dança para a criação e investigação no Tribal Fusion. Apresentamos 3 principais caminhos para utilização: 1) a investigação de uma pergunta no processo de criação; 2) como aprofundamento do conhecimento estético da manifestação e derivações; 3) como fonte de análise de tendências da cena. 


Nosso intuito ao abrir a discussão é de apresentar uma ferramenta que possa auxiliar tanto na qualidade, quanto na profundidade de suas criações, assim como evidenciar o comprometimento ético em relação ao plágio estético e intelectual. A cada dia, fica mais evidente a importância de ferramentas e metodologias no fazer artístico que possam nos embasar de forma criteriosa e ética.   


Sigamos unidas!        



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Campo em Cena


Thaisa Martins (Rio de Janeiro-RJ) é graduada em Teoria da Dança (UFRJ) e mestranda em Arqueologia (UFRJ) onde pesquisa processos de reconstrução de dança na Índia antiga. É sócia do Medusa Tribal Studio, estúdio de dança dedicado ao Tribal Fusion, suas derivações e origens no RJ,  junto com a dançarina e fisioterapeuta Maya Felipe. Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >> 

[Campo em Cena] Composição coreográfica e Pesquisa de movimento: Quais as diferenças e como estou criando a minha Fusão?

 por Thaisa Martins


Quantas vezes nos pegamos assistindo uma apresentação de Tribal e pensando “Uau! Isso que ela está fazendo é tão diferente de tudo o que já vi!!" ou então “Nossa, a dançarina tal tem umas coisas que só ela faz, é algo DELA”?  E quantas vezes nos vimos assistindo uma apresentação em que nos sentimos conectadas com cada passo da dançarina que quase dançamos junto na nossa cabeça? Qual a diferença entre esses dois tipos de obras coreográficas? Uma é melhor do que a outra? Essas são algumas das perguntas que vamos tentar responder neste artigo.

Nos estudos teóricos do campo da Dança, existem dois conceitos muito imbricados mas que nos levam a caminhos bem diferentes na criação de uma obra coreográfica. Eles são a composição coreográfica e a pesquisa de movimento.


Podemos entender como composição coreográfica o processo de organização dos códigos já inseridos no corpo de quem o cria. Assim, quando criamos uma obra partindo do ponto da composição coreográfica, pegamos os passos que já conhecemos e dominamos, geralmente de uma modalidade (ex: shimmy, batida lateral, ondulação de coluna e etc), e os organizamos de uma maneira específica. Seja numa camada da música, na contagem do pulso ou qualquer outro caminho que a dançarina escolher. Eu estou compondo, pegando os elementos e criando algo que será apresentado. 


Pesquisa de movimento é um processo mais longo, anterior à composição coreográfica e  que exige um maior investimento de tempo para a criação da coreografia pois nele partimos para uma investigação de movimento, construindo e reconstruindo códigos corporais. Diferente do que possa parecer, nós não partimos “do zero” numa pesquisa de movimento, uma vez que os códigos que conhecemos e dominamos fazem parte de nossa corporeidade e da nossa forma de mover. O que fazemos aqui é uma busca por percorrer diferentes caminhos nessas inscrições corporais. O passo torna-se insumo, torna-se base para “uma coisa outra” que irá surgir. A composição vem em um segundo momento, quando eu organizo os resultados da pesquisa de movimento em uma obra.

E qual é o melhor caminho a ser seguido? A resposta aqui é bem simples. Aquele que for mais interessante para você! O estudo teórico da Dança não tem como objetivo delimitar “passos a serem seguidos” ou criar regras gerais para o fazer artístico em dança. O que ele nos propõe são ferramentas que visam potencializar a criação. Com essa reflexão buscamos mostrar que existem caminhos diferentes  que você pode escolher o que melhor se adequa a sua coreografia.


Buscando Referências

Um caminho que pode ajudar a identificar o que você está buscando é apreciar coreografias de outras dançarinas,  destacando o que mais te chama nessas obras. Esse é um bom termômetro para o seu estudo. Note que não se trata de copiar outra dançarina, mas sim compreender o que você admira no trabalho dela e que pode servir como um parâmetro investigativo na sua criação. Para fins de exemplificação, vamos analisar duas obras de dançarinas muito conhecidas, identificando se a obra trata-se de uma composição coreográfica ou pesquisa de movimento. Por favor, assista o vídeo antes de ler a análise, se necessário volte ao mesmo para tentar identificar os pontos destacados.

  

"Glide" por Rachel Brice | Intérpretes: Rachel Brice, Danielle Elizabeth, e Tabra Bay.    


 

Em “Glide” (“deslizar” ou “planar”) podemos observar que trata-se de um trabalho que parte da composição coreográfica para sua criação. Apreciando a coreografia é possível identificar que todos os movimentos fazem parte do repertório do Datura Style (criado pela coreógrafa). Esse tipo de criação exige uma limpeza e alto nível técnico em sua execução. Observe que a dramaturgia está presente na obra, e o aprofundamento investigativo é tão necessário quanto numa pesquisa de movimento, uma vez que não se trata apenas de juntar passos. Nesse tipo de construção, pontos de execução como espaço, forma, dinâmica e ritmo serão cruciais para as alterações nas qualidades do movimento. Vale ressaltar que é mais difícil imprimir sua identidade nesse tipo de processo de criação, uma vez que se apropriar de uma técnica a ponto dela “ser você” e vice- versa demanda muito tempo de treino e dedicação. Esse é o caminho de criação que mais identificamos  na cena brasileira, e como referência na composição coreográfica do Tribal Fusion podemos citar a dançarina Mariana Quadros


"March" por  Tiana Frolkina | Intérpretes: Dragonfly Tribe 


A obra "March" (“Março”) da dançarina e coreógrafa Tiana Frolkina é um exemplo de trabalho desenvolvido a partir de pesquisa de movimento. Ao apreciar a obra com bastante atenção, podemos identificar que além de uma dramaturgia bem definida, a obra apresenta uma identidade coreográfica muito peculiar. Mais do que uma junção de movimentos, conseguimos identificar padrões da estética Tribal associados a movimentos bem incomuns e a gestos do cotidiano como o ninar o bebê, a oração, o tecer e o tocar um instrumento de corda. A obra te leva para muitas cenas, uma das “marcas registradas” do trabalho de Tina Frolkina.


Em 2018, tivemos a oportunidade de estudar com a mesma esta coreografia (quando Luisana trouxe-a à Argentina). Ao compartilhar seu processo de criação, Tiana nos contou que ele envolveu a observação dos movimentos das mulheres camponesas durante as 4 estações do ano. O frio e o calor, o semear e o colher, o parir e o envelhecer, o cozinhar e o cuidar foram algumas das qualidades que ela se inspirou para produzir a obra. Sem sair da estética Tribal, a coreógrafa imprimiu todas essas informações na sua pesquisa de movimento. Na cena Tribal brasileira, temos como referência na pesquisa de movimento a dançarina Paula Braz.


E a Fusão com outros estilos?


Esse é um caminho mais complicado de analisar que o anterior, pois a dançarina precisa dominar as duas técnicas que se propõe a fusionar para desenvolver um trabalho de excelência. O grande problema desta questão é o tempo e dedicação que são necessários para que os códigos sejam devidamente dominados pelas intérpretes. Os “recorte e cola”  ficam bastante evidentes quando utilizados em uma obra. Geralmente é por meio da composição coreográfica que caímos nesta falha,  pois partimos da premissa de junção de passos para a criação. Acreditamos que este é um dos pontos-chave para compreender os problemas da apropriação cultural que estão tão evidentes nos dias de hoje (mas isto é assunto para um outro artigo). Apresentaremos em seguida um trabalho de fusão que nos evidencia essa diferença entre ter propriedade das modalidades ou não.



“Tanta Flores” | Interpretes criadoras: Flamenco Moria Chappell & Silvia Salamanca | Tribal Fusion Bellydance: Odissi Fusion & Gypsy 




Na obra colaborativa “Tanta Flores”, podemos identificar duas dançarinas de Tribal que se especializaram em uma segunda modalidade de dança e resolveram colocar as suas fusões para dialogar. Observem a propriedade da Salamanca com o Gypsy Flamenco e da Chappell com o Odissi. Quando uma se propõe a fazer uma movimentação da estética da outra, salta aos nossos olhos a diferença técnica, evidenciando quando a dançarina está fazendo a sua fusão e quando ela apenas imita a outra, sem a mesma propriedade. Isto não é um problema para a obra em questão, pois a proposta das intérpretes-criadoras foi o diálogo entre as técnicas e não o fusionamento em si. Mas se você está desenvolvendo um trabalho de fusão, é importante refletir sobre esse lugar de apropriação técnica antes de qualquer coisa. Como referência na pesquisa de fusão brasileira podemos citar a dançarina Kilma Farias com o Tribal Brasil.


Conclusão

Buscamos apontar as diferenças entre uma obra coreográfica que trilha o caminho da  composição coreográfica em seu processo criativo da que segue pela pesquisa de movimento. Apresentamos de forma sucinta a diferença entre esses dois caminhos criativos, trazendo exemplos de obras de coreógrafas renomadas na cena Tribal internacional. Também buscamos refletir sobre a questão da fusão, destacando a importância do aprimoramento técnico nas duas modalidades para uma fusão de excelência, 

Esperamos com esse artigo, que dançarinas amadoras e profissionais sintam-se instigadas a refletir como estão criando suas obras coreográficas e que desperte a curiosidade de experimentar esses diferentes caminhos. Gostaríamos de inspirar dançarinas a fazer algo totalmente diferente do que estão acostumadas, ao mesmo tempo em que se aprofundam com mais propriedade no que já fazem hoje. Acreditamos que nossa cena tem muito espaço para diferentes produções artísticas e o estudo das teorias do campo da Dança podem nos auxiliar a alcançar novos direcionamentos e amadurecimento da cena enquanto uma manifestação artística.

Sigamos criando unidas!    


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Campo em Cena


Thaisa Martins (Rio de Janeiro-RJ) é graduada em Teoria da Dança (UFRJ) e mestranda em Arqueologia (UFRJ) onde pesquisa processos de reconstrução de dança na Índia antiga. É sócia do Medusa Tribal Studio, estúdio de dança dedicado ao Tribal Fusion, suas derivações e origens no RJ,  junto com a dançarina e fisioterapeuta Maya Felipe. Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >> 

[Campo em Cena] Ética na Dança: E o porquê precisamos falar sobre ela.

 por Thaisa Martins



Será que falar sobre ética na dança é algo relevante? Afinal, todas nós somos pessoas éticas… não somos? Desdobrando um pouco mais a questão me pergunto, a conduta ética expressa pelo indivíduo em seu meio social (em casa, com os amigos, e etc) é o suficiente para satisfazer as especificidades do seu meio profissional? E ainda, enquanto pessoas inseridas no campo da dança (profissionais ou amadoras), há a necessidade de se estabelecer um código ético para nos guiar? Antes de nos debruçarmos nessas perguntas um tanto quanto espinhentas, acredito que faz se necessária uma pergunta anterior. O que é ética? Recorrendo ao dicionário em busca de respostas, encontro as seguintes definições para ética: “1. parte da filosofia responsável pela investigação dos princípios que motivam, distorcem, disciplinam ou orientam o comportamento humano, refletindo especialmente a respeito da essência das normas, valores, prescrições e exortações presentes em qualquer realidade social. 2. POR EXTENSÃO: conjunto de regras e preceitos de ordem valorativa e moral de um indivíduo, de um grupo social ou de uma sociedade.’é profissional’ “ Começo a compreender que a ética está conectada ao estudo dos valores morais e regras de conduta que normatizam as ações humanas. Através de seus códigos, instaura-se o discernimento entre o certo e errado em uma sociedade. Ela também está ligada aos costumes e tradições sociais. Seguindo por essa trilha, podemos afirmar que existem muitas visões sobre o que é ou não ético, pois cada sociedade estabelecerá seus valores morais, que serão absorvidos ou não pelo indivíduo. A escrita dos códigos éticos surge como ferramenta para estabelecer um caminho harmonioso nos diversos fazeres humanos. Reflexões no campo da dança Então, falar sobre ética na dança se faz necessário pois trata-se de um fazer extremamente especializado, onde lidamos com corpos em uma sociedade capitalista que incentiva a total anestesia corporal. Em sua tese de doutorado, o pesquisador e professor das graduações em Dança da UFRJ, Marcos Vinicius Machado de Almeida (2006) aponta, “ Quem trabalha com o corpo, seja educador, terapeuta ou artista deve ter este compromisso ético. Não pode haver prática ou pensamento sobre o corpo na contemporaneidade que não compreenda que esta potência de criação deve nos levar para valores éticos com relação ao corpo.” (p.182) Ao refletirmos sobre ética na dança, também estamos falando sobre a forma que lidamos com nossos corpos enquanto dançarinas. A supremacia da técnica impecável que deforma, lesiona, objetifica e anestesia o corpo numa busca insana por um padrão estético de movimentação. Queremos ser qualquer uma delas: Rachel Brice, Mardi Love, Polina Shandarina, Olga Meos e etc. Queremos ser todas, menos nós mesmas. E como fica nosso compromisso ético com nossos corpos nesse momento? Quando me pergunto sobre ética de campo e suas diferenças entre a ética individual (que aqui caracterizo como expressa pelo indivíduo em seu meio social), um exemplo do campo da advocacia me vem à mente. No Brasil todos os indivíduos, culpados ou não, tem direito de defesa de acordo com a Constituição Federal de 1988. Assim, independentemente dos valores morais que envolvam o caso, o réu terá um advogado para defendê-lo de forma isenta. Por mais que o advogado acredite na culpa de seu cliente e isso fira sua ética individual, ele deverá seguir o Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil, que no artigo 21 estabelece que "é direito e dever do advogado assumir a defesa criminal, sem considerar sua própria opinião sobre a culpa do acusado". Podemos perceber dois pontos nesse exemplo: A primeira, em como a conduta ética do campo da advocacia pode ser diferente do que o advogado enquanto indivíduo acredita e a segunda, como é relevante que as definições éticas do campo estejam muito bem definidas para auxílio na ação. Quando as regras não estão postas, cabe ao próprio campo uma auto regulação. Os profissionais passam a agir de acordo com o que acreditam e muitas vezes seguem exemplos de outros colegas. Trazendo para a dança, podemos apontar diversos exemplos crônicos de condutas eticamente questionáveis. A infinita linhagem de professoras que gritam com suas alunas em sala de aula porque “quando ela era aluna era assim que funcionava”, professoras que estimulam fofocas depreciativas e maldosas entre alunas pois “somos amigas fora da sala de aula”, alunas que se sentem prontos para dar aula de dança após 2 meses de prática porque “com a minha professora também foi assim”, profissionais que não comparecem ao evento em que foi contratado pois “somos artistas e artista é assim mesmo”. Enfim, muitos outros exemplos seriam possíveis. Na minha percepção, nossa situação é tão frágil que até a definição do que é ser um profissional da dança encontra-se em aberto. Hoje a lei que regulamenta a atividade profissional da dança é a chamada “Lei do Artista” nº 6.533/78 que não abrange especificamente as peculiaridades do fazer em Dança. Tramita na Câmara Federal desde 03/2016 a PL 4.768/2016 que, ao ser publicada, regulamentará a atividade profissional da dança mas que ainda assim, não entra nos pontos de competência ética. Nesse caso, cabe ao Sindicato de Profissionais de Dança a responsabilidade de propor e fiscalizar as questões éticas do campo da dança. Mas as perguntas que ficam são: Como esperar que os profissionais da dança busquem, participem e cobrem de seu sindicato por um código de ética, sem que os mesmos tenham desenvolvido a consciência de classe? Será que todos os profissionais têm noção de que o sindicato é uma instituição formada por e para eles próprios? Você tem? E na cena Tribal? Colocando a questão de forma ainda mais específica, trago essas reflexões para a cena Tribal brasileira. Podemos inferir que as coisas não são tão diferentes do quadro apontado anteriormente (levante a mão quem nunca experienciou um dos exemplos acima apontados), pois estamos inseridas nesse grande grupo que é o campo da dança. Sinto que urge a necessidade de sentarmos enquanto classe de profissionais para refletir sobre a conduta ética e seus desdobramentos na cena Tribal. Começando desde o problema do nome (que cada um passará a chamar como bem entender), passando por temas como condutas desrespeitosas entre profissionais, regulamentação de cursos de formação, até questões mais elementares como currículo profissional (será que é ético aqueles infinitos nomes de profissionais nacionais e internacionais que a pessoa fez uma única oficina na vida, mas que vende como algo muito mais relevante para atrair público em suas aulas?), até a conduta em sala de aula de professoras e alunas. Me pergunto por mais quanto tempo estaremos a mercê da maré, fazendo coisas que nem sempre concordamos, apenas para suprir uma necessidade, muitas vezes, fantasiosa. Sei que o assunto é delicado pois mexe com o nosso emocional e crenças, mas acredito que temos maturidade profissional para compreender que a posição da outra pode (e deve) ser divergente da nossa, mas que isso não nos torna inimigas da vida. Concluo minha fala apontando para os muitos espaços de reflexão que ainda existem sobre o assunto “ética na dança”. Quanto mais profissionais se engajarem na questão, a fim de mudar nossa situação, mais proveitoso será para o campo e mais rápido alcançaremos diferentes resultados. Aponto ainda, que o incômodo visceral que o debate nos gera, acaba por forçar nossa cena, formada majoritariamente de mulheres, a abandonar de uma vez por todas os freios morais da “bela, recatada e do lar” tão enraizado na cultura ocidental, e passa a estimular que tenhamos um posicionamento crítico da nossa existência enquanto artistas, profissionais, comunidade e indivíduos.


Referência Bibliográfica:

ALMEIDA, Marcus Vinicius Machado de et al. A selvagem dança do corpo. 2006.

DO BRASIL, Ordem dos Advogados. Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil. 1995.

Dicionário Online Oxford Languages. Acesso em 14/08/2020


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Campo em Cena


Thaisa Martins (Rio de Janeiro-RJ) é graduada em Teoria da Dança (UFRJ) e mestranda em Arqueologia (UFRJ) onde pesquisa processos de reconstrução de dança na Índia antiga. É sócia do Medusa Tribal Studio, estúdio de dança dedicado ao Tribal Fusion, suas derivações e origens no RJ,  junto com a dançarina e fisioterapeuta Maya Felipe. Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >> 
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Campo em Cena por Thaisa Martins

Campo em Cena

Thaisa Martins,  Rio de Janeiro-RJ, Brasil


Sobre a Coluna:

Trago a você um convite a reflexão crítica sobre o “fazer Dança”. Proponho discutirmos assuntos que envolvem e são envolvidos pelo campo da Dança, e que afetam direta ou indiretamente a cena do Tribal Fusion, suas derivações e origens. Questões como ética, estética, curadoria, crítica, processo criativo, análise de movimento, entre outros serão colocados em cena!      

Sobre a Autora:

Graduada em Teoria da Dança (UFRJ) e mestranda em Arqueologia (UFRJ) onde pesquisa processos de reconstrução de dança na Índia antiga. É sócia do Medusa Tribal Studio, estúdio de dança dedicado ao Tribal Fusion, suas derivações e origens no RJ,  junto com a dançarina e fisioterapeuta Maya Felipe.









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