[Campo em Cena] Ética na Dança: E o porquê precisamos falar sobre ela.

 por Thaisa Martins



Será que falar sobre ética na dança é algo relevante? Afinal, todas nós somos pessoas éticas… não somos? Desdobrando um pouco mais a questão me pergunto, a conduta ética expressa pelo indivíduo em seu meio social (em casa, com os amigos, e etc) é o suficiente para satisfazer as especificidades do seu meio profissional? E ainda, enquanto pessoas inseridas no campo da dança (profissionais ou amadoras), há a necessidade de se estabelecer um código ético para nos guiar? Antes de nos debruçarmos nessas perguntas um tanto quanto espinhentas, acredito que faz se necessária uma pergunta anterior. O que é ética? Recorrendo ao dicionário em busca de respostas, encontro as seguintes definições para ética: “1. parte da filosofia responsável pela investigação dos princípios que motivam, distorcem, disciplinam ou orientam o comportamento humano, refletindo especialmente a respeito da essência das normas, valores, prescrições e exortações presentes em qualquer realidade social. 2. POR EXTENSÃO: conjunto de regras e preceitos de ordem valorativa e moral de um indivíduo, de um grupo social ou de uma sociedade.’é profissional’ “ Começo a compreender que a ética está conectada ao estudo dos valores morais e regras de conduta que normatizam as ações humanas. Através de seus códigos, instaura-se o discernimento entre o certo e errado em uma sociedade. Ela também está ligada aos costumes e tradições sociais. Seguindo por essa trilha, podemos afirmar que existem muitas visões sobre o que é ou não ético, pois cada sociedade estabelecerá seus valores morais, que serão absorvidos ou não pelo indivíduo. A escrita dos códigos éticos surge como ferramenta para estabelecer um caminho harmonioso nos diversos fazeres humanos. Reflexões no campo da dança Então, falar sobre ética na dança se faz necessário pois trata-se de um fazer extremamente especializado, onde lidamos com corpos em uma sociedade capitalista que incentiva a total anestesia corporal. Em sua tese de doutorado, o pesquisador e professor das graduações em Dança da UFRJ, Marcos Vinicius Machado de Almeida (2006) aponta, “ Quem trabalha com o corpo, seja educador, terapeuta ou artista deve ter este compromisso ético. Não pode haver prática ou pensamento sobre o corpo na contemporaneidade que não compreenda que esta potência de criação deve nos levar para valores éticos com relação ao corpo.” (p.182) Ao refletirmos sobre ética na dança, também estamos falando sobre a forma que lidamos com nossos corpos enquanto dançarinas. A supremacia da técnica impecável que deforma, lesiona, objetifica e anestesia o corpo numa busca insana por um padrão estético de movimentação. Queremos ser qualquer uma delas: Rachel Brice, Mardi Love, Polina Shandarina, Olga Meos e etc. Queremos ser todas, menos nós mesmas. E como fica nosso compromisso ético com nossos corpos nesse momento? Quando me pergunto sobre ética de campo e suas diferenças entre a ética individual (que aqui caracterizo como expressa pelo indivíduo em seu meio social), um exemplo do campo da advocacia me vem à mente. No Brasil todos os indivíduos, culpados ou não, tem direito de defesa de acordo com a Constituição Federal de 1988. Assim, independentemente dos valores morais que envolvam o caso, o réu terá um advogado para defendê-lo de forma isenta. Por mais que o advogado acredite na culpa de seu cliente e isso fira sua ética individual, ele deverá seguir o Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil, que no artigo 21 estabelece que "é direito e dever do advogado assumir a defesa criminal, sem considerar sua própria opinião sobre a culpa do acusado". Podemos perceber dois pontos nesse exemplo: A primeira, em como a conduta ética do campo da advocacia pode ser diferente do que o advogado enquanto indivíduo acredita e a segunda, como é relevante que as definições éticas do campo estejam muito bem definidas para auxílio na ação. Quando as regras não estão postas, cabe ao próprio campo uma auto regulação. Os profissionais passam a agir de acordo com o que acreditam e muitas vezes seguem exemplos de outros colegas. Trazendo para a dança, podemos apontar diversos exemplos crônicos de condutas eticamente questionáveis. A infinita linhagem de professoras que gritam com suas alunas em sala de aula porque “quando ela era aluna era assim que funcionava”, professoras que estimulam fofocas depreciativas e maldosas entre alunas pois “somos amigas fora da sala de aula”, alunas que se sentem prontos para dar aula de dança após 2 meses de prática porque “com a minha professora também foi assim”, profissionais que não comparecem ao evento em que foi contratado pois “somos artistas e artista é assim mesmo”. Enfim, muitos outros exemplos seriam possíveis. Na minha percepção, nossa situação é tão frágil que até a definição do que é ser um profissional da dança encontra-se em aberto. Hoje a lei que regulamenta a atividade profissional da dança é a chamada “Lei do Artista” nº 6.533/78 que não abrange especificamente as peculiaridades do fazer em Dança. Tramita na Câmara Federal desde 03/2016 a PL 4.768/2016 que, ao ser publicada, regulamentará a atividade profissional da dança mas que ainda assim, não entra nos pontos de competência ética. Nesse caso, cabe ao Sindicato de Profissionais de Dança a responsabilidade de propor e fiscalizar as questões éticas do campo da dança. Mas as perguntas que ficam são: Como esperar que os profissionais da dança busquem, participem e cobrem de seu sindicato por um código de ética, sem que os mesmos tenham desenvolvido a consciência de classe? Será que todos os profissionais têm noção de que o sindicato é uma instituição formada por e para eles próprios? Você tem? E na cena Tribal? Colocando a questão de forma ainda mais específica, trago essas reflexões para a cena Tribal brasileira. Podemos inferir que as coisas não são tão diferentes do quadro apontado anteriormente (levante a mão quem nunca experienciou um dos exemplos acima apontados), pois estamos inseridas nesse grande grupo que é o campo da dança. Sinto que urge a necessidade de sentarmos enquanto classe de profissionais para refletir sobre a conduta ética e seus desdobramentos na cena Tribal. Começando desde o problema do nome (que cada um passará a chamar como bem entender), passando por temas como condutas desrespeitosas entre profissionais, regulamentação de cursos de formação, até questões mais elementares como currículo profissional (será que é ético aqueles infinitos nomes de profissionais nacionais e internacionais que a pessoa fez uma única oficina na vida, mas que vende como algo muito mais relevante para atrair público em suas aulas?), até a conduta em sala de aula de professoras e alunas. Me pergunto por mais quanto tempo estaremos a mercê da maré, fazendo coisas que nem sempre concordamos, apenas para suprir uma necessidade, muitas vezes, fantasiosa. Sei que o assunto é delicado pois mexe com o nosso emocional e crenças, mas acredito que temos maturidade profissional para compreender que a posição da outra pode (e deve) ser divergente da nossa, mas que isso não nos torna inimigas da vida. Concluo minha fala apontando para os muitos espaços de reflexão que ainda existem sobre o assunto “ética na dança”. Quanto mais profissionais se engajarem na questão, a fim de mudar nossa situação, mais proveitoso será para o campo e mais rápido alcançaremos diferentes resultados. Aponto ainda, que o incômodo visceral que o debate nos gera, acaba por forçar nossa cena, formada majoritariamente de mulheres, a abandonar de uma vez por todas os freios morais da “bela, recatada e do lar” tão enraizado na cultura ocidental, e passa a estimular que tenhamos um posicionamento crítico da nossa existência enquanto artistas, profissionais, comunidade e indivíduos.


Referência Bibliográfica:

ALMEIDA, Marcus Vinicius Machado de et al. A selvagem dança do corpo. 2006.

DO BRASIL, Ordem dos Advogados. Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil. 1995.

Dicionário Online Oxford Languages. Acesso em 14/08/2020


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Campo em Cena


Thaisa Martins (Rio de Janeiro-RJ) é graduada em Teoria da Dança (UFRJ) e mestranda em Arqueologia (UFRJ) onde pesquisa processos de reconstrução de dança na Índia antiga. É sócia do Medusa Tribal Studio, estúdio de dança dedicado ao Tribal Fusion, suas derivações e origens no RJ,  junto com a dançarina e fisioterapeuta Maya Felipe. Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >> 
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