[Campo em Cena] Composição coreográfica e Pesquisa de movimento: Quais as diferenças e como estou criando a minha Fusão?

 por Thaisa Martins


Quantas vezes nos pegamos assistindo uma apresentação de Tribal e pensando “Uau! Isso que ela está fazendo é tão diferente de tudo o que já vi!!" ou então “Nossa, a dançarina tal tem umas coisas que só ela faz, é algo DELA”?  E quantas vezes nos vimos assistindo uma apresentação em que nos sentimos conectadas com cada passo da dançarina que quase dançamos junto na nossa cabeça? Qual a diferença entre esses dois tipos de obras coreográficas? Uma é melhor do que a outra? Essas são algumas das perguntas que vamos tentar responder neste artigo.

Nos estudos teóricos do campo da Dança, existem dois conceitos muito imbricados mas que nos levam a caminhos bem diferentes na criação de uma obra coreográfica. Eles são a composição coreográfica e a pesquisa de movimento.


Podemos entender como composição coreográfica o processo de organização dos códigos já inseridos no corpo de quem o cria. Assim, quando criamos uma obra partindo do ponto da composição coreográfica, pegamos os passos que já conhecemos e dominamos, geralmente de uma modalidade (ex: shimmy, batida lateral, ondulação de coluna e etc), e os organizamos de uma maneira específica. Seja numa camada da música, na contagem do pulso ou qualquer outro caminho que a dançarina escolher. Eu estou compondo, pegando os elementos e criando algo que será apresentado. 


Pesquisa de movimento é um processo mais longo, anterior à composição coreográfica e  que exige um maior investimento de tempo para a criação da coreografia pois nele partimos para uma investigação de movimento, construindo e reconstruindo códigos corporais. Diferente do que possa parecer, nós não partimos “do zero” numa pesquisa de movimento, uma vez que os códigos que conhecemos e dominamos fazem parte de nossa corporeidade e da nossa forma de mover. O que fazemos aqui é uma busca por percorrer diferentes caminhos nessas inscrições corporais. O passo torna-se insumo, torna-se base para “uma coisa outra” que irá surgir. A composição vem em um segundo momento, quando eu organizo os resultados da pesquisa de movimento em uma obra.

E qual é o melhor caminho a ser seguido? A resposta aqui é bem simples. Aquele que for mais interessante para você! O estudo teórico da Dança não tem como objetivo delimitar “passos a serem seguidos” ou criar regras gerais para o fazer artístico em dança. O que ele nos propõe são ferramentas que visam potencializar a criação. Com essa reflexão buscamos mostrar que existem caminhos diferentes  que você pode escolher o que melhor se adequa a sua coreografia.


Buscando Referências

Um caminho que pode ajudar a identificar o que você está buscando é apreciar coreografias de outras dançarinas,  destacando o que mais te chama nessas obras. Esse é um bom termômetro para o seu estudo. Note que não se trata de copiar outra dançarina, mas sim compreender o que você admira no trabalho dela e que pode servir como um parâmetro investigativo na sua criação. Para fins de exemplificação, vamos analisar duas obras de dançarinas muito conhecidas, identificando se a obra trata-se de uma composição coreográfica ou pesquisa de movimento. Por favor, assista o vídeo antes de ler a análise, se necessário volte ao mesmo para tentar identificar os pontos destacados.

  

"Glide" por Rachel Brice | Intérpretes: Rachel Brice, Danielle Elizabeth, e Tabra Bay.    


 

Em “Glide” (“deslizar” ou “planar”) podemos observar que trata-se de um trabalho que parte da composição coreográfica para sua criação. Apreciando a coreografia é possível identificar que todos os movimentos fazem parte do repertório do Datura Style (criado pela coreógrafa). Esse tipo de criação exige uma limpeza e alto nível técnico em sua execução. Observe que a dramaturgia está presente na obra, e o aprofundamento investigativo é tão necessário quanto numa pesquisa de movimento, uma vez que não se trata apenas de juntar passos. Nesse tipo de construção, pontos de execução como espaço, forma, dinâmica e ritmo serão cruciais para as alterações nas qualidades do movimento. Vale ressaltar que é mais difícil imprimir sua identidade nesse tipo de processo de criação, uma vez que se apropriar de uma técnica a ponto dela “ser você” e vice- versa demanda muito tempo de treino e dedicação. Esse é o caminho de criação que mais identificamos  na cena brasileira, e como referência na composição coreográfica do Tribal Fusion podemos citar a dançarina Mariana Quadros


"March" por  Tiana Frolkina | Intérpretes: Dragonfly Tribe 


A obra "March" (“Março”) da dançarina e coreógrafa Tiana Frolkina é um exemplo de trabalho desenvolvido a partir de pesquisa de movimento. Ao apreciar a obra com bastante atenção, podemos identificar que além de uma dramaturgia bem definida, a obra apresenta uma identidade coreográfica muito peculiar. Mais do que uma junção de movimentos, conseguimos identificar padrões da estética Tribal associados a movimentos bem incomuns e a gestos do cotidiano como o ninar o bebê, a oração, o tecer e o tocar um instrumento de corda. A obra te leva para muitas cenas, uma das “marcas registradas” do trabalho de Tina Frolkina.


Em 2018, tivemos a oportunidade de estudar com a mesma esta coreografia (quando Luisana trouxe-a à Argentina). Ao compartilhar seu processo de criação, Tiana nos contou que ele envolveu a observação dos movimentos das mulheres camponesas durante as 4 estações do ano. O frio e o calor, o semear e o colher, o parir e o envelhecer, o cozinhar e o cuidar foram algumas das qualidades que ela se inspirou para produzir a obra. Sem sair da estética Tribal, a coreógrafa imprimiu todas essas informações na sua pesquisa de movimento. Na cena Tribal brasileira, temos como referência na pesquisa de movimento a dançarina Paula Braz.


E a Fusão com outros estilos?


Esse é um caminho mais complicado de analisar que o anterior, pois a dançarina precisa dominar as duas técnicas que se propõe a fusionar para desenvolver um trabalho de excelência. O grande problema desta questão é o tempo e dedicação que são necessários para que os códigos sejam devidamente dominados pelas intérpretes. Os “recorte e cola”  ficam bastante evidentes quando utilizados em uma obra. Geralmente é por meio da composição coreográfica que caímos nesta falha,  pois partimos da premissa de junção de passos para a criação. Acreditamos que este é um dos pontos-chave para compreender os problemas da apropriação cultural que estão tão evidentes nos dias de hoje (mas isto é assunto para um outro artigo). Apresentaremos em seguida um trabalho de fusão que nos evidencia essa diferença entre ter propriedade das modalidades ou não.



“Tanta Flores” | Interpretes criadoras: Flamenco Moria Chappell & Silvia Salamanca | Tribal Fusion Bellydance: Odissi Fusion & Gypsy 




Na obra colaborativa “Tanta Flores”, podemos identificar duas dançarinas de Tribal que se especializaram em uma segunda modalidade de dança e resolveram colocar as suas fusões para dialogar. Observem a propriedade da Salamanca com o Gypsy Flamenco e da Chappell com o Odissi. Quando uma se propõe a fazer uma movimentação da estética da outra, salta aos nossos olhos a diferença técnica, evidenciando quando a dançarina está fazendo a sua fusão e quando ela apenas imita a outra, sem a mesma propriedade. Isto não é um problema para a obra em questão, pois a proposta das intérpretes-criadoras foi o diálogo entre as técnicas e não o fusionamento em si. Mas se você está desenvolvendo um trabalho de fusão, é importante refletir sobre esse lugar de apropriação técnica antes de qualquer coisa. Como referência na pesquisa de fusão brasileira podemos citar a dançarina Kilma Farias com o Tribal Brasil.


Conclusão

Buscamos apontar as diferenças entre uma obra coreográfica que trilha o caminho da  composição coreográfica em seu processo criativo da que segue pela pesquisa de movimento. Apresentamos de forma sucinta a diferença entre esses dois caminhos criativos, trazendo exemplos de obras de coreógrafas renomadas na cena Tribal internacional. Também buscamos refletir sobre a questão da fusão, destacando a importância do aprimoramento técnico nas duas modalidades para uma fusão de excelência, 

Esperamos com esse artigo, que dançarinas amadoras e profissionais sintam-se instigadas a refletir como estão criando suas obras coreográficas e que desperte a curiosidade de experimentar esses diferentes caminhos. Gostaríamos de inspirar dançarinas a fazer algo totalmente diferente do que estão acostumadas, ao mesmo tempo em que se aprofundam com mais propriedade no que já fazem hoje. Acreditamos que nossa cena tem muito espaço para diferentes produções artísticas e o estudo das teorias do campo da Dança podem nos auxiliar a alcançar novos direcionamentos e amadurecimento da cena enquanto uma manifestação artística.

Sigamos criando unidas!    


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Campo em Cena


Thaisa Martins (Rio de Janeiro-RJ) é graduada em Teoria da Dança (UFRJ) e mestranda em Arqueologia (UFRJ) onde pesquisa processos de reconstrução de dança na Índia antiga. É sócia do Medusa Tribal Studio, estúdio de dança dedicado ao Tribal Fusion, suas derivações e origens no RJ,  junto com a dançarina e fisioterapeuta Maya Felipe. Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >> 
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