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[Sankofa] A leitura embranquecida de corpos negros na Dança

Por Samara Makal  (Rio de Janeiro-RJ)
Colaboração especial para coluna Sankofa
Coordenação: Monni Ferreira

Desde a primeira apresentação feita no Brasil por Zuleika Pinho em 1954, passando pelo trabalho de Shahrazad Shahid nos anos 70 e tendo seu auge nos anos 2000 com a transmissão da novela O Clone, a Dança do Ventre percorreu um longo caminho dentro da cultura artística brasileira, sendo influenciado pelos corpos, ritmos e leituras locais. De Sambuka (solo percussivo de Artem Uzunov) até as recentes performances fusionadas com músicas afro-brasileiras; a leitura ensinada às bailarinas que adentram a Dança do Ventre permanece sofrendo enorme influência de outros estilos embranquecidos como o Balé e o Jazz. Sendo assim, o que essas influências geram de diferença na leitura dos movimentos em corpos pretos e brancos?

Se você é uma bailarina preta ou bailarino preto já deve ter sido instruído a “segurar” seus movimentos para que sua leitura fosse mais suavizada e fluida de forma análoga aos movimentos de bailarinas clássicas. Pés em En dedan e En dehor criam o costume da base onde seu corpo irá reverberar movimentos milimetricamente calculados para a leitura musical Belly Dance, principalmente das conhecidas Rotinas Orientais (já não tão orientais assim).

Imagem ilustrativa da posição básica dos pés aplicada nas danças clássicas

Contudo, as diferenças que envolvem nossos corpos perpassam pelo primeiro estranhamento da estrutura física do corpo árabe para o brasileiro. No Brasil, corpos pretos, não-brancos e brancos possuem diferenças que vão além do fenótipo e que podem pôr fim vir a trazer os debates que ocorrem de forma recorrente sobre bancas de concursos, didáticas de ensino, entre outros.

De acordo com os estudos realizados por Bejan, Jones e Charles (2010) em “The evolution of speed in athletics: why the fastest runners are black and swimmers white” (A evolução da velocidade em atletas: porque os corredores mais rápidos são pretos e os nadadores brancos), até mesmo em atividades de atletismo existem diferenças antropométricas (parte da antropologia que trata da mensuração do corpo humano ou de suas partes) entre pretos e brancos devido a uma diferença de 3% na posição do centro de gravidade. Com isso indica-se que pessoas pretas tenham um centro de gravidade acima, o que proporciona maior desenvolvimento na realização de atividades que exijam maior desempenho da parte inferior do corpo (no estudo é demonstrado pelo atletismo) enquanto que pessoas brancas possuem um maior desenvolvimento na realização de atividades com a parte superior do corpo (no estudo, demonstrado através da natação).

E cá estamos... nesse momento nos questionando sobre o porquê de uma dança de berço africano, e que tem como essência uma leitura musical que mais se aproxima dos nossos corpos, é ensinada no Brasil, onde pretos e não-brancos são maioria, através de uma base embranquecida que ao invés de nos estimular ao uso de movimentos que nosso corpo conhece através de uma ancestralidade inerente, somos instruídas a segurar nossos intensos quadris e nos adaptar a uma leitura mais clássica, mais “Belly”, tendo como referência maioritariamente pessoas com centros de gravidade mais baixos e consequentemente ocupando um maior espaço de notoriedade. Não faria mais sentido que nós ocupássemos esse espaço de visibilidade?

Mulher Núbia

Da mesma forma não podemos generalizar a mulher preta brasileira como um molde onde sempre teremos quadris e bundas avantajadas, até porque não é isso que faz uma bailarina ter uma dança de qualidade. O colorismo trouxe para os corpos pretos uma grande diversidade fenotípica e genética que é amplamente debatida dentro e fora do movimento negro, porém não estamos aqui para estabelecer um ‘negrômetro’ ou dizer quem é preto e quem não é e sim para dizer que corpos pretos possuem sim essa predisposição ao ritmo percussivo. Caso haja interesse, recomendo a leitura do artigo: “Preto, pardo, negro, branco, indígena: quem é o que no Brasil?” de Simone Freire (2019). 

E mesmo se focarmos especificamente em nossos corpos brasileiros, excluindo por um segundo os movimentos que aprendemos na dança do ventre; danças como o Samba, Carimbó e Jongo tem como raíz uma percussão  trazida por nossos ancestrais africanos e que nos é passada desde a infância, pois são danças que por muito tempo foram tidas como “coisa de preto” e mais comumente tidas nos subúrbios e periferias. Logo, nossos corpos (que podem vir a manifestar leituras de diversas intensidades) já possuem em sua memória muscular a naturalidade da leitura percussiva.

Mas a realidade é que essa origem da dança não nos é apresentada quando iniciamos nossa jornada na dança do ventre e suas fusões. Através de um fetiche “Jadiânico”, cria-se a imagem que uma bailarina deve ter cabelos longos, lisos ou ondulados, barriga chapada, busto e quadril modestos, figurinos luxuosos, mas principalmente... branca. Esse estereótipo reforçado por cartazes de shows de gala, casas de chás e concursos são na verdade um grande balde de água fria para nós que entramos na dança seduzidas por uma proposta de sororidade e sagrado feminino, mas que somos invisibilizadas pelo Mercado a ponto de não ter como referência para nossa dança uma maioria de bailarinas pretas.

Personagem Jade da novela 'O Clone'

Agora vamos propor um exercício de reflexão: Olhem para a foto abaixo, alguma professora já fez questão de mostrá-la para você? Quantas vezes você foi apresentada a imagens de mulheres árabes que não fossem as da Golden Age – que já em seu tempo possuíam o privilégio de uma pele mais clara que abriu o caminho para que elas tivessem a oportunidade de provocar as mudanças na dança que estudamos hoje – ou que não fossem mulheres brancas? Uma vez uma amiga me disse “Quem escreve primeiro é o dono da caneta”, então se quem escreve o material que lemos e estudamos são pessoas brancas, logo não é interessante pra essas pessoas que nós tenhamos consciência da real origem do que dançamos porque nos faria questionar o material teórico e prático que nos cedem e pior, questionar o espaço de visibilidade que essas pessoas ocupam em função do nosso preterimento.

Mulher Egípcia

Agora vamos pensar na nossa estrada como bailarina. Pense em todas as suas vivências dentro da dança e responda as perguntas abaixo:

  • Quantas vezes você já pensou em alisar seu cabelo (ou pediram para você alisar) para se encaixar no padrão existente em concursos ou coreografias de grupo?

  • Você já se viu constantemente ocupando posições de fundo ou canto de palco nas coreografias de grupo?

  • Já recebeu avaliações em concurso que mencionavam seu cabelo, seu corpo ou qualquer coisa da sua aparência mesmo que indiretamente para justificar desconto de pontos?

  • Quantas vezes você já se viu como a única pessoa preta dentro de um espaço de dança?

  • Qual posição você aparece na maioria das fotos de grupo: Fundo, canto ou em destaque no centro?

Tais questionamentos não têm como objetivo criar uma indisposição entre você e o seu local de estudo da dança, porém tem como objetivo muito direto cultivar um pensamento crítico para que não nos deixemos colocar em uma posição de submissão perante o Mercado, pois também é o nosso dinheiro que alimenta essas posições, então nós temos o direito de reivindicar que ele nos contemple como artistas e consumidoras da arte de outras profissionais.

Felizmente, desde 2018, nos juntamos em uma tomada de consciência simbolizada pelo Movimento Bellyblack. Através dele construímos espaços de poder e visibilidade preta para contrapor diretamente a prática de “Dividir e conquistar” utilizada pela branquitude e que nos separa e oprime, fazendo com que haja uma sensação de não pertencimento em uma dança que surgiu junto a nossa ancestralidade. O que faz crescer uma corrente de acolhimento e incentivo para a leitura que nosso corpo genuinamente se propõe a construir, além da aceitação da nossa diversidade estética, fenotípica e de pensamentos que fazem nascer novos debates que só tendem a nos empoderar e enriquecer.

Página da Revista Shimmie com artigo sobre Movimento Bellyblack

Faz parte da descoberta e construção do nosso corpo negro enquanto diáspora entender que vem da nossa ancestralidade a força que constitui nossa essência e que a ciência estuda e comprova que nosso centro de gravidade, ou seja, o que nos equilibra na vida, se aproxima do nosso coração e consequentemente do nosso sentimental. O que nos equilibra enquanto artistas é o sentimento vivo que emanamos em nossa dança, é o axé que reverbera em nossos quadris e a força da nossa raiz que evocamos a cada passo, giro e expressão que fazemos. Nossa estética expõe sem pudor o orgulho que temos de ser pretas e de nos posicionar com firmeza enquanto comentários, antes tão normalizados sobre nossa leitura de dança e aparência, se enfraquecem diante do reconhecimento inegável da nossa presença nesse espaço. Porque já fizemos entender que estamos aqui, somos muitas e temos uma dança de exímia qualidade que carrega em cada movimento a essência de nossos ancestrais.

Não podemos deixar que o embranquecimento da Dança do Ventre e de suas fusões apague o que temos de mais único e coletivo. A presença de corpos negros mostra a força da nossa comunidade e a influência que teremos para outras bailarinas e bailarinos que entrarem para a modalidade. Seremos nós a referência e motivação. Bellyblacks, avante!

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Sankofa 


Samara Makal (Rio de Janeiro-RJ) é bailarina, coreógrafa e professora de dança, iniciando sua trajetória na Dança do Ventre em 2015, possuindo aprimoramentos diversos em folclore e danças populares, além performances e afrofusões. Samara também é bailarina de Dança Cigana e Comunicadora Social com experiência em consultoria de marketing e produção audiovisual para dança.

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Monni Ferreira (São Paulo-SP) entrou para o mundo da dança com 10 anos de idade e durante toda a sua trajetória nesta arte teve a oportunidade de vivenciar diferentes estilos de dança, como: árabes, contemporâneo, afro, moderna, street dance, brasileiras, flamenco, indiana, ballet, entre outras.Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >>

[Sankofa] 3º Fórum Orienta – Diversidade

por Monni Ferreira

Na semana de 06 a 10 de julho de 2020 aconteceu a terceira edição do Fórum Orienta - Diversidade promovido pela Revista Shimmie desta vem numa versão online no perfil da revista no Instagram. A proposta consistia em realizar um ciclo de lives para debater sobre racismo e preconceitos dentro do segmento da dança do ventre bem como as suas consequências tanto para aqueles que praticam quanto para o próprio mercado.

O projeto foi idealizado e elaborado pela bailarina e professora Angela Cheirosa, pioneira nos debates sobre a questão racial dentro da dança do ventre. Durante uma semana, Cheirosa assumiu o comando do perfil da Revista Shimmie para conduzir as lives com participação das também bailarinas Joice Amaral, Eliza Fari, Monni Ferreira, Shirlei Cunha e Jessie Ra’idah.

Já na primeira noite foi possível perceber a potência deste evento. Angela Cheirosa abriu a semana falando sobre racismo estrutural e contextualizando o legado deixado pela escravidão na construção da sociedade brasileira. Foi uma noite de muita emoção, lágrimas e revelações. De forma cronológica e didática, Cheirosa demonstrou como o racismo se apresenta na nossa sociedade e como os danos e as mazelas oriundas da escravidão no Brasil são colhidos até hoje.

Ela falou sobre a história do Brasil e da colonização a partir da perspectiva de uma mulher negra e que esta não é a história contada nos livros didáticos, uma vez que estes livros contam a história pelo viés de quem escravizou.

O racismo estrutural é a formalização e a normalização dos costumes racistas que são continuamente representados dentro da sociedade e que pautam as nossas relações, uma vez que estamos inseridos neste sistema e muitas vezes nem percebemos que praticamos estes costumes. Não adianta afirmar que racismo não existe ou que todos somos iguais ou ainda se posicionar afirmando que não enxerga cor quando na prática somos indivíduos completamente diferentes uns dos outros e somos julgados por isso. É preciso entender que estruturalmente somos racistas uma vez que estamos inseridos numa sociedade que normaliza atitudes racistas e que o racismo está inteiramente relacionado a perdas, a desvantagens, a tudo que tira direitos, espaços e até a vida.

É possível afirmar que esta live foi, na realidade, uma verdadeira aula super necessária para contextualizar tudo que ainda seria levantado nos próximos dias. Além de bailarina e professora, Cheirosa é também coreógrafa, produtora cultural e mantenedora do projeto social Flor de Lótus em Camaçari (BA), que há oito anos empodera mulheres através da arte da dança. Sua luta pela democratização da dança já dura muitos anos e neste momento de explosão da luta antirracista se faz necessário ressignificar tanto a história da Revista Shimmie, quanto a própria dança do ventre. Durante toda live ela frisou que este debate seria para aquelas pessoas que se importam e querem fazer parte da solução deste problema e ainda enfatizou que todas as reflexões abordadas durante a semana não representariam em totalidade todas as pessoas negras, pois, acima de tudo, existe o respeito pela individualidade. Cheirosa também destacou como marco histórico da ressignificação da dança do ventre no Brasil: a edição da Revista Shimmie em que ela foi capa no ano de 2017.

A segunda noite de debates teve como tema as estratégias de combate ao racismo na dança e contou com a participação de Monni Ferreira e mediação de Angela Cheirosa. Para iniciar fez-se necessário pontuar que o racismo não ocorre apenas quando há violência física uma vez que existe todo um sistema social que corrobora para a normalização de práticas racistas que passa pela falta de legitimidade das religiões de matriz africana até a marginalização do indivíduo pela cor da sua pele. Dito isso, é possível entender que o racismo estrutural valida a ausência de corpos negro em situação de protagonismo e que tanto a falta de pertencimento quanto a falta de representatividade promovem a invisibilidade destes corpos de geração em geração.

De forma pratica, o que observamos ao longo dos anos dentro do cenário da dança é o apagamento de corpos negros naturalizando, por exemplo, o embranquecimento da dança do ventre e dos deuses egípcios mesmo o Egito sendo um país do continente africano. Com isso é possível entender as reflexões colocadas quanto a existência do racismo na dança:


Tal provocação surgiu de um incomodo antigo quanto a falta de representatividade e consequentemente de protagonismo negro na dança. Quando paramos para contestar estes questionamentos é necessário pensar que esta não é uma questão individual, mas sim a reprodução de toda uma estrutura que considera natural a ausência desses indivíduos. Por isso é tão importante romper com este padrão estrutural para enfim mudar o cenário atual.

Para isso foram apresentadas diferentes formas de possibilitar esta mudança, como, por exemplo, consumindo, contratando e divulgando o trabalho de profissionais negros, com o intuito de dar oportunidade para estes artistas. Outras ações pontuadas foram:

  1. Produtores de eventos e escolas de dança: assumir a missão de ter diversidade em seus eventos, escolas, workshops, concursos e etc. Questionar a ausência de estudantes negros (as) em suas salas de aula. Tornar acessível a entrada destes indivíduos através de políticas de acessibilidade. Abolir regras racistas como padrões de beleza em suas avaliações;

  2. Bailarinos (as), alunos (as) e consumidores (as) não negros (as): questionar os eventos e escolas sobre a falta de profissionais negros e se posicionar quanto a ausência destes indivíduos. Não consumir o que não tem diversidade;

  3. Bailarinos (as), alunos (as) e consumidores (as) negros (as): consumir e conhecer o trabalho dos seus comuns. Não consumir o que não te representa ou aquilo em que você não se enxerga.


Na terceira noite do fórum contamos com a presença de Eliza Fari e Joice Amaral contando um pouco da trajetória delas na dança do ventre enquanto bailarinas negras e também falando sobre concursos e carreira. Como uma das primeiras bailarinas negras de dança do ventre no Brasil, Eliza traz em sua bagagem uma história de muita determinação e superação. Após sofrer um acidente de carro onde fraturou as duas pernas e os dois braços , ela precisou passar por um longo e doloroso processo de recuperação para continuar dançando. Anos depois do acidente, já como bailarina profissional e professora de dança, Eliza percebeu que existia um padrão no mercado ao qual ela não se encaixava, então não bastava conhecer os ritmos árabes, dominar o estilo clássico, estudar muito e fazer inúmeros workshops, ela precisava se enquadrar no perfil exigido pelo tal mercado da dança. Por conta disso, Eliza passou a alisar e parou de cortar o cabelo, começou a tomar remédio para emagrecer e parou de pegar sol na praia para não escurecer mais a pele. Em toda sua trajetória, Eliza viu muitas colegas também bailarinas desistindo dos seus sonhos e carreira na dança por conta deste padrão estético e para ela é preciso ter muita maturidade para perceber o quão violento é este sistema dentro e fora dos palcos.

Já como bailarina padrão casa de chá, em viagem ao Egito, Eliza chegou a ser comparada a Mona El Said pela banda de Soraia Zaied exatamente por ter um quadril tipicamente egípcio. Após conquistar o 1º lugar na categoria solo profissional de dança oriental no festival internacional Ahla Wa Sahlan, realizado no Cairo em 2018, Eliza voltou para o Egito um ano depois, agora como uma das mestras deste mesmo festival para ministrar uma aula de construção coreográfica para o quadril. Apesar de tantas conquistas, ao voltar para o Brasil, Eliza percebeu que havia um certo boicote e apagamento com relação a sua ascensão como bailarina profissional internacional, o que nos faz questionar: Será que esta baixa repercussão aconteceria se Eliza estivesse dentro do padrão estético aqui exigido?

A segunda hora desta live contou com a participação de Joice Amaral que relatou como é ser bailarina de dança do ventre em Salvador (BA), onde inúmeras oportunidades de trabalho lhe foram negadas por parte de contratantes que chegavam a questionar se não haveria uma bailarina com mais cara de dança do ventre para o seu evento. Ela ainda contou que a maioria das oportunidades recebidas para apresentar o seu trabalho vinham de convites de amigos e que a sua maior motivação para entrar em competições foi justamente ser notada e ter o seu trabalho reconhecido. A busca pelo selo padrão de qualidade Khan el Khalili nada mais era do que a oportunidade de se tornar uma bailarina conhecida no mercado da dança, mas ela ainda alertou que para atingir este objetivo muitas vezes se faz necessário ser aquilo que você não é apenas para se enquadrar num padrão exigido.

Falando especificamente sobre avaliações em bancas para obter selos de qualidade e conquistar colocações em concursos, ela comentou que geralmente existe um critério de avaliação chamado aparência que deveria ser questionado e abolido pelo mercado da dança. Afinal, o que exatamente configura uma boa ou uma má aparência na dança do ventre? Joice também levantou o questionamento quanto a presença de profissionais racistas que se aproveitam deste tipo de critério para avaliar mal bailarinas em premiações por conta do cabelo afro, dos traços negroides, do quadril largo e etc. Quantas oportunidades e quantos talentos não foram perdidos por conta deste padrão?

Joice contou que para iniciar os estudos na dança do ventre ela precisou do apoio financeiro de toda família, pois aulas de dança não seriam prioridades naquele momento. Um dos seus sonhos realizados foi estudar com Fernanda Guerreiro, que é sua maior inspiração na dança, tendo todo suporte necessário ao longo dos anos para desenvolver sua carreira na dança. Já como bailarina profissional, e atualmente consagrada bicampeã do Festival Shimmie São Paulo, Joice relatou o quão solitário e pesado é ser a única negra ou uma das poucas negras no camarim dos eventos. Esta solidão sentida não é confortável, é necessário haver companhia e dividir o peso de representar tantas outras bailarinas pretas que se enxergam nela, que se sentem representadas por ela, por isso para ela errar não é uma opção.


A mestra e doutoranda em educação Shirlei Cunha trouxe para a quarta noite deste ciclo de lives o enfrentamento ao racismo através da educação. Formada em Letras, pós-graduada em psicopedagogia e mestra em educação para formação de professores, Shirlei pontuou o quão importante é a educação no combate as práticas racistas existentes até hoje. Para ela, o racismo é aprendido ainda dentro de casa através dos exemplos disponíveis no âmbito familiar. Já na escola muitos destes exemplos seguem sendo reproduzidos fazendo com que este ambiente infelizmente seja um grande propagador do racismo na sociedade. Ela ainda comenta que qualquer pessoa que se propõe a dar aula tem que ter o compromisso com a pedagogia e não apenas em passar o conteúdo, é importante se preocupar com a didática em sala de aula e suas implicações na vida dos indivíduos.

Ainda na infância já é possível perceber um tratamento diferenciado entre crianças negras e não negras por parte dos educadores que tratam episódios racistas como brincadeira de criança. O que era pra ser um ambiente seguro torna-se cenário de ridicularização do ser negro que, por exemplo, precisa “arrumar” o cabelo para não chegar na escola com ele “bagunçado”. É neste ambiente que crianças negras experienciam pela primeira vez o prejulgamento e a rejeição, aprendendo erroneamente que se você não falar do racismo ele não vai existir e que é preciso ser forte e não se abater com certas “brincadeiras”.

Shirlei também comentou que o que possibilita acabar com o racismo hoje é a educação. Por isso é tão necessário se policiar para não reproduzir discursos e atitudes racistas em salas de aula e em nossas vidas. Quanto maior o conhecimento, maior será a percepção e atuação frente a situações discriminatórias em ambientes pautado no mito da democracia racial. O questionamento é a primeira ferramenta crítica da educação e sendo a nossa educação ainda tão racista precisamos agora, a partir de todo aprendizado adquirido, pautar nossas ações dentro de uma educação antirracista.


Pra fechar o ciclo de lives com chave de ouro, tivemos a contribuição de Jessie Ra’idah falando sobre o mercado da dança do ventre e o racismo. Para iniciar o debate foi pontuado que só existe mercado quando há uma relação de troca onde tem alguém remunerando e alguém sendo remunerado. Como artista profissional da dança e do teatro também formada em design gráfico, atuando como produtora de evento e há 12 anos trabalhando profissionalmente com dança, Jessie avalia a necessidade de pensar no mercado de dança do ventre de forma abrangente, incluindo outros estilos como o próprio folclore árabe, o Tribal Fusion, as danças étnicas como as danças ciganas, entre outros. Ainda é possível pensar e subdividir este mercado em dois: um com remuneração financeira e outro onde a remuneração ocorre em forma de prestigio. Pensando no mercado de remuneração financeira é possível destacar serviços como aulas, shows, festivais, ateliês de figurinos, palestras, eventos privados, fotografia e etc, enquanto que no mercado de remuneração por prestígio o valor recebido é em visibilidade e autoridade.

Jessie também propôs uma reflexão a partir de alguns questionamentos:

·         Pra quem é esse mercado? Podemos contar com ele?

·         Existe qualificação suficiente?

·         Existe oportunidade real de trabalho e remuneração equivalente?

Como a dança é uma arte de alto investimento, ela ainda pontuou a importância de se ter um propósito muito bem definido e alinhado com o caminho que cada um deseja trilhar dentro da dança para que não haja frustração. Pensando no mercado de dança do ventre é possível encontrar aulas que visam o entretenimento e aulas com objetivo de formação profissional, por exemplo. A falta de direcionamento e propósito alinhada a falta de regulamentação acaba gerando profissionais despreparados e prejudicando o profissionalismo dentro da dança o que favorece a desvalorização da arte dentro dela mesma.

Pra fechar a noite, Jessie e Cheirosa ainda explicaram que não adianta tratar a dança do ventre como um passatempo e exigir resultados de profissão, pois não haverá resultado sem investimento de vida. É necessário pensar no propósito, no caminho e no investimento disponibilizado pra fazer acontecer. Elas ainda reiteraram a importância de proporcionar um ambiente seguro para bailarinas negras em sala de aula, concursos, eventos e etc, pois são elas que mais sofrem com o padrão estético imposto por este mercado. A luta antirracista deve ser de todos, mas é imprescindível respeitar e reconhecer a voz de quem fala, de quem sente a dor pelo não pertencimento. Ao olhar para uma tendência mundial atual o mercado de dança do ventre precisa entender que se não houver diversidade não haverá consumo, afinal vamos consumir aquilo que nos representa.


O 3º Fórum Orienta – Diversidade foi sem dúvida um evento de grande aprendizagem e conscientização para todos que participaram. O momento atual pede mudanças em diferentes âmbitos da nossa sociedade e não podemos mais fechar os olhos para os efeitos do racismo dentro do mercado da dança. Se omitir apenas legitima a normalidade quanto a ausência de corpos negros dançantes, mas esta não é mais uma opção. O que conta agora é entender o que ainda está errado e fazer parte da solução do problema. Seja atento e vigilante as suas falas, as suas práticas, ao seu trabalho, para o que você consome e o que não consome. Você está a serviço do racismo quando você não se importa, quando você naturaliza, não questiona e não reconhece os seus privilégios. Uma vez adquirida a consciência não há mais espaço para omissão, é preciso agir.

Quer conferir tudo o que rolou no 3º Fórum Orienta – Diversidade? Então acesse o perfil da Revista Shimmie no Instagram e aproveite para maratonar todas as lives desta semana de muito conhecimento, troca e emoção.

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Sankofa

 
Monni Ferreira (São Paulo-SP) entrou para o mundo da dança com 10 anos de idade e durante toda a sua trajetória nesta arte teve a oportunidade de vivenciar diferentes estilos de dança, como: árabes, contemporâneo, afro, moderna, street dance, brasileiras, flamenco, indiana, ballet, entre outras.Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >>

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Sankofa por Monni Ferreira

Sankofa

Monni Ferreira - Salvador-Ba <--> São Paulo-SP, Brasil


Sobre a Coluna:

Esta coluna tem como objetivo resgatar muito da nossa herança ancestral ao olhar para o nosso passado. Vamos falar sobre culturas africanas e afro-americanas, identidade coletiva, ancestralidade e a influência dos povos africanos no Estilo Tribal, além de debater sobre diversidade na dança e estratégias para fazer desta uma arte mais inclusiva. Vamos aprender com o passado, entender o presente e transformar o futuro.

Sanko = retornar, voltar.

fa = buscar, procurar, trazer.


Sobre a Autora:

Nascida e criada em Salvador-BA, Monni Ferreira, também conhecida como Moniquinha da Bahia ou #ADeusaDoAgito, entrou para o mundo da dança com 10 anos de idade e durante toda a sua trajetória nesta arte teve a oportunidade de vivenciar diferentes estilos de dança, como: árabes, contemporâneo, afro, moderna, street dance, brasileiras, flamenco, indiana, ballet, entre outras. Em 2011, já morando em São Paulo-SP, iniciou os estudos nos então conhecidos estilos Tribal Fusion e ATS® (American Tribal Style) passando a se dedicar ao aprofundamento técnico destas danças através de práticas e pesquisas. Formada no Curso Técnico em Dança pelo Shiva Nataraj (SP), Monni hoje atua como bailarina, professora e coreógrafa de Dança do Ventre e Tribal Fusion. Como pesquisadora passou também a estudar a cultura Dancehall e realizou um projeto focado na leitura musical do DUB, estilo que surgiu na Jamaica em meados da década de 60 e que é caracterizado pelas marcações de baixo e bateria. Desde 2017, Monni vem desenvolvendo um trabalho de resgate a ancestralidade
 com as danças afro-brasileira dentro do Tribal Fusion, através dos arquitetos dos Orixás.



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