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[Tribal Brasil] Jornada da dança (e) da vida

por Kilma Farias
 


Na última semana de dezembro de 2016 fui convidada pela bailarina Ambar Yanina a imergir em Alto Paraíso-GO. Uma jornada que me trouxe de dentro para fora compreensões que buscava há anos. E a dança, presença essa que cada vez mais me dissolvo nela, também estava presente.

Tinha uma missão que cumpri de corpocoraçãomente (tudo junto assim) completamente disponível: dançar a bodisatva Kuan Yin, através do Tribal Brasil, em união com a Mãe Divina do Daime.

Surgiu então o trabalho “Daime, Kuan Yin” que foi dançado no réveillon Ilumina no Ashram do Prem Baba, uma morada de amor e silêncio.
            - Vídeo, fotos?
            - Não, nada. Nenhum registro midiático.
            - Por quê?!
          - Porque aquele momento de entrega plena à misericórdia e ao amor dentro de mim foi apenas para o eterno aqui e agora daquele presente que hoje é passado. Porque fez parte de uma cerimônia e também encontrou o silêncio.
            - E o que ficou?
            - Compreensões da vida e da dança nesse praticar-se pela arte.
     
Compreensões dentre as quais algumas compartilho agora, principalmente para as pessoas que estão me pedindo registros dessa dança.

A primeira delas foi a aceitação de ser canal. Não lutar mais contra isso. Sim, sou imperfeita, cheia de defeitos e questões humanas a serem trabalhadas, mas mesmo assim sou canal de luz brilhante e consciência. Não só para mim que desfruto da dor e da delícia da prática de si mesmo, mas para muitas outras pessoas que admiram minha arte, principalmente minhas alunas e bailarinos e bailarinas de Tribal Brasil. E é principalmente para essas pessoas que comunico, semeando compreensões.

Do processo, posso falar que ao mesmo tempo em que trabalhava os movimentos da dança e desenvolvia vivências nas linhas da pesquisa, questões internas também eram trabalhadas e vice-versa.




Uma das questões que ocupava grande espaço em minha mente era sobre os medos. Assim no plural porque eram muitos e diversos. E durante todas as vivências na Chapada dos Veadeiros compreendi uma equivalência entre medo e esperança. E agradeci ao Universo sentir tantos medos porque eles traziam em si, e na mesma intensidade, a energia forte da esperança de que tudo sempre ocorre maravilhosamente bem. E essa firmeza vem do amor. Um amor que aprendeu a não lutar contra os medos, mas apenas os observar... e os viu serem dissolvidos na força da esperança para logo serem absorvidos por pleno amor.

Aí me vieram questões do budismo que encontram eco em mim. Uma delas é que nada é sólido. O que dá solidez às coisas e palavras é a energia que cada um coloca. E é essa energia que faz as coisas terem importância ou não, serem apaixonantes ou não. Se algo brilhava ontem e hoje não brilha mais não foi esse algo que mudou. Foi você, foi sua energia que mudou. Embora tudo esteja em constante movimento e desde que comecei a escrever essas palavras todo o Universo já tenha se transformado...

O que quero dizer com isso é que é ingênuo olhar apenas para o aspecto discursivo das coisas. A pessoa deve antes buscar entender a energia que as sustenta, para que ela não te seduza e venha a te controlar, te tirando do equilíbrio, trazendo ansiedade, decepções e até frustrações.

O agrado ou desagrado que surgem das situações ou nas relações e nos fazem, por exemplo, chamar alguém de amigo ou não, de afeto ou desafeto... se apresentam para mim como uma rotulação que em si não existe, é abstração. O mundo chega a mim como uma materialização de construções mentais fruto do encontro das aparências das coisas e palavras com as sensações físicas que elas nos causam (aceleração dos batimentos cardíacos, respiração ofegante, relaxamento, etc.), produzindo energias (paixão, amor, raiva, ciúme, etc.) que nos movem; energias das quais nos alimentamos para continuar acreditando que somos apenas esse que acreditamos ser.

E observando e refletindo sobre essa questão me veio outra: ir além desse “gosto ou não gosto”. Perceber outras compreensões, não cognitivas, das coisas e palavras. Não valorar, não julgar na balança do bom ou do ruim, nem do certo ou errado; abandonar o claro-escuro.

Nesse abandono, percebo que em si nada tem valor, nada tem beleza e nada tem verdade. O valor, a beleza e a verdade são construções mentais nossas, castelos de areia para nos dar uma sensação de solidez, de segurança e conforto perante a prática de viver.

Ao recordar o preceito do “praticar-se” dos gregos antigos, Foucault nos diz que “[...] a verdade é o que ilumina o sujeito; o que lhe dá beatitude; a verdade é o que lhe dá tranquilidade de alma [...]”; e essa verdade, ou melhor, verdades, são construções de cada sujeito, paisagens internas que exteriorizam em construções de mundo aparentemente sólidas (relações, instituições, sistemas, etc.).
            - E o que é isso senão uma dança?
            Olhemos para uma bailarina ou bailarino que dança.
            - O que vemos? A dança? O bailarino ou bailarina? Ambos?
        
Nós não conseguimos “tocar” na dança. Ela não tem solidez. O máximo que conseguimos é tocar quem dança. Mas podemos perceber a dança; e ela nos toca. A dança nos move a gostar ou não, pois como refleti anteriormente na maioria das vezes caminhamos nesse terreno do bom-ruim, de acordo com nossas experiências de vida.

Mas é fato que a dança se desfaz junto com o último acorde da música e que mesmo sendo dançada novamente, nunca será a mesma dança.

Nesse sentido, a experiência da dança passa a ser a própria experiência da vida: uma ilusão de solidez que se busca a si mesma, revelando amorosamente no seu devido tempo o que esteve sempre aqui.

Gratidão sincera a todos que direta ou indiretamente auxiliaram nessa jornada de dança e de vida. Esse é o Tribal Brasil que abriu meu ano de 2017 e que já trouxe incontáveis frutos.

Segue a vida; segue a dança!

[Tribal Brasil] Tribal Brasil na cidade

por Kilma Farias

Karine Neves - Porto Alegre-RS
“Trago comigo uma bagagem de lembranças históricas, que posso alimentar por meio de conversas ou de leituras – mas esta é uma memória tomada de empréstimo, que não é a minha.” (HALBWACHS, 2003, p. 72)

Partindo do pensamento do historiador Halbwachs, faço um paralelo com a bagagem de memórias que adquirimos no Tribal ao assistirmos vídeos de bailarinas da Índia, Estados Unidos, Japão, Egito, etc., ou ao lermos sobre danças étnicas diversas do mundo, apreciarmos fotografias, etc. Trata-se de uma bagagem de memória tomada de empréstimo quando não estivemos nesses lugares vivenciando dada realidade, mas que acessamos nas nossas composições em dança.
Juliana Garcia - João Pessoa-PB

“[...] uma memória [...] que não é a minha.” E que faz com que nosso produto final em dança chegue ao palco como se também não fosse nosso. Porque falta a nossa memória vivida. Somos feitos de tempo e espaço, e das lembranças que, de modo consciente ou inconsciente, essa relação gera em cada um de nós.

O caminho que percorremos de casa ao trabalho, o supermercado que frequentamos, a praia, o cinema, a sala de aula, nossa casa, nossa rua, as viagens que fizemos, as pessoas com quem cruzamos diariamente ou uma única vez na vida, tudo isso faz parte da nossa memória vivida – colabora para o que cada um de nós é hoje. E nos modifica. É na relação com os espaços que as experiências acontecem e as múltiplas identidades dão lugar à coletividade, a uma visão de mundo, um ethos.

Nesse sentido, um dos pontos que tenho abordado no Curso de Formação em Tribal Brasil é a relação da bailarina com sua cidade, com o conceito de lugar e suas implicações afetivas trazidas pela memória. Essa ação tem o intuito de trazer à tona uma memória corporificada, que confira verdade à dança – porque vem plena de vivências do dia-a-dia.

Dayeah Khalil - Guarujá - SP

Em uma das atividades desenvolvidas, peço para que a aluna aproveite um momento de caminhada rotineira para observar o mundo que a rodeia, o “lá fora”: os sons, aromas, formas, cores. Apenas observar o ambiente que anda influenciando-a, muitas vezes de modo inconsciente. E partir daí essa vivência é registrada no “diário de bordo” do curso – uma espécie de diário onde a bailarina registra de modo artístico, livre ou sistematizado, através de poesia, desenho, pintura, colagem, texto, fotografias, suas experiências ao longo do curso, suas relações com o que estão descobrindo, etc.

E a partir disso compõe-se uma pequena partitura em dança que passa a ser registrada em vídeo, de modo livre – seja videodança, videoarte, documental, videoclipe, etc. E, nesse fazer, podemos apreciar as diferences nuances e impressões que a cidade nos provoca e o quanto ela modifica nossa dança. Não precisamos deixar de fora tudo o que nos influencia no nosso cotidiano para dançar Tribal. Às vezes ficamos tão maravilhados com a alteridade, com o que nos é exótico – o que vem da Índia, Egito, etc. – que calamos nossas beleza, riquezas e singularidades: nossa brasilidade.

Selecionei algumas atividades das alunas do Curso de Formação para compartilhar nesse post e faço um convite a você também. Da próxima vez que sair na rua, observe os relevos, construções, pessoas, aromas, formas, relações, afetividades. Traduza em palavras, imagem, desenhos ou pintura a sua percepção, como esse mundo vivido por você te afeta. E, num segundo momento, traduza para o corpo, para o movimento, buscando as relações com o seu fazer Tribal. Se puder viver essa experiência em um lugar da sua cidade que signifique para você, melhor ainda. E se resolver registrar em vídeo, compartilha comigo. Vou adorar conhecer um pouco mais sobre o Brasil que você vive e sua relação com a cidade.

Karine Neves – Rio Grande do Sul:




Juliana Garcia – Paraíba:




Dayeah Khalil – São Paulo:








[Tribal Brasil] A Natureza do Tribal Brasil

por Kilma Farias

Foto de Jamille Queiroz


“A Terra é a matriz tanto de nosso tempo como de nosso espaço: qualquer noção construída do tempo pressupõe a nossa proto-história de seres carnais com presentes num único mundo”. (MERLEAU-PONTY, 1991, p. 199).

            A ligação da dança Tribal com as danças étnicas traz de herança um forte elo com a Terra. No Tribal Brasil vamos articular danças étnicas de diversas matrizes a exemplo da indígena, afro-brasileira, europeia e americana, propondo um diálogo entre visões de mundo e ethos diversos.

            A dança étnica, seja qual for sua matriz, traz a ideia de um corpo popular integrado com a natureza, com o cosmos. “O corpo humano é, nas danças populares, o vetor de uma inclusão, não o motivo de uma exclusão [...]; ele é o vinculador do homem e todas as energias visíveis e invisíveis que percorre o mundo.” (LE BRETON, 2012, p. 50).

Foto de Ambar Yanina


            Desse modo, ao articular danças étnicas diversas e desenvolver releituras para o palco, o estilo Tribal Brasil aciona identidades plenas de tradições, de espiritualidades e religiosidades. E todos esses atributos estão repletos de Terra e de conexão com a Natureza, esboçando um possível sagrado feminino através de uma dança pensada para o palco.

            Para entender a relação entre ethos e visão de mundo no Tribal Brasil parto do pensamento de Geertz ( 2015, p. 93). Geertz nos diz que:

Na discussão antropológica recente, os aspectos morais (e estéticos) de uma dada cultura, os elementos valorativos, foram resumidos sob o termo “ethos”, enquanto os aspectos cognitivos, existenciais foram designados pelo termo “visão de mundo”. O ethos de um povo é o tom, o caráter e a qualidade de sua vida, seu estilo moral e estético e sua disposição é a atitude subjacente em relação a ele mesmo e ao seu mundo que a vida reflete. A visão de mundo que esse povo tem é o quadro que elabora das coisas como elas são na simples realidade, seu conceito da natureza, de si mesmo, da sociedade. [...] (GEERTZ, 2015, p. 93).

            No Tribal Brasil o “estilo moral e estético” que compõe o ethos, suas disposições e motivações vão de encontro à Natureza, à Terra-mãe; assim como a visão de mundo, o conceito da natureza e de como estabelece sua ordem cósmica também remetem à Terra e integralidade com a Natureza.

                Para Luciana Carlos Celestino (2008, p. 3) “De fato, a dança Tribal não é apenas um estilo de dança, se trata muito mais de uma concepção de mundo.” Pois é a através do corpo que estamos no mundo e o percebemos, sendo o corpo e a dança um modo próprio de ser-no-mundo.[1] “É preciso compreender que estas dançarinas têm uma intenção clara, exaltar o que elas chamam de valores ligados ao feminino e ao planeta Terra, como matriz criadora.” (CELESTINO, 2008, p.3).

Foto de LM Cheste


        A partir desse pensamento, surgem inúmeras possibilidades de abordagem das danças rituais ligadas ao sagrado feminino serem revisitadas e levadas ao palco sob uma nova perspectiva, que não apenas do ponto de vista religioso. O objetivo está em construir arte através da dança, em comunicar belezas diversas, em vivenciar corporeidades que colaborem com a prática de si mesmo em meio a uma visão de mundo integrada com a Natureza e no despertar de uma espiritualidade não religiosa através da convivência com o outro, seja dentro dos grupos, na sala de aula, nos festivais, encontros Tribais ou no dia-a-dia.
            Busque estar próximo da terra, faça seus próprios rituais em dança, só ou unido ao seu grupo. Viva cada árvore, viva paisagens, mares e rios, lagos e cachoeiras, no seu cotidiano. Mas viva também o urbano, a cidade, que também é Natureza. Também está plena de terra e de forças invisíveis. Aprenda a desenvolver uma percepção da poética da Natureza em todas as coisas. E é no palco que ela mais transborda para nós Tribalbellydancers.

            Viva também a relação com o outro enquanto Natureza. Observe suas diferentes nuances de modo de ser através das relações. Somos múltiplos e a relação com o outro é uma grande oportunidade para nos conhecermos.

            Viva você mesmo no mais profundo de você, e no mais superficial também. Viva tristezas, alegrias, saudades, amores, desejos, violências, incompreensões, quietudes, intuições, memórias, inspirações – e viva o sem número de lugares “entre” todas essas nuances perceptivas.

            Coloque sua percepção nos espaços gerados “entre” as relações: consigo mesmo, com o outro e com o mundo. É nessa zona de silêncio que a poética fala; deixe essa poética alimentar sua dança, alimentar suas relações e sua vida. E assim, você vai se perceber em processo de harmonia com a Natureza e com a Terra.


Referências bibliográficas

CELESTINO, L. Sementes, espelhos, moedas, fibras...: a bricolagem da dança tribal e uma nova expressão do sagrado feminino. Pós­-Graduação em Ciências Sociais ­ UFRN – 2008.
GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2015.
MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
_________, M. Signos. São Paulo: Martins Fontes, 1991.





[1] Reflexão com base na afirmativa de que “tenho consciência de meu corpo através do mundo” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 122).





[Tribal Brasil] Laban como aliado no Tribal Brasil

por Kilma Farias

    Em 2012, a Cia Lunay passa a trabalhar sob a direção coreográfica de Guilherme Schulze, professor doutor da Licenciatura em Dança da UFPB. Essa nova experiência colocou o grupo em contato com uma forma diferente de pensar o corpo, o movimento e suas narrativas.

    Na época, estávamos no processo de montagem do espetáculo Axial e aceitamos o desafio de pensá-lo através da ótica dos estudos do movimento de Rudolf Laban (1879-1958).

Processo de montagem de Axial, com os núcleos da Lunay PB e PE (2012), sob a direção coreográfica de Guilherme Schulze.

      Jean Baptiste Attila de Varanja, nascido em Pressburg atual Bratislava, conhecido como Rudolf Von Laban, foi bailarino, teatrólogo, coreógrafo, arquiteto, artista plástico, musicólogo, estudioso do movimento, e considerado um dos maiores teóricos da dança do século XX. Possui vasta bibliografia sobre dança com forte inclinação para misticismo e espiritualidade.

     Em seus estudos, Laban identificou quatro Fatores de Movimento – Tempo, Espaço, Peso e Fluência. E os associava como condição de definição do Esforço exercido no movimento, gerando Ações Básicas – flutuar, deslizar, socar, pressionar, pontuar, chicotear, torcer e sacudir.

       Cada Fator de Movimento abre um mundo de possibilidades. O estudo do Espaço, por exemplo, envolve planos, níveis, direções e trajetórias. O estudo do Tempo envolve aceleração, repouso, desaceleração, respiração, ritmo. O estudo do Peso nos traz consciência de eixo, equilíbrio, tônus forte ou fraco. A Fluência nos coloca em contato com uma atitude livre ou controlada.

A montagem de Axial (2012) aliou os estudos do movimento de Laban ao Tribal Brasil e desde então o grupo passou a utilizar seus fundamentos no processo criativo

        Associar cada um desses estudos à construção em Tribal Brasil nos coloca diante de uma dança rica em significados que vão além de uma construção estética para palco. Pois, aliar-se à essa proposta envolve o “pensamento por movimento” que propõe trazer à exterioridade, a subjetividade do sujeito que dança.

         Significar além do significado imediato, além da consciência, nos faz compreender que movimentos, palavras e imagens têm aspectos inconscientes, assim como nós. E isso me faz pensar que movimentos, assim como palavras, são criações nossas. A linguagem é nossa criação; objetos são criações nossas – tudo que foi e será construído pelo homem existiu primeiro em seu imaginário e, por uma inspiração e atendendo a uma dada intenção, se materializou. Por um impulso criativo, a criatura (ou criação) herda a atitude (características) de seu criador.

          Acontecimentos abaixo do limiar da consciência afloram através da intuição. E assim, o bailarino busca esse canal intuitivo para melhor desenvolver sua arte. Apesar de não se perceber esses acontecimentos, eles são absorvidos subliminarmente. A qualquer momento podem brotar do seu campo imaginário (consciente e inconsciente) como uma espécie de segundo pensamento. Isso acontece porque a realidade concreta tem aspectos que ignoramos, pois não conhecemos a natureza extrema da matéria. É impossível conhecer toda a natureza do universo. Nesse sentido, é impossível conhecer toda a nossa psique porque ela também faz parte da natureza.

Quem quer que negue a existência do inconsciente está, de fato, admitindo que hoje em dia temos um conhecimento total da psique. É uma suposição evidentemente tão falsa quanto a pretensão de que sabemos tudo a respeito do universo físico. Nossa psique faz parte da natureza e o seu enigma é, igualmente, sem limites. Assim, não podemos definir nem a psique nem a natureza. (JUNG, 2008, p. 23-24).


        Não podemos definir psique e natureza, mas podemos buscar compreendê-las dentro das nossas possibilidades. Ao se interessar pelos estudos de Jung, Laban correlacionou os Fatores de Movimento:
(Ilustração: RENGEL, Lenira. Dicionário Laban. São Paulo: Annablume, 2003.)
                       
Na tabela acima, podemos perceber que Laban correlacionou o fator Tempo com a Intuição em Jung. É a tomada de decisão, é o “quando agir?”. Em dança, a intuição está intimamente ligada com os estados mentais-espirituais-físicos que o bailarino alcança durante a ação. A intuição vai trazer um sentido de criação, de criatividade, que é capaz de transmutar a realidade e fazer a plateia ir além. Ao falar sobre o corpo cênico e esse estado de presença, Laban diz:

Muita coisa depende dos dramaturgos e coreógrafos e do tipo de peça teatral e balé que apresentam, embora seja um fato que atores ou bailarinos que possuem um sentido realmente criativo de apresentação cênica tenham a capacidade de conferir a uma peça medíocre aquele aspecto revelador que lança luz sobre os recantos mais obscuros da natureza humana. (LABAN, 1978, p.28-29).

Entendo, a partir do raciocínio de Laban, que o corpo cênico vai além da técnica limpa e clara do movimento, uma vez que circulamos e entrelaçamos ininterruptamente referências mnemônicas, imaginárias e perceptivas que resultam numa linguagem singular.

       Numa tentativa de clarificar as relações internas e externas que ocorrem no bailarino em cena, visando o estado de corpo cênico ou presença cênica, proponho o seguinte gráfico.

Nele, o Imaginário se constitui como um espaço onde consciente e inconsciente estão em constante troca e atualização na constituição do sujeito, despertando desse modo uma ação interna latente para um possível movimento.

        Intuição, Inspiração e Intenção constituem-se como ações internas ativas, motivadoras de uma propulsão até se chegar ao Impulso para o movimento, que se estabelece como uma ação ao mesmo tempo interna e externa. Dessa articulação, a ação se exterioriza em movimento como uma atitude; e a dança acontece. Correlacionando o gráfico acima com as ações internas e externas, proponho um segundo gráfico.

O corpo em si traz significações múltiplas por onde perpassam informações conscientes e inconscientes relativas às vivências de cada indivíduo. Essas vivências são constituídas de convergências identitárias que se renovam a todo instante no corpo – entendendo aqui por corpo não apenas o material visual biológico, mas também as emoções, memórias, pensamentos e desejos.
Conforme Gil:
Quando se fala do corpo e, em particular da dança, o fato é ainda mais surpreendente. Séries diferentes ou divergentes de gestos efetuados pelo mesmo corpo num tempo único acabam por se ‘integrar’. [...] Devemos crer que o corpo tenha um tal poder integrador, ou assimilador, que transforme tudo o que dele se aproxima no espaço e no tempo, num todo homogêneo e unificado [...] (GIL, 2004, p. 69-70).
  
Lenira Rengel (2013) nos diz que a mente, a emoção, o pensamento não apenas habitam o corpo como são formados por ele. Dessa forma, pensamento é movimento; pensamento é corpo. Nesse sentido, o corpo que dança traz consigo um universo imagético e perceptivo antes do primeiro movimento traçado no espaço ser visível. 

        Para Laban (1978) o movimento pode ser o mais sutil dos pensamentos. Desse modo, o movimento não liga mente e corpo, mas se percebe como um todo integrado e indissociável. O movimento é o próprio pensamento transposto em ação externa. O corpo cênico em Laban é um corpo consciente, que possui qualidade de movimento em todos os seus Fatores (Fluência, Peso, Espaço e Tempo.)
A busca do bailarino pela conscientização de todo o corpo é a busca por si mesmo, por compreender-se. E a compreensão do homem vem da compreensão do mundo e do outro. Conscientizar é significar. O corpo significa todo o tempo. No palco, essa consciência precisa se fazer ativada para que a comunicação desejada com a plateia aconteça.
 Kilma Farias em Feminino plural: singularidades do corpo (2014). Espetáculo-solo em Tribal Brasil com experimento das Ações Básicas de Laban
Movimentos carregados de corpo-pensamento-memória e identidades em trânsito que encontram sua efemeridade no tempo-espaço de execução. Esse encontro transforma o fenômeno da dança em uma arte inter-relacional constituída através de uma sucessão de eventos que bem poderiam ser comparados a etapas de um rito.
Entendo que, no ritual, o encadeamento de ações que o compõem faz aflorar a espiritualidade, perpetuando determinado modo de compreensão do mundo e de sua forma de estar no mundo, assim como suas implicações filosóficas. O rito atualiza o mito. No campo do estudo das artes cênicas, denominamos esse encadeamento de ações de dramaturgia do movimento. Esta, por sua vez, desperta o corpo cênico que torna visível o invisível, “[...] isto quer dizer que a movimentos internos corresponderão outros externos definindo a energia metacinética do ator e do bailarino [...]” (LOPES, 1998, p. 10).
Dançar é um modo de estar no mundo. Ao mesmo tempo êxtase [1] e racionalidade. “Não apenas jogo, mas celebração, participação [...].” (GARAUDY, 1980, p. 13). Nesse sentido, o Tribal Brasil passa a ser, para além da técnica, uma forma de viver: de perceber e ser percebido. O movimento através do Tribal Brasil traz a experiência de que o espiritual passa pelo corpo físico, revelando através da dança e suas implicações simbólicas, plenas de memória, uma narratividade que se escreve sem palavras no espaço-tempo do corpo.

Referências Bibliográficas

ALVES DOS SANTOS, Rosileny. Entre a razão e o êxtase: experiência religiosa e estados alterados de consciência. São Paulo: Edições Loyola, 2004.
CASSIRER, Ernest. Linguagem e Mito. São Paulo: Editora Perspectiva, 1992.
GARAUDY, Roger. Dançar a vida. São Paulo: Nova Fronteira, 1980.
GIL, José. Movimento Total. O corpo e a dança. São Paulo: Iluminuras, 2004.
JUNG, Carl G. O homem e seus símbolos: concepção e organização C.G. Jung. Tradução de Maria Lucia Pinho. 2 ed. RJ: Nova Fronteira, 2008.
LABAN, Rudolf. Domínio do movimento. São Paulo: Summus, 1978.
LOPES, Joana. Coreodramaturgia: A dramaturgia do movimento. Primeiro caderno pedagógico. Ed. Do Grupo Interdisciplinar de Teatro e Dança, Org. José Rafael Madureira, Depto. de Artes Corporais – UNICAMP.
RENGEL, Lenira. Dicionário Laban. São Paulo: Annablume, 2003.
__________. O corpo e possíveis formas de manifestação em movimento. Disponível em: <http://culturacurriculo.fde.sp.gov.br/administracao/Anexos/Documentos/420100823120040O%20corpo%20e%20poss%C3%ADveis%20formas%20de%20manifesta%C3%A7%C3%A3o%20em%20movimento.pdf > acesso em 19, abril 2016.




[1] “[...] êxtase é um estado de alegria indizível ou de tristeza profunda. Além de estado de excitação física generalizada ou estado de apatia extrema, trata-se de uma comoção psíquica que, dependendo do valor motivacional, exprime sua intensidade no próprio evento.” (ALVES DOS SANTOS, 2004, pg 38).


[Tribal Brasil] Frevo: um dos pilares do Tribal Brasil

por Kilma Farias

Nefertiti Coutinho-PE
O frevo nasce e se desenvolve no Brasil, mais precisamente em Pernambuco, em meio ao momento sociopolítico em que viviam entre os anos 1880 e 1890, constituindo-se como uma tradição inventada pelo povo no seio do espaço urbano.

Filho da abolição da escravatura e da proclamação da República, o frevo, que recebeu esse nome porque as multidões pareciam ferver numa panela de pressão, é hoje patrimônio imaterial do Brasil.

Compõem o material humano que criou o frevo, todos os que frequentavam o centro do Recife àquela época: operários do porto, das fábricas e do comércio, jornalistas, profissionais liberais, biscateiros, desempregados e marginais. Gente que se reunia para, num momento de divertimento, acompanhar as bandas do exército e da polícia militar, que desfilavam e realizavam retretas em praça pública. Acompanhando o espírito da época e os movimentos que surgiam na multidão, os músicos dessas bandas aceleraram o andamento das músicas da moda, como o maxixe e a polca, e foram criando a música frevo. Ao mesmo tempo, era gestada a dança que sugeria volteios e dinâmicas para a música que estava sendo criada. Aos poucos as novas músicas foram ficando famosas e os passos ganharam nomes e também foram citados nos jornais da época. Era o frevo que tomava suas formas. (VICENTE, 2011, p. 1 e 2).

            Sendo uma dança que busca o incomum, através de uma movimentação que acontece pelo equilíbrio e desequilíbrio entre ponta de pé e calcanhar, o frevo se utiliza de uma leitura musical que acompanha o acelerar e desacelerar da música.

            A expansão é um dos princípios de movimento que norteia esse estilo, exigindo do corpo impulso e explosão em contraponto com deslizamentos e volteios. Sendo assim, o frevo constrói uma dança que ocorre pela oposição e pelo que Barba (1995) chama de equilíbrio precário ou equilíbrio de luxo que se constitui por um equilíbrio extracotidiano, “[...] Quanto mais complexos se tornam os nossos movimentos – quando damos passos mais largos do que de costume ou mantemos a cabeça mais para frente ou para trás do que o usual – mais o nosso equilíbrio é ameaçado.” (BARBA, 1995 p. 35).

            Desse modo, o passista de frevo, como é chamado o bailarino desse estilo, constrói sua dança em meio a um equilíbrio dinâmico. Assim, “os músculos em ação devem substituir os ligamentos na manutenção da posição [...]”(BARBA, 1995 p. 39).

Studio Lunay - Tribal Brasil


            O frevo vem a se consolidar como a arte que é só em 1930 e encontra sua efervescência nos anos 50. Ao longo de sua história trilha diferentes percursos e corporeidades, desde a capoeira aos movimentos sociais, à adesão de artistas que batizavam os passos “[...] com nomes como tesoura, carancolado, siricongado. Os seus inventores se mantiveram anônimos, pois eram oriundos principalmente de classes marginais ou menos favorecidas”. (VICENTE, 2011, p. 2).

            Um dos maiores colaboradores e difusores do frevo foi o mestre Nascimento do Passo que, nos anos de 1970, sistematizou a transmissão dessa dança com a proposta de repassá-la para as novas gerações.

            Ao incluir o estudo do frevo no Tribal Brasil, faço um exercício de metalinguagem, percebendo como se constrói uma dança a partir de outra que também foi construída. Identifico pontos de aproximação e outros de complementação.

            Percebo no frevo, por si só, um hibridismo de ritmos e gestos. E hibridizar a partir do hibridizado nos faz olhar para nós mesmos e vislumbrar o outro em nosso processo particular. O nosso mundo cabe sim no mundo lá fora e vice-versa.

            O Tribal Brasil, a seu modo, também surge de uma necessidade, de uma vontade de ser verdadeiro, de reinventar, a partir do que se tem no corpo e na experiência de vida, um novo movimento. Não nega a Dança do Ventre, nem a Dança Indiana, nem o Flamenco, nem o Tribal Fusion ou ATS, mas as transforma.


            Seus primeiros fomentadores, em sua maioria, estão no Nordeste brasileiro ou possuem vínculo familiar ou afetivo com as tradições nordestinas: o maracatu, caboclinhos, forró, frevo, cavalo marinho, entre outras manifestações culturais.

            Assim como no frevo, uma nomenclatura vem sendo gestada no Tribal Brasil, visando a escolarização do estilo, como podem perceber os participantes do primeiro Curso de Formação em Tribal Brasil – presencial e à distância – que tenho ministrado (março de 2016 a dezembro de 2016). E essa nomenclatura também não vem de uma só pessoa. Vem de um corpo de bailarinas, vem da Cia Lunay, vem de alunas dos workshops que ministro, que apelidam os movimentos para lhes facilitar a lembrança do passo.

            O processo de criação em Tribal Brasil com base no frevo é uma experiência divertida, desafiadora, que fala não apenas de técnica, mas principalmente de história de vida, de luta de classes e principalmente da força da união do povo brasileiro.

Referências bibliográficas:

BARBA, Eugenio; SAVARESÉ, Nicola. A arte secreta do ator: dicionário de antropologia teatral. São Paulo: Editora Hucitec/Editoda da UNICAMP, 1995.

VICENTE, Ana V. Frevo: uma arte urbana, a dança e suas formas de ensino. In: VICENTE, Ana V.; SOUZA, Giorrdani G. Q.. Trançados musculares: saúde corporal e ensino do frevo. Recife: Editora Associação Reviva, 2011. DVD.


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