[Tribal Brasil] Laban como aliado no Tribal Brasil

por Kilma Farias

    Em 2012, a Cia Lunay passa a trabalhar sob a direção coreográfica de Guilherme Schulze, professor doutor da Licenciatura em Dança da UFPB. Essa nova experiência colocou o grupo em contato com uma forma diferente de pensar o corpo, o movimento e suas narrativas.

    Na época, estávamos no processo de montagem do espetáculo Axial e aceitamos o desafio de pensá-lo através da ótica dos estudos do movimento de Rudolf Laban (1879-1958).

Processo de montagem de Axial, com os núcleos da Lunay PB e PE (2012), sob a direção coreográfica de Guilherme Schulze.

      Jean Baptiste Attila de Varanja, nascido em Pressburg atual Bratislava, conhecido como Rudolf Von Laban, foi bailarino, teatrólogo, coreógrafo, arquiteto, artista plástico, musicólogo, estudioso do movimento, e considerado um dos maiores teóricos da dança do século XX. Possui vasta bibliografia sobre dança com forte inclinação para misticismo e espiritualidade.

     Em seus estudos, Laban identificou quatro Fatores de Movimento – Tempo, Espaço, Peso e Fluência. E os associava como condição de definição do Esforço exercido no movimento, gerando Ações Básicas – flutuar, deslizar, socar, pressionar, pontuar, chicotear, torcer e sacudir.

       Cada Fator de Movimento abre um mundo de possibilidades. O estudo do Espaço, por exemplo, envolve planos, níveis, direções e trajetórias. O estudo do Tempo envolve aceleração, repouso, desaceleração, respiração, ritmo. O estudo do Peso nos traz consciência de eixo, equilíbrio, tônus forte ou fraco. A Fluência nos coloca em contato com uma atitude livre ou controlada.

A montagem de Axial (2012) aliou os estudos do movimento de Laban ao Tribal Brasil e desde então o grupo passou a utilizar seus fundamentos no processo criativo

        Associar cada um desses estudos à construção em Tribal Brasil nos coloca diante de uma dança rica em significados que vão além de uma construção estética para palco. Pois, aliar-se à essa proposta envolve o “pensamento por movimento” que propõe trazer à exterioridade, a subjetividade do sujeito que dança.

         Significar além do significado imediato, além da consciência, nos faz compreender que movimentos, palavras e imagens têm aspectos inconscientes, assim como nós. E isso me faz pensar que movimentos, assim como palavras, são criações nossas. A linguagem é nossa criação; objetos são criações nossas – tudo que foi e será construído pelo homem existiu primeiro em seu imaginário e, por uma inspiração e atendendo a uma dada intenção, se materializou. Por um impulso criativo, a criatura (ou criação) herda a atitude (características) de seu criador.

          Acontecimentos abaixo do limiar da consciência afloram através da intuição. E assim, o bailarino busca esse canal intuitivo para melhor desenvolver sua arte. Apesar de não se perceber esses acontecimentos, eles são absorvidos subliminarmente. A qualquer momento podem brotar do seu campo imaginário (consciente e inconsciente) como uma espécie de segundo pensamento. Isso acontece porque a realidade concreta tem aspectos que ignoramos, pois não conhecemos a natureza extrema da matéria. É impossível conhecer toda a natureza do universo. Nesse sentido, é impossível conhecer toda a nossa psique porque ela também faz parte da natureza.

Quem quer que negue a existência do inconsciente está, de fato, admitindo que hoje em dia temos um conhecimento total da psique. É uma suposição evidentemente tão falsa quanto a pretensão de que sabemos tudo a respeito do universo físico. Nossa psique faz parte da natureza e o seu enigma é, igualmente, sem limites. Assim, não podemos definir nem a psique nem a natureza. (JUNG, 2008, p. 23-24).


        Não podemos definir psique e natureza, mas podemos buscar compreendê-las dentro das nossas possibilidades. Ao se interessar pelos estudos de Jung, Laban correlacionou os Fatores de Movimento:
(Ilustração: RENGEL, Lenira. Dicionário Laban. São Paulo: Annablume, 2003.)
                       
Na tabela acima, podemos perceber que Laban correlacionou o fator Tempo com a Intuição em Jung. É a tomada de decisão, é o “quando agir?”. Em dança, a intuição está intimamente ligada com os estados mentais-espirituais-físicos que o bailarino alcança durante a ação. A intuição vai trazer um sentido de criação, de criatividade, que é capaz de transmutar a realidade e fazer a plateia ir além. Ao falar sobre o corpo cênico e esse estado de presença, Laban diz:

Muita coisa depende dos dramaturgos e coreógrafos e do tipo de peça teatral e balé que apresentam, embora seja um fato que atores ou bailarinos que possuem um sentido realmente criativo de apresentação cênica tenham a capacidade de conferir a uma peça medíocre aquele aspecto revelador que lança luz sobre os recantos mais obscuros da natureza humana. (LABAN, 1978, p.28-29).

Entendo, a partir do raciocínio de Laban, que o corpo cênico vai além da técnica limpa e clara do movimento, uma vez que circulamos e entrelaçamos ininterruptamente referências mnemônicas, imaginárias e perceptivas que resultam numa linguagem singular.

       Numa tentativa de clarificar as relações internas e externas que ocorrem no bailarino em cena, visando o estado de corpo cênico ou presença cênica, proponho o seguinte gráfico.

Nele, o Imaginário se constitui como um espaço onde consciente e inconsciente estão em constante troca e atualização na constituição do sujeito, despertando desse modo uma ação interna latente para um possível movimento.

        Intuição, Inspiração e Intenção constituem-se como ações internas ativas, motivadoras de uma propulsão até se chegar ao Impulso para o movimento, que se estabelece como uma ação ao mesmo tempo interna e externa. Dessa articulação, a ação se exterioriza em movimento como uma atitude; e a dança acontece. Correlacionando o gráfico acima com as ações internas e externas, proponho um segundo gráfico.

O corpo em si traz significações múltiplas por onde perpassam informações conscientes e inconscientes relativas às vivências de cada indivíduo. Essas vivências são constituídas de convergências identitárias que se renovam a todo instante no corpo – entendendo aqui por corpo não apenas o material visual biológico, mas também as emoções, memórias, pensamentos e desejos.
Conforme Gil:
Quando se fala do corpo e, em particular da dança, o fato é ainda mais surpreendente. Séries diferentes ou divergentes de gestos efetuados pelo mesmo corpo num tempo único acabam por se ‘integrar’. [...] Devemos crer que o corpo tenha um tal poder integrador, ou assimilador, que transforme tudo o que dele se aproxima no espaço e no tempo, num todo homogêneo e unificado [...] (GIL, 2004, p. 69-70).
  
Lenira Rengel (2013) nos diz que a mente, a emoção, o pensamento não apenas habitam o corpo como são formados por ele. Dessa forma, pensamento é movimento; pensamento é corpo. Nesse sentido, o corpo que dança traz consigo um universo imagético e perceptivo antes do primeiro movimento traçado no espaço ser visível. 

        Para Laban (1978) o movimento pode ser o mais sutil dos pensamentos. Desse modo, o movimento não liga mente e corpo, mas se percebe como um todo integrado e indissociável. O movimento é o próprio pensamento transposto em ação externa. O corpo cênico em Laban é um corpo consciente, que possui qualidade de movimento em todos os seus Fatores (Fluência, Peso, Espaço e Tempo.)
A busca do bailarino pela conscientização de todo o corpo é a busca por si mesmo, por compreender-se. E a compreensão do homem vem da compreensão do mundo e do outro. Conscientizar é significar. O corpo significa todo o tempo. No palco, essa consciência precisa se fazer ativada para que a comunicação desejada com a plateia aconteça.
 Kilma Farias em Feminino plural: singularidades do corpo (2014). Espetáculo-solo em Tribal Brasil com experimento das Ações Básicas de Laban
Movimentos carregados de corpo-pensamento-memória e identidades em trânsito que encontram sua efemeridade no tempo-espaço de execução. Esse encontro transforma o fenômeno da dança em uma arte inter-relacional constituída através de uma sucessão de eventos que bem poderiam ser comparados a etapas de um rito.
Entendo que, no ritual, o encadeamento de ações que o compõem faz aflorar a espiritualidade, perpetuando determinado modo de compreensão do mundo e de sua forma de estar no mundo, assim como suas implicações filosóficas. O rito atualiza o mito. No campo do estudo das artes cênicas, denominamos esse encadeamento de ações de dramaturgia do movimento. Esta, por sua vez, desperta o corpo cênico que torna visível o invisível, “[...] isto quer dizer que a movimentos internos corresponderão outros externos definindo a energia metacinética do ator e do bailarino [...]” (LOPES, 1998, p. 10).
Dançar é um modo de estar no mundo. Ao mesmo tempo êxtase [1] e racionalidade. “Não apenas jogo, mas celebração, participação [...].” (GARAUDY, 1980, p. 13). Nesse sentido, o Tribal Brasil passa a ser, para além da técnica, uma forma de viver: de perceber e ser percebido. O movimento através do Tribal Brasil traz a experiência de que o espiritual passa pelo corpo físico, revelando através da dança e suas implicações simbólicas, plenas de memória, uma narratividade que se escreve sem palavras no espaço-tempo do corpo.

Referências Bibliográficas

ALVES DOS SANTOS, Rosileny. Entre a razão e o êxtase: experiência religiosa e estados alterados de consciência. São Paulo: Edições Loyola, 2004.
CASSIRER, Ernest. Linguagem e Mito. São Paulo: Editora Perspectiva, 1992.
GARAUDY, Roger. Dançar a vida. São Paulo: Nova Fronteira, 1980.
GIL, José. Movimento Total. O corpo e a dança. São Paulo: Iluminuras, 2004.
JUNG, Carl G. O homem e seus símbolos: concepção e organização C.G. Jung. Tradução de Maria Lucia Pinho. 2 ed. RJ: Nova Fronteira, 2008.
LABAN, Rudolf. Domínio do movimento. São Paulo: Summus, 1978.
LOPES, Joana. Coreodramaturgia: A dramaturgia do movimento. Primeiro caderno pedagógico. Ed. Do Grupo Interdisciplinar de Teatro e Dança, Org. José Rafael Madureira, Depto. de Artes Corporais – UNICAMP.
RENGEL, Lenira. Dicionário Laban. São Paulo: Annablume, 2003.
__________. O corpo e possíveis formas de manifestação em movimento. Disponível em: <http://culturacurriculo.fde.sp.gov.br/administracao/Anexos/Documentos/420100823120040O%20corpo%20e%20poss%C3%ADveis%20formas%20de%20manifesta%C3%A7%C3%A3o%20em%20movimento.pdf > acesso em 19, abril 2016.




[1] “[...] êxtase é um estado de alegria indizível ou de tristeza profunda. Além de estado de excitação física generalizada ou estado de apatia extrema, trata-se de uma comoção psíquica que, dependendo do valor motivacional, exprime sua intensidade no próprio evento.” (ALVES DOS SANTOS, 2004, pg 38).


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