por Gabriela Miranda
Conheci esse conceito quando estava estudando Psicologia, em pesquisas pessoais sobre o humanismo, não na faculdade em si, e gostei demais do significado. O tempo passou e acabei esquecendo dessa palavra até muito recentemente quando fui dançar no Centro Cultural de Capão da Canoa – RS, e vi que uma professora muito querida pela comunidade trabalhava o conceito de Ubuntu com seus alunos adolescentes. Um dos motivos de eu ter me mudado de volta para o sul foi por buscar o espírito de coletividade e comunidade mais intensamente. Não que não tivesse isso em São Paulo, eu tinha sim! Com as minhas alunas e amigos, claro... Mas eu precisava me reconectar com minha família, meus antigos amigos, com a natureza da minha cidade pequena e com as coisas que me fizeram ser quem eu sou. Eu precisava das minhas raízes para me curar das situações malucas e muitas vezes angustiantes que tinha vivido na minha vida profissional, apesar de todas as coisas maravilhosas que me aconteceram também nos últimos anos. E quando vi esse conceito voltar em uma fase tão importante da minha vida, tive um daqueles momentos em que tudo faz sentido, sabe? Um insight. E me dei conta de que o Tribal significa para mim algo muito próximo a essa ideia, e que muitas de nós do Tribal pregamos isso, sem nem conhecermos esse termo específico. Senti vontade de falar sobre essa filosofia dentro do nosso meio, porque realmente acredito que tem tudo a ver – pelo menos para mim.
“Ubuntu é uma filosofia africana cujo significado se refere à humanidade com os outros. Trata-se de um conceito amplo sobre a essência do ser humano e a forma como se comporta em sociedade. Para os africanos, ubuntu é a capacidade humana de compreender, aceitar e tratar bem o outro, uma ideia semelhante à de amor ao próximo. Ubuntu significa generosidade, solidariedade, compaixão com os necessitados, e o desejo sincero de felicidade e harmonia entre os homens.” (Fonte: http://www.significados.com.br/ubuntu/ )
“Ubuntu é uma noção existente nas línguas zulu e xhosa – línguas bantu do grupo ngúni, faladas pelos povos da África Subsaariana[...]. A palavra Ubuntu, não traduzível diretamente, exprime a consciência da relação entre o indivíduo e a comunidade. Segundo o arcebispo anglicano Desmond Tutu, autor de uma teologia ubuntu “a minha humanidade está inextricavelmente ligada a sua”. Essa noção de fraternidade implica compaixão e abertura de espírito e se opõe ao narcisismo e ao individualismo.
Nelson Mandela também exprime esse ideal:
“Respeito. Cortesia. Compartilhamento. Comunidade. Generosidade. Confiança. Desprendimento. Uma palavra pode ter muitos significados. Tudo isso é o espírito de Ubuntu. Ubuntu não significa que as pessoas não devam cuidar de si próprias. A questão é: você vai fazer isso de maneira a desenvolver a sua comunidade, permitindo que ela melhore?”
Na tradição sul-africana, a reconciliação se exprime através do ubuntu ou humanismo, que inclui valores como a compaixão e a comunhão […].
Segundo o arcebispo Desmond Tutu:
“Uma pessoa com Ubuntu está aberta e disponível para as outras, apoia as outras, não se sente ameaçada quando outras pessoas são capazes e boas, com base em uma autoconfiança que vem do conhecimento de que ele ou ela pertence a algo maior que é diminuído quando outras pessoas são humilhadas ou diminuídas, quando são torturadas e oprimidas.”
É isso. Nós somente somos o que somos por causa do que somos todos nós. Tudo que fazemos hoje é a continuação de algo que foi feito antes. Cada verdade é um ponto numa linha de sucessivas e complementares verdades. Nenhuma pessoa carrega a verdade absoluta. Ninguém sabe de tudo. Ninguém é completo sozinho. Nós precisamos do outro. Nós precisamos de “nós”.
O nome Tribal nasceu por causa das etnias tribais homenageadas em nossa dança e, junto com o nome, esse espírito de tribo ficou conectado ao que fazemos. Nós sabemos que quando dançamos juntas, ou quando nos unimos de qualquer forma, mesmo que apenas fora do palco, somos mais fortes.
A nossa comunidade Tribal ainda é muito pequena e fechada comparada a outros estilos de dança. Na maioria das vezes o público dos nossos shows e eventos é composto apenas por nossas próprias alunas e seus familiares. Ainda é muito raro termos um público pagante completamente leigo ou apenas apreciador do nosso estilo de dança específico. Somos um meio retroalimentado.
Por isso acho importante que nós, que trabalhamos com arte e dança, e mesmo os que apenas tem isso como hobby, entendamos que não somos concorrentes. Cada pessoa tem um papel único dentro da nossa comunidade e absolutamente complementar com o dos seus colegas. Nosso trabalho, já influenciado pelas nossas mestras e colegas, influencia o trabalho de nossas alunas e alunos, e assim por diante, gerando uma corrente interligada e absolutamente conectada sem que nos demos conta muitas vezes. Por mais que dancemos as mesmas músicas e usemos figurinos parecidos, nossos trabalho são a expressão individual do que o Tribal significa para cada uma de nós, dentro de nossas vidas e comunidade próxima. Somos todas uma só, mas somos todas únicas. E essa para mim é a real essência do Tribal: coletividade e personalidade, andando lado a lado.
Para mim, é imprescindível que paremos de comparar o trabalho dos profissionais, apontando quem é “melhor” ou “pior”, e que, como expectadores e público, que também somos além de artistas nessa nossa comunidade tão pequena, consigamos ter o discernimento necessário para entender que não existe melhor nem pior, existem artistas que são diferentes entre si. Existe o que cada artista já produziu e o que está produzindo dentro da sua própria lógica e evolução. Existem artistas de todo os tipos, para todos os gostos, de todas as épocas. E cada um é único. Como já dizia o grande bailarino Mikhail Baryshnikov: “Quando danço, eu não procuro superar ninguém além de mim mesmo”.
Nossas aulas são diferentes, mesmo sendo do mesmo estilo de dança, e cada aluna deve ser livre para fazer aula com quem quiser, quando quiser. Não existe “ela só é minha aluna” ou “só foi sua aluna”. Ainda mais nessa época de youtube: toda aluna estuda em casa com outras professoras, através de vídeos de performance, vídeo-aulas, DVDs didáticos... E cada aluna procura uma professora ou professor de acordo com aquilo que precisa no momento, por afinidade, por conteúdo, por proximidade, por inúmeros fatores. E mesmo quando somos da mesma cidade e do mesmo nicho, não manas, eu não acredito que sejamos concorrentes! Há de verdade espaço para todas, antigas e jovens no estilo, defensoras das raízes e defensoras da inovação, ou de ambos. Somos parceiras, podemos somar nossos esforços e trabalhos, para promover o meio como um todo... Para que seja inclusive mais fácil para TODAS NÓS.
Nosso estilo é tão recente e muda o tempo todo, então é importante estarmos preparados também para o novo, tanto para os novos artistas como para as novas visões dos mesmos artistas de antes. A arte não é estática, e nem os artistas! E antes de sermos artistas, somos pessoas com o direito de mudar e também de permanecermos os mesmos. A arte é extremamente pessoal, de maneira que sempre haverá alguém para gostar e alguém para desgostar de cada trabalho produzido. Acredito que dentro da arte nenhum trabalho deveria ser rotulado como “bom” ou “ruim” porque todo trabalho merece reconhecimento pela obra do artista. O “bom” ou “ruim” são opiniões pessoais e extremamente relativas e discutíveis. E é claro que isso é bastante idealista e utópico, mas por que não pode ser praticado por quem acredita nisso?
O Tribal é tão novo, tão bebê, e ainda assim conta com “seguidoras” absolutamente apaixonadas, defensoras mesmo do estilo – eu me incluo aqui! -, mas mais do que defender o estilo, a técnica, as origens, mais do que aprender e ensinar a dança, acredito que ainda nos falta muito da vivência real de comunidade. O Ubuntu. A Tribo mesmo. Não só reverenciar as mestras lá da Califórnia, mas reconhecer o trabalho das nossas irmãs aqui do Brasil e América Latina. Entender que não é porque a colega é diferente de você como professora ou performer, que o trabalho dela é melhor ou pior. Entender que a conquista de uma é a conquista de muitas. Realmente ficar feliz pelo sucesso da colega e por sua contribuição pessoal à nossa comunidade.
Enquanto não aprendermos a realmente valorizar e prestigiar nossas colegas, nossas alunas e nossas mestras da melhor maneira que pudermos, sendo fazendo suas aulas, divulgando vídeos que você gosta mesmo que não sejam seus e não estejam ligados com o seu trabalho pessoal, promovendo shows e eventos que beneficiem a comunidade toda ao invés de promover somente o nome da(s) organizadora(s) do evento, assistir aos shows de mostras e novos talentos, amadrinhar bailarinos novos, e apoiar o estilo como um todo, ainda teremos segregação, fofoquinhas, intriguinhas, panelinhas e mimimis. E vamos combinar que no fim das contas ninguém gosta realmente disso, né?
Somos todas iguais porque somos todas diferentes. E é claro que por causa das diferenças, divergências e debates fazem parte da comunidade também. Mas os debates, quando construtivos, inclusive contribuem para o amadurecimento de uma comunidade. Penso que pensar a dança é sempre algo positivo, mesmo que as opiniões sejam divergentes.
Eu noto que nos últimos eventos que tenho ido de Tribal, um respeito maior parece estar sendo criado entre as diferentes bailarinas, mesmo entre aquelas que não têm as mesmas opiniões sobre o estilo ou que não se dão pessoalmente. Viver em comunidade não significa concordar com tudo que o outro faz, e sim manter a mente aberta para as diferentes visões sobre um mesmo ponto. Ter respeito pela opinião e trabalho do outro. Em comunidade, é importante saber que ninguém sabe tudo. Temos saberes e experiências diferentes. E todos nós crescemos quando enxergamos o outro. Quando entendemos seu ponto de vista. Quando nos colocamos em seu lugar. Quando repensamos nossas opiniões. Quando admitimos o nosso erro. Quando perdoamos o erro alheio. Quando humanizamos nosso convívio.
É claro que na teoria tudo isso é muito bonito e fácil, mas na prática complica. É muito difícil praticar o amor e a união o tempo todo. Somos seres humanos. Somos todas imperfeitas. Todas nós erramos e acertamos. Mas é algo para se pensar, pois também somos todas aprendizes nessa vida, com capacidade para repensar, evoluir e nos reinventarmos. Ainda bem!
Eu acredito que a verdadeira união que o Tribal merece está cada vez mais próxima, mesmo que o caminho ainda seja longo, contando que estejamos dispostas a sermos empáticas e um pouco menos egoístas – eu me incluo aqui também.