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[Folclore em Foco] Snujs - Ancestralidade na dança

 por Nadja El Balady


Snujs, sagat, zills, finger cymbals, crótalos, címbalos. Se você é uma dançarina de qualquer estilo de dança do ventre, você já está familiarizada com algum destes termos. Você sabe que são importantes acessórios para a prática da dança, sobretudo para as dançarinas de ATS®/FCBD Style® e folclore árabe. Mas você sabe por que nós dançamos tocando?  Sabe qual a importância este instrumento tem em suas culturas de origem?

Venha comigo descobrir um pouco da história dos snujs e entender o que estamos representando quando simplesmente os colocamos nos dedos e tocamos na nossa dança.

Snujs são instrumentos musicais, da classe das percussões leves, que atuam como guia para os outros músicos, ajudando a manter o andamento da música igual para todos os instrumentos. São pequenos pratos de metal, que se prendem aos dedos com elásticos e que em conjunto de quatro unidades formam dois pares de címbalos, sendo um par para cada mão.

Existem inúmeros tipos, formatos, variedades e tamanhos de snujs, bem como diferentes nomes, como demonstrado na primeira linha deste artigo. Isso acontece porque são instrumentos ancestrais, existentes há milhares de anos e em culturas de diversos locais do planeta: Da África à Ásia, do Marrocos à Índia, sobretudo no Oriente Médio, encontramos indícios de que este instrumento atravessou o tempo e permanece como traço identitário da musicalidade de diversos povos. A palavra snujs, é proveniente do dialeto sírio/libanês utilizados por imigrantes árabes no Brasil. Sagat é a palavra egípcia e zills é como o instrumento é chamado na Turquia.

Os snujs podem ser feitos de materiais diferentes, com espessuras diferentes e tamanho do diâmetro diferente também. Cada especificação gera um som diferente. Dependendo da região, são tocados de maneira diferente também. Snujs mais finos tendem a ressoar por mais tempo, snujs mais grossos tendem a ter um som mais seco. Dependendo do som que se quer produzir, pode-se usar técnicas diferentes para tocar. Existe um artigo em inglês bem interessante a respeito de diferenças entre sagat tradicional egípcio e os zills produzidos nos Estados Unidos, no site Gilded Serpent, escrito pela Yasmin Henkesh em 2011. O link de acesso estará no final deste artigo.

No Egito, existem sagat de diversos tamanhos: Entre 3 e 6 centímetros de diâmetro, normalmente usados por dançarinas, entre 8 e 10 centímetros, para músicos e entre 12 e 15 centímetros para rituais religiosos.

Muito se especula a respeito de uma origem sagrada para o instrumento. Mas não são de origem sagrada todos os instrumentos? A própria arte nasceu da catarse para expressão dos sentimentos humanos e a tentativa de comunhão com o divino: A música, a dança, a pintura. A arte servia aos antigos como forma de conexão entre o visível e o invisível. Existem comprovações de uso de címbalos com diversos formatos em algumas culturas ancestrais como antigo Egito, Babilônia, Tibete e muitos outros países da África e da Ásia. Algumas pessoas escrevem a respeito da elevação do astral do ambiente, atribuindo ao som emitido pelos címbalos características positivas e alegres. Outras pessoas ainda afirmam a capacidade de que o som teria de afastar os maus espíritos e por isso serem tão importantes em templos e atividades religiosas. Apesar destas afirmações terem mais ou menos indícios de comprovação, nunca foi de meu especial interesse estabelecer certezas neste sentido, pois ao longo do tempo os címbalos foram mudando de formato, material e também de função cultural, antes que chegasse na prática da dança do ventre como conhecemos.

Ainda sobre o uso sagrado dos snujs, é importante saber que a música árabe tem uma tradição antiga de música religiosa. A música islâmica medieval se voltava constantemente para o sagrado, assim como sagrado era o uso dos instrumentos. A partir do momento em que a música atinge outros objetivos sociais além do louvor, também o uso dos instrumentos musicais ganha um outro significado, servindo para celebrações, para a guerra, para situações cotidianas e assim se torna um elemento da identidade cultural de cada povo e é a partir deste ponto de vista que os snujs ganham importância para quem dança.


Sendo usado como acessório fundamental da dança em locais diversos do norte da África, vamos encontrar registros abundantes do uso de snujs no Egito, onde o instrumento é conhecido como “sagat”. O sagat está integrado ao cotidiano musical do povo egípcio e o uso em conjunto com a dança faz parte da tradição cultural. Não conheço registro preciso de quando o sagat foi incorporado à dança, mas se sabe que durante a idade média já era utilizado inclusive como forma de entretenimento agregado a apresentações de grupos de músicos e dançarinas em celebrações e ocasiões especiais. A partir de meados do século XIX, encontramos evidências de duas classes de dançarinas profissionais atuando no Egito: As Awalen e as Ghawazee. Ambas as classes de dançarinas profissionais existiam durante a idade média, desde o período otomano, sobrevivendo e se adaptando às transformações da cultura egípcia. Awalen era uma classe de mulheres profissionais da música e da dança que, eram educadas para se tornarem artistas. Atuavam principalmente nos centros urbanos do Cairo e Alexandria. Ghawazee é uma palavra para descrever a função de artista desempenhada pelas mulheres de etnias relacionadas ao povo Dom, entre eles algumas famílias que se identificam como etnia Nawar, que teriam migrado para o Egito na idade média, trazendo em sua tradição a prática da performance pública como forma de sustento. Essas pessoas são conhecidas como os “ciganos egípcios” (termo pejorativo, com o qual muitos não se identificam), tendo sofrido toda sorte de preconceitos ao longo da história recente do Egito. A dança ghawazee é uma arte considerada vulgar desde a invasão francesa no final do século XVIII, forçada a deixar os centros urbanos e migrar para as regiões rurais, se adaptando aos costumes de cada local. Seguiram realizando sua forma de arte espontânea e familiar a contento do povo da zona rural em suas celebrações, levando consigo a identidade cultural da região onde atuam, sendo reconhecidas como tal. Ghawazee e Awalen, apesar de diferentes em termos sociais e étnicos, eram semelhantes em suas performances no período do final do século XIX até a metade do século XX. Usavam figurinos semelhantes e sempre usavam sagat em suas performances. Uma marca das performances ghawazee e awalen.


Nos centros urbanos do Egito, estas duas classes de profissionais da dança aos poucos foram sendo substituídas por uma terceira classe: A dançarina oriental (raqisah), educada no contexto artístico para performances em teatro, casas de show e cinema. Podemos ver nos filmes do período considerado como “era de ouro” do cinema egípcio, performances de dançarinas que sempre usavam sagat para ilustrar cenas de celebrações populares e folclóricas. Pouco a pouco o uso dos sagat foi sendo limitado à representação folclórica nos shows de dança. Embora exímias tocadoras de sagat, as dançarinas profissionais foram deixando de tocar nos longos shows egípcios, deixando para tocar no trecho folclórico do show. Nos dias de hoje alguns shows não têm nem mesmo o uso do sagat pela dançarina, principalmente tendo em vista que uma grande parte das profissionais que atuam no Egito são agora estrangeiras.

Nos Estados Unidos, o instrumento chegou junto com as ghawazee que para lá migraram e influenciaram as primeiras dançarinas de belly dance profissionais. Os zills, como são mais conhecidos por lá, se tornaram parte imprescindível da performance do estilo “cabaré americano”, que é como a estilização da dança do ventre passou a ser conhecida nos Estados Unidos. Dominar diferentes padrões de toque para zills é fundamental para a dançarina profissional estadunidense. Elas usam os instrumentos para diversos fins, inclusive para abrilhantar solos de percussão, onde exibem destreza e agilidade de toque na composição musical. Zills são importantes para cativar a atenção do público e criam uma conexão cênica perfeita entre música e dança.

A famosa Jamila Salimpour, que durante as décadas de 60 e 70 formou muitas dançarinas profissionais, tinha o uso de zills como obrigatório em seu formato. Sua filha Suhaila deu continuidade ao seu legado formando pelas décadas subsequentes incontáveis dançarinas que precisam dominar os zills para terem sua formação completa. O formato Salimpour foi o ponto de partida para o surgimento da estética tribal que se desenvolveria ao longo das décadas de 80 e 90, levando este elemento étnico e ancestral como parte fundamental do estilo tribal americano.

As praticantes das fusões aprendem a tocar os snujs, mas muitas vezes não entendem bem o porquê. Quem estuda o folclore árabe, aprende a relação do instrumento com as danças populares.

Toda a estética tribal se inspira na música, movimentos e figurinos usados pelas mulheres em suas danças populares no norte da África: Das tribos nômades do povo Amazigh (Berberes), das ghawazee egípcias aos povos beduínos do Oriente Médio. O estilo tribal carrega em si estas referências importantíssimas da origem popular da dança do ventre, tendo no uso dos zills a conexão definitiva com povos que ao longo do século XX sofreram inúmeras perseguições culturais, tendo suas tradições massacradas pelo colonizador europeu, sofrendo preconceitos e limitações sociais e econômicas.

A classe das awalen não mais existe e as ghawazee estão em extinção. As dançarinas naiyliat (ouled nail) da Argélia também. Para nós ocidentais, praticantes de uma arte que tem origem tão antiga e diversa, saber quem são, quem foram e qual a importância da dança nas vidas destas mulheres é uma questão de se reconhecer como mulher que dança. É entender a ancestralidade da dançarina, suas raízes. Uma arte que muitas vezes era transmitida de mãe para filha. A dança era para elas meio de vida, como é para muitas de nós. Meio de vida não apenas como forma de pagar as contas, mas também como forma de afirmação da vida e de celebração de suas tradições. A arte é parte fundamental da identidade de um povo. Ao colocar os snujs nos dedos, estamos fazendo algo muito maior do que simplesmente tocar um instrumento musical na intenção de demonstrar agilidade. Estamos nos conectando a mulheres de povos distantes, de tempos remotos, estamos dando prosseguimento a uma tradição. A dança do ventre se espalhou pelo mundo no século XX e seguiu, se adaptando, se transformando de acordo com a passagem do tempo, de acordo com o local e história corporal das mulheres que a praticam. Uma prática que nos conecta a estas mulheres da história, às suas descendentes e respectivas culturas. Quando tocamos snujs, trazemos um pouco delas conosco. Quando tocamos snujs, as representamos para o nosso público. Quando tocamos snujs, evocamos os mistérios do tempo e de coisas que fogem à nossa compreensão.

Que possamos elevar a nossa consciência no uso das coisas por entender que as coisas carregam consigo memórias escondidas de sua história e que ao usá-las estamos fazendo parte, nos integrando a este fluxo de tempo que dá continuidade a esta mesma história. Olhe para seus snujs e pense nas mulheres que tocam desde tempos remotos até hoje. Honre estas mulheres e os povos de sua origem. Propague a beleza da cultura viva que se espalha em forma de arte e não esqueça que você também faz parte disso.


☛ Indicação de leitura complementar:

You say zills, I say sagat - Yasmin Henkesh, Gilded Serpent, 2011.

http://www.gildedserpent.com/cms/2011/04/25/yasmini-zills-sagat-difference/


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Folclore em Foco


Nadja El Balady (Rio de Janeiro-RJ) é diretora do grupo Loko Kamel Tribal Dance e proprietária do Oriental Studio de Dança no Rio de Janeiro, dedicando-se há 21 anos a estudar danças orientais. Professora de Dança do Ventre, American Tribal Style® e Tribal Fusion, com experiência internacional na Europa em shows e workshops. Estuda o Estilo Tribal desde 2005 e é uma das pioneiras da Fusão Tribal Brasileira. . Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >> 

[Folclore em Foco] Tribal – Fundamento e estilização

 por Nadja El Balady


O estilo tribal de dança do ventre está interligado à sua matriz popular / folclórica? 


Oi, eu sou a Nadja El Balady e neste artigo eu gostaria de apresentar a você minhas reflexões a respeito deste tema. Por isso mesmo, escrevo em primeira pessoa: Trata-se do meu ponto de vista atual. Pontos de vista são dinâmicos, podem e devem mudar conforme evoluímos, mas acredito ser esta reflexão pertinente no momento.

A primeira coisa que eu preciso colocar é que entendo que o estilo tribal é dança do ventre. Pode até deixar de se chamar tribal, mas jamais deixará de ser dança do ventre. Há 15 anos quando comecei a estudar o estilo, esta dúvida existia entre muitas dançarinas aqui no Brasil e por outro lado, este assunto também é debatido dentro dos círculos pensantes do estilo tribal americano (ATS® ou FCBD®), mas acredito ter sido abafado pelo debate a respeito da palavra “tribal” enquanto definição de nomenclatura. Este estilo inequivocamente se fez, se difundiu e se firmou enquanto mercado sob o pavilhão da dança do ventre. Com o termo dança do ventre (FCBD® – Fat Chance BELLY DANCE®). Com os figurinos e acessórios da dança do ventre. As famílias de movimento que fundamentam o estilo desde a sua origem, são todas relacionadas à dança do ventre. É preciso que se compreenda que todos os estilos de dança do ventre são provenientes do folclore árabe. Todos os estilos de dança do ventre se originam da estilização das danças populares árabes do norte da África, principalmente. Neste ponto, o estilo tribal americano não é em nada diferente da dança do ventre moderna egípcia, da brasileira ou do estilo cabaré americano. O que conhecemos como “dança do ventre” é a própria ação de estilizar as danças populares/folclóricas árabes. Então, tribal é sim dança do ventre, resultado de um processo antigo e profundo de apropriação cultural.

Entendo também que o termo “estilo tribal de dança do ventre” serve tanto para o estilo tribal americano quanto para a fusão tribal (tribal fusion) e que pode abraçar também a dança do ventre fusão (fusion belly dance). Falaremos sobre a dança do ventre fusão um pouco mais à frente, mas é importante o entendimento de que não me refiro a qualquer fusão com dança do ventre, me refiro a um estilo específico de dança do ventre fusão dos Estados Unidos, advinda da fusão tribal, compatível com seu vocabulário de movimentos, que tem coreógrafas que vieram desta vertente e que frequentam o mesmo meio, os mesmos eventos e festivais.

É possível também estender o termo para abraçar a dança do ventre que serviu como background para o surgimento do estilo que, por algumas pessoas, é também conhecida como “pré tribal”: O estilo do grupo Bal Anat na década de 70, criado por Jamila Salimpour, ampliado pela sua filha Suhaila Salimpour e que é fundamento técnico inequívoco tanto para o estilo tribal americano, quanto para a fusão tribal.


É pelo entendimento do estilo tribal como uma vertente da dança do ventre que abordo o tema deste artigo. Enquanto professora de dança do ventre “tradicional” (conectada à cultura árabe), estou questionando meus métodos de ensino de ATS® e tribal fusion. Até muito pouco tempo, minha metodologia de ensino era baseada na minha formação enquanto FCBD® Sister Studio e também nos inúmeros workshops, cursos e imersões que fiz sobre ATS® e tribal fusion. Apesar de estudar danças populares árabes desde o início da minha carreira e de estar falando sobre as origens folclóricas do estilo tribal há anos, só a partir deste ano de 2020 comecei realmente a incluir aulas específicas a respeito destas danças nas minhas aulas de tribal. Estou considerando cada vez mais importante, não só falar na teoria, mas apresentá-las na prática para as novas dançarinas.

A conexão entre as diferentes vertentes da dança do ventre e suas danças populares matrizes, para mim, sempre foi muito clara, por ser eu estudante de danças populares e folclóricas ao longo de toda a minha vida profissional na dança. Entendo agora que esta correlação não é assim tão clara para todos.


Acredito que se você estuda determinada modalidade de dança étnica, é interessante que você busque se aprofundar em elementos da origem, da história desta modalidade. É interessante também que você procure compreender os aspectos culturais e sócio econômicos que influenciaram aquela história, as transformações pelas quais possa ter passado esta modalidade de dança (talvez) tão antiga quanto a existência humana.

Mesmo que a dançarina não se interesse especialmente pelo assunto, que dance para se divertir e não goste de fazer pesquisa, é importante que saiba que se ela faz shimmie, se faz ondulações, twists, oitos e batidas de quadril, a base fundamental da sua expressão artística é popular/folclórica.


Danças populares e danças cênicas

Danças populares são manifestações espontâneas e tendem a se firmar enquanto tradição dos povos de todo o mundo, em todas as regiões do planeta, independente de religião ou sistema político. Danças populares são correlatas à geografia, hábitos e saberes adquiridos pelos povos em suas regiões de origem. São afetadas pelas questões sócio econômicas e muitas vezes modificadas pelo processo de dominação colonizadora. Nem toda dança popular assume status de folclórica, mas toda dança folclórica é popular. Danças populares são expressões de povos nativos, são tradições vivas e parte fundamental suas identidades, praticadas em festas, datas comemorativas, rituais sociais e religiosos. Normalmente toda a comunidade participa e são danças de conhecimento popular.

Danças cênicas são modalidades destinadas ao espaço cênico: o palco. São modalidades virtuoses e consideradas como arte pela a sociedade culta e dominante. A dança cênica primordial que, sem dúvida, serve de base para todas as outras danças cênicas é o balé. Muitas outras modalidades surgiram a partir do balé, ou mesmo de sua contraposição, de sua desconstrução. Danças cênicas são, geralmente, praticadas por pessoas socialmente privilegiadas, pois é preciso investimento de tempo e dinheiro para aprender e se manter praticando uma dança cênica. A profissionalização leva longos anos de estudos e dedicação intensa.

Existe uma intercessão muito importante entre as danças populares e as danças cênicas: Quando a dança popular é levada ao palco com o status de arte. Hoje em dia é comum vermos manifestações populares levadas ao palco, existem fóruns, congressos e festivais dedicados ao folclore de diversas danças do mundo. Existem grupos de cultura popular que são contratados para circuitos de eventos e espetáculos. Nos festivais de dança do ventre, sempre temos apresentações de folclore árabe. No Egito, o mais célebre artista a encenar a cultura popular egípcia no palco, na televisão e no cinema, foi o coreógrafo Mahmoud Reda.


Sem aprofundar em teorias antropológicas, existe um aspecto positivo que influencia aquele que faz cultura popular a levar sua expressão artística para o palco: Reconhecimento. Se este reconhecimento vier em forma de dinheiro, de forma que o artista popular possa tirar dele o seu sustento, teremos ainda o benefício de valorização de todo uma população se reconhecendo e afirmando sua autoestima.

O fato é que quando uma dança popular sobe ao palco, ela se modifica. O público, que em manifestações populares genuínas, é parte ativa e integrante da dança, agora assume papel passivo de espectador. As movimentações passam a ser pensadas, coreografadas, com posicionamento de cena de modo a favorecer a visão deste público. Tudo é modificado, de movimentos a figurinos, de cenário a expressão. É neste momento em que surgem as estilizações.

Inúmeras danças populares passaram por este processo de estilização ao redor do mundo, inclusive as danças populares de periferia do Egito, que deram origem à dança do ventre.


A dança do ventre e sua origem estilizada


Não vou me alongar a respeito do processo de estilização das danças populares egípcias e a consequente história da dança do ventre no Egito, existem muitos, muitos textos a respeito disponíveis, mas acredito que este é um ponto crucial para o entendimento da dançarina da atualidade. A dança do ventre como a gente conhece é fruto da estilização de diversas danças populares em uma só modalidade, que aos poucos foi ganhando mais e mais influência de danças cênicas como balé e dança moderna. Esta influência foi se intensificando cada vez mais com a presença de coreógrafos e dançarinas provenientes da elite social egípcia (como o já citado Reda). Quanto mais próximo à elite, maior a influência estética cênica, principalmente ao longo do período conhecido como “era de ouro” do cinema egípcio (1920 – 1970). A dança do ventre como conhecemos surgiu, por tanto, como uma dança popular estilizada, entre o final do século XIX e o início do século XX, proveniente dos espetáculos de entretenimento no Cairo visando estreitar relações entre a elite social egípcia e os colonizadores europeus, durante o período da dominação inglesa.

É preciso também compreender que neste mesmo período, a dança do ventre se espalhou pelo mundo, no contexto orientalista das feiras universais, dos cabarés franceses e dos espetáculos de vaudeville nos Estados Unidos. Em cada lugar a dança foi estilizada ao sabor das circunstâncias locais, se adaptando a expectativa do público de cada cidade, modificando movimentação, uso de acessórios e figurinos de acordo com as condições culturais, sociais e econômicas de cada dançarina, de cada região, de cada país onde foi apropriada como forma de arte e entretenimento, sem preocupação de preservação de tradições ou origens populares.

Acrescentamos a este contexto a utilização de culturas “exóticas” pelos cineastas de Hollywood, difundindo para todo o mundo uma dança do ventre sensual e erotizada, cujo propósito seria impressionar e seduzir homens, dançada por mulheres de reputação questionável.

A história da dança do ventre no ocidente tem mais de um século e é a história de uma dança étnica, porém cênica, estilizada, adaptada, modificada, com mil faces, pois nós ocidentais temos um ponto de vista totalmente diferente a respeito da dança em relação à forma como é vista no oriente. Aqui no ocidente, a dança pode ou não ser profissão, você pode fazer como uma atividade física, como terapia, como forma de conexão ao sagrado. Você pode dançar por anos e nunca realmente chegar a viver da dança. Diferente de alguns países como o Egito, por exemplo, lá esta prática da dança do ventre em sala de aula não é comum, não se dança regularmente como prática amadora ou como hobbie. Dificilmente uma mulher egípcia terá uma profissão qualquer e também ser dançarina. Quem estuda oriental dance ou raqs shark, é profissional, trabalha com isso e tira desta atividade todas as vantagens e desvantagens que podem vir da prática da dança no oriente. Mas isso é papo para outro artigo.

De todo modo, é preciso deixar claro que a dança do ventre nos países árabes é praticada no contexto social de formas diferentes: Tanto no espaço da cultura popular como celebrações, festas e rituais (como casamentos, por exemplo), quanto no contexto cênico de arte e entretenimento: Restaurantes, festivais, teatros, cinema e televisão. No ocidente, a dança do ventre assume exclusivamente o contexto cênico, exceto em celebrações de comunidades imigrantes árabes, turcas e afins.

A dança do ventre cênica se desenvolveu na busca de um refinamento estético, não só na movimentação, mas também na música e nos figurinos. O figurino de uma dançarina de raqs shark é totalmente diferente dos figurinos das suas fontes nas danças populares, em relação aos modelos e materiais utilizados para confecção. A dançarina oriental busca a elegância e a riqueza da identificação com as classes sociais dominantes, enquanto os figurinos das danças populares (mesmo de palco), tendem a refletir os costumes do povo da periferia.


Fusão. Sim, ou com certeza?


Ao longo do século XX, o contexto da dança nos Estados Unidos produziu um tipo de dança do ventre que conhecemos como “cabaré americano” e o tribal é fruto direto da estilização folclórica dentro do estilo cabaré americano. Dançarinas estadunidenses criaram uma conexão entre elementos das danças populares ciganas, beduínas e berberes e seu próprio ponto de vista a respeito da cena. Todo um contexto estético foi criado a partir desta estilização, incluindo elementos como figurino, cenário, acessórios, música e vocabulário de movimentos que reúnem referências populares diversas. Uma dança cênica, advinda de muitas estilizações de refinamento cênico, que passou a buscar nas danças populares e folclóricas a sua inspiração estética: Um mergulho em busca de um imaginário coletivo sobre o oriente, procurando uma outra forma de exercer a coletividade, de algo que pudesse evocar uma memória ancestral e renovar o fazer da dança do ventre em um novo sentido mágico, para uma nova feminilidade que despontava na Califórnia da década de 70.

O estilo tribal, nasceu fusionado e foi agregando cada vez mais elementos de fusão ao longo de sua evolução enquanto estilo. À mistura dos elementos estéticos das danças do norte da África foram adicionados movimentos e posturas de flamenco, além de elementos de danças tradicionais indianas. A estilização foi perdendo cada vez mais a conexão com o universo popular árabe de origem, passando a abranger elementos de figurino e musicalidade de diversos lugares do mundo. A partir da década de 90, a fusão tribal absorveu elementos das danças urbanas dos EUA e renovou a conexão com o estilo cabaré americano através de uma abordagem vintage, mas ao mesmo tempo contemporânea, buscando a inovação e um novo olhar sobre a cena, trazendo teatralidade, temas, personagens, músicas eletrônicas, se distanciando cada vez mais do contexto cultural popular e folclórico matriz.

A dança do ventre fusão que nasceu nos anos 2000 é uma linguagem cênica, construída a partir de elementos étnicos muito estilizados, que se desconectou quase completamente da estética tribal de onde surgiu. Embora mantenha em seu vocabulário essencial movimentos como tremidos, twists, sinuosos e batidas típicas da dança do ventre, de trabalhar a postura e braços do estilo tribal, ela absorve cada vez mais elementos contemporâneos, de danças urbanas e outras modalidades cênicas. A fusão não tem compromisso representativo de nenhuma etnia específica e é um campo aberto para a inovação e criatividade.


Qual a importância de se conhecer as raízes populares

O problema maior da ausência de conexão com o contexto popular originário reside, principalmente, na questão da apropriação cultural. Gerações de dançarinas de dança do ventre tribal e fusão estão sendo formadas como profissionais da dança ignorantes do contexto cultural a qual estão afeitas. Não conhecem música árabe, não reconhecem ritmos, não têm ideia da história da dança fora dos Estados Unidos, não sabem por que usam os movimentos do estilo a não ser pela questão do virtuosismo e beleza estética. Estas dançarinas não podem retornar às populações de origem o reconhecimento devido, não podem citar as danças populares matrizes de sua prática, não sabem quem são os ícones e mestres da cultura popular de onde vieram os fundamentos primordiais da estética de sua modalidade.

O estudo das danças populares reforça a prática da técnica de quadril, da técnica de abdômen, de movimentos de torso, amplia o vocabulário de movimentos e a possibilidade de criação coreográfica a partir destes elementos fundamentais. Quem conhece a fonte, dança melhor.


Urge que a dançarina de fusão se conecte com os fundamentos populares, é preciso que ela saiba identificar na sua linguagem aquilo que é ancestral, daquilo que é contemporâneo. É preciso que ela conheça a forma como vivem os povos nativos do norte da África, da Índia e de outros lugares de onde vieram os elementos estéticos que fundamentam a sua arte. É preciso que ela honre estas culturas, que lhes retribua reconhecimento, que pelo menos reconheça sua música, saiba o nome de suas danças folclóricas.

É preciso que a professora de estilo tribal e fusão ensine a respeito destas questões em sala de aula, que saiba dizer as famílias de movimento que fundamentam o estilo e a origem destes movimentos, que saiba quem são as ghawazee e as ouled nail, que saiba os quais movimentos de estilo vieram da dança beduína, flamenco, ou da dança odissi. Que saiba quem foram as dançarinas da era de ouro, além dos próprios ícones dos estilo, nas décadas de 70, 80 e 90 nos Estados Unidos. Que saiba fazer a ponte entre os novos e os antigos saberes na dança.


Estilização


Estilizar é um processo natural e não diz respeito apenas à dança, mas a todas as artes. Acontece há muitos séculos, na história da humanidade. Enquanto artistas, podemos usar diferentes elementos cênicos como ferramenta de criação. Faz parte da nossa própria construção estética, da nossa história corporal, é resultado da nossa cultura, do nosso momento, do nosso recorte da realidade.

Enquanto dançarinas cênicas, profissionais e estudantes de dança, podemos tentar reproduzir danças originais, mas sempre iremos esbarrar na questão da corporeidade. Porque um corpo construído em condições culturais diferentes, reproduz diferentes sotaques, diferentes modos de fazer. Para reproduzir fielmente uma dança popular é preciso grande vivência nesta cultura, é preciso imersão, é preciso construir um novo entendimento de movimento, afeito exclusivamente àquela dança, àquele povo. É honesto que existam modificações em termos de transposição de determinada dança para a cena e adaptação às condições de performance. Mas é importantíssimo que em uma criação se tenha o conhecimento daquilo que é original e daquilo que foi estilizado, que a performance seja também uma porta de entrada para o conhecimento das danças matrizes pelo público comum.

É legítimo que a artista se identifique com um aspecto mais teatral ou ritual da dança, que use a dança como ferramenta de expressão das suas próprias ideias e sentimentos, que sua intenção passe por outras questões em sua linha de criação, mas a partir do momento em que sua linguagem artística vem de uma dança étnica, é importante que se encontre espaço para a busca dos fundamentos culturais à sua ferramenta primordial.

É preciso começar a dar às culturas populares seu devido reconhecimento de público e financeiro. É preciso que os festivais contratem mestres da cultura popular para ministrar palestras e dar aulas práticas, é preciso que estas danças subam ao palco mais vezes, que sua sabedoria seja conhecida, que lhes seja conferido valor. Esta mudança começa na sala de aula, com a professora de dança se responsabilizando por esta mensagem, engrandecendo a si mesma e a suas alunas com conhecimento e entendimento sobre a sua função na mudança da realidade.


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Folclore em Foco


Nadja El Balady (Rio de Janeiro-RJ) é diretora do grupo Loko Kamel Tribal Dance e proprietária do Oriental Studio de Dança no Rio de Janeiro, dedicando-se há 21 anos a estudar danças orientais. Professora de Dança do Ventre, American Tribal Style® e Tribal Fusion, com experiência internacional na Europa em shows e workshops. Estuda o Estilo Tribal desde 2005 e é uma das pioneiras da Fusão Tribal Brasileira. . Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >> 

[Folclore em Foco] A influência do folclore árabe na formação do Estilo Tribal - Parte 3: Ghawazee

por Nadja El Balady


Ghawazee” é plural da palavra “Ghazya” que significa originalmente “invasores”, posteriormente ganhando o significado “dançarinas” dentro do dialeto árabe egípcio, segundo inúmeras fontes. Segundo Mirian Peretz, no artigo “Dances of the “Roma” Gypsy Trail From Rajastan to Spain: The Egyptian Ghawazi Dance”, a origem da palavra designa grupamento de pessoas no Egito de origem das etnias Nawar, Halab e Bahlawan. Peretz dá destaque aos nawari que seriam um povo originário do Curdistão, tendo imigrado pelo oriente médio até o norte da África. Existem controvérsias entre os pesquisadores a respeito se seriam ou não considerados etnias ciganas. Como bem coloca o Dr. G.A. Williams em seu artigo “Dom of the Middle East: An Overview”, frequentemente se usa a palavra “cigano” para designar um estilo de vida comum de grupamentos étnicos que podem ou não ter uma origem comum comprovada. Dentro deste ponto de vista, estes clãs que imigraram para o Egito pertencentes a estas etnias seriam considerados ciganos por muitos de pesquisadores.

Os clãs de ciganos passaram séculos se deslocando e comercializando com outros povos nômades como Beduínos e Berberes. Desde a diáspora cigana, imagina-se que as tribos que desceram pelo Oriente Médio transitaram por alguns séculos até atingir o norte da África e por ali ainda se dividiram por diferentes regiões, como Egito, Argélia, Tunísia e Marrocos. Estes que imigraram para o Egito se estabeleceram em algumas regiões do território do país, principalmente na região delta do rio Nilo, no sul (região conhecida como alto Egito ou Said) e no próprio Cairo.


É de conhecimento público que para estes povos um meio de vida é também uma antiga tradição: A música e a dança. Se adaptando aos costumes locais onde vão, costumavam a se apresentar nas praças, em mercados, em casamentos e outras festividades familiares.

Tendo se tornado muito populares há alguns séculos, segundo o professor Khaled Eman, as vestimentas Ghawazee poderiam ser consideradas sinônimo de luxo pelo uso de jóias, moedas e metais em suas vestes que, segundo ele, seria a melhor maneira de carregar os próprios pertences.

Não se sabe bem se as Ghawazee levaram consigo para o Egito sua corporeidade típica ou se ao chegar ao Egito ali já encontraram as movimentações sinuosas e somando estas à sua própria maneira de dançar, criaram algo novo. Encontramos no texto de Edwina Nearing a opinião de Mulouk, que esteve em contato direto com algumas famílias desta etnia: Segundo a autora, os Nawar etnicamente são ciganos, ainda falam a língua Nawari, e em sua opinião "Se, através de sua jornada no Egito, um país de língua árabe, estes grupos preservaram algo de suas línguas nativas, eles devem também ter preservado algo de seu estilo nativo de dança.” (Mulouk apud Nearing)


O fato é que a dança das Ghawazee pode ser considerada o estilo originário da dança do ventre como a conhecemos, pois estas foram as primeiras bailarinas profissionais do povo egípcio. Suas apresentações em praça pública foram objeto das primeiras cartas dos soldados franceses a seus superiores durante a ocupação francesa em solo egípcio em 1798. Foram diversas vezes descritas como lascivas e obscenas para os olhos dos ocidentais cristãos. Segundo Claudia Cenci em seu livro “A dança da libertação” (2001), as descrições sobre o Egito feitas por estudantes e pesquisadores franceses “despertou um enorme interesse sobre o Oriente, dando início a era Orientalista que influenciou a produção artística ocidental dos séculos seguintes”.

No século XIX, o rei Mohammed Ali expulsou muitas famílias Ghawazee e proibiu suas apresentações no Cairo e em Alexandria. Mediante a proibição, os artistas sediados nestas cidades precisaram se mudar. Encontramos o seguinte trecho no livro “Folclore Árabe – Cultura, arte e dança” de Melinda James e Luciana Midlej: “Alguns grupos foram para o alto Egito, para Aswan, Luxor, Qena, Edfu e Esna, e outros foram para um local no centro da região felahi chamado Soumboti.”


A maioria imigrou para o sul, para a região do alto Egito, ou Said. Assim como a família Maazin, há muito estabelecida no sul. "Banat Maazin" - As filhas de Maazin - São ainda muito conhecidas por suas apresentações de música e dança típicas da região Said. Este grupo ficou muito famoso e internacionalmente conhecido, tendo feito participações em filmes e grandes festivais de cultura. Nos dias de hoje, são as mais conhecidas e ainda é possível contato com Khairiyya Maazin, descrita por Melinda James como “a última Ghawazee”, que ainda dá aulas de dança para dançarinas pesquisadoras em sua casa em Luxor.

A região do delta do rio Nilo conhecida como Soumboti abrigou (e talvez ainda abrigue) um clã de famílias ciganas. Música, ritmo, dança soumboti, se conectam com a expressão Ghawazee e segundo Melinda James e Luciana Midlej seu estilo sofre grande influência beduína, da cultura felahi caipira, do Cairo e de Alexandria, sendo uma dança ousada, enérgica e sensual.


À primeira vista a dança das Ghawazee pode ser considerada como que “sem acabamento”, por se tratar de uma dança popular genuína. Podemos listar alguns movimentos típicos conhecidos pela dança do ventre com twist, as batidas laterais de quadril, contrações pélvicas, shimmies de ombro, o shimmie conhecido pelas americanas como shimmie de ¾ e básico egípcio.


Faz parte do estilo o uso predominante dos snujs durante as apresentações e no caso de uma representação das Ghawazee do alto Egito, o uso de bastão ou bengala é opcional. Desde o século XIX encontramos diversos registros de vestimentas típicas: Grandes batas, saias longas, bolerinhos ou cholis, saias de babado na altura dos joelhos, calças bufantes. A Ghawazee moderna usa sempre galabia, que pode ser de asuit, bordada com pastilhas, paetês ou muitas franjas. A Ghawazee sempre usa muitos adornos como colares, brincos e pulseiras e sempre adornos na cabeça que pode ser uma tiara grande bordada, um lenço de moedas ou bordado com vidrilhos. O colar com as luas crescentes invertidas é uma marca dos adornos Ghawazee.



A dança Ghawazee e o Estilo Tribal Americano de Dança do Ventre

Little Egypt 
Os artigos que contam a história da dança do ventre nos Estados Unidos contam que a primeira apresentação se deu em 1893 na World’s Columbian Exposition em Chicago, uma feira organizada para a comemoração de 400 anos da chegada de Colombo à América e que contava com exibições culturais internacionais. Havia nesta feira uma área chamada “Streets of Cairo” onde aconteceram apresentações de dança de um grupo que seria de origem Ghawazee. Segundo Michelle Harper, o grupo foi levado para Chicago pelo empresário Sol Bloom, que teria visto a apresentação do grupo em 1889 em Paris na Paris Exposition Universelle. A partir do evento em Chicago, onde a sociedade americana ficou chocada com as apresentações, muitas dançarinas passaram a se apresentar pelos Estados Unidos usando o nome artístico “Little Egypt” dando origem ao “estilo cabaré americano de dança do ventre”.

Jamila Salimpour
É possível dizer que já no chamado “estilo pré-tribal” da dança do ventre de Jamila Salimpour, em seu grupo Bal Anat na década de 70, podemos encontrar muitas influências da dança e da música Ghawazee. Desde o uso massivo dos snujs, dos elementos usados para os figurinos até a formação do vocabulário técnico do estilo de Jamila com muitos movimentos de origem Ghawazee. É importante entender aqui que o estilo criado por Jamila Salimpour influenciou fortemente o American Tribal Style®. Podemos citar alguns movimentos muito marcantes da técnica de ATS® que tiveram influência direta do estilo Bal Anat e que têm na dança Ghawazee a sua origem: Shimmie Step, Egyptian Basic, Shoulder Shimmie, Reach and Sit, Doble back, Layback, Arabic, Circle Step, Body Wave, Taxeem e claro: Ghawazy Shimmie Combo, criado posteriormente. Diversos destes movimentos fazem parte também do vocabulário gestual de outras danças de etnias do norte da África como beduínos e berberes e foram largamente usados por Jamila Salimpour em suas coreografias. Este vocabulário técnico se tornou a marca da dança do ventre californiana que deu origem ao ATS®. Carolena Nericcio, criadora do estilo, trabalhou em cima destes movimentos ao longo dos anos incluindo movimentações de braço específicas, acrescentando a postura flamenca e criando novas combinações de movimento exclusivas para o ATS®, modificando o caráter popular dos movimentos. As músicas típicas Ghawazee também são bastante apreciadas para performances de ATS®.


Apesar da clara influência da movimentação no vocabulário de tribal, onde mais se percebe a presença da dança Ghawazee é na tradição do improviso. O American Tribal Style® é um estilo de dança criado para o desenvolvimento da chamada coreografia improvisada ou improvisação coordenada. A dança das Banat Maazin, por exemplo, era sempre dançada em grupo, como no ATS®. Uma das dançarinas tomava uma posição de liderança e as outras a seguiam, sendo esta liderança compartilhada com outra dançarina, como no ATS®. Assim como o vocabulário técnico, a formação do grupo e posicionamento das dançarinas foi modificado e estilizado sempre pensando no aspecto cênico da performance artística, na estética apresentada ao público.

Fat Chance Belly Dance
Acredito que apesar das estilizações, o Estilo Tribal carrega consigo algo universal, que é marca da dança Ghawazee e que faz com que esta tradição sobreviva por tantos séculos: A alegria da dança coletiva e espontânea. A beleza da diversidade, a sensualidade natural da mulher que é livre para se expressar através de seu corpo e de sua arte.



Fontes:

HARPER, Michelle “Hoochie Coochie: The Lure of the Forbidden Belly Dance in Victorian America” publicado no site https://www.readex.com

CENCI, Claudia “A dança da libertação”, Vitória Régia, São Paulo, 2001.

MIDLEJ, Luciana ; JAMES, Melinda “Folclore Árabe cultura, arte dança”, Kaleidoscópio de Ideias, São Paulo, 2017.

NEARING, Edwina, “The Gawazee Tradition”, publicado no site www.gawazee.com

WILLIMAS, A. “Dom of the Middle East: An Overview” publicado no site http://www.domresearchcenter.com

PERETZ, Miriam “Dances of the “Roma” Gypsy Trail From Rajastan to Spain: The Egyptian "Ghawazi" Dance” publicado no site http://www.domresearchcenter.com

MOHAMED, Shokry” La danza mágica del vientre”, Mandala Ediciones, Madrid 1995.

ALMEIDA, Isabela “Dança do Ventre: Transformações através do tempo”, Univercidade, Rio de Janeiro, 2009.



[Folclore em Foco] Leitura Musical para ATS® - Parte 4

por Nadja El Balady– FatChance BellyDance Sister Studio


SOLOS DE PERCUSSÃO

Solos de percussão são músicas que são compostas para instrumentos percussivos e são tocadas exclusivamente com eles. Os arranjos podem ser feitos para diversos instrumentos, mas em geral temos um tambor líder, que nas músicas árabes ou turcas é conhecido como derbake ou darbuka ou tabla, podendo este ser o único instrumento da composição musical.

Solos de percussão são muito tradicionais em países de cultura árabe e turca. É muito comum encontrar este tipo de música em rotinas de shows de dançarinas de dança do ventre. Sendo a dança do ventre uma das influências primordiais do estilo tribal, naturalmente os solos de percussão foram incorporados ao leque de opções musicais para ATS® e Tribal Fusion.

Solos de percussão basicamente são compostos por ritmos e floreios em arranjos musicais que tendem a se repetir em contagem par. Por exemplo: Determinado ritmo será tocado por 8 compassos ou determinada frase será repetida 4 vezes.

Vejamos este exemplo da faixa “Drum Solo”, composto por Tobias Roberson, que você pode encontrar nos discos “Muse Melodic” e “Beginner’s Guide to BellyDance vol2”.


Nos primeiros 64 tempos (33 segundos) temos 3 arranjos percussivos diferentes. Cada arranjo significa uma frase musical com duração de 8 tempos cada. Elas se repetem, às vezes modificando a finalização. Após estes 64 tempos iniciais temos a entrada de um ritmo árabe, cujo compasso se conta de 2 em 2 tempos (2/2) que é o ritmo Soud. Este ritmo é a base para a próxima frase que acontece em 8 tempos e se repete em mais 8, totalizando 16. A partir daí o ritmo de base muda para o ritmo Malfuf (ou Laff), que também é um 2/2 e permanece como base de diversos arranjos até o final da música.

A primeira coisa que a dançarina de ATS® deve reconhecer no solo de percussão é quais momentos ela pode ler como rápidos ou lentos (ou dramatic slow, eventualmente).
Esta tarefa será simples nos momentos em que a música tem a base tocada com ritmos árabes, pois baseado no estudo dos ritmos você vai saber definir esta diferença tranquilamente.

As apostilas 1 e 2 de leitura musical para ATS® tem todas as dicas para você diferenciar lentos de rápidos baseado no tempo de contagem dos compassos e no andamento em que os ritmos são tocados. ( Clique para acessar o conteúdo: Apostila 1 | Apostila 2)

Veja neste vídeo da Sister Studio Mariana Esther, a mudança precisa entre lentos e rápidos de acordo com a mudança dos ritmos árabes tocados pelo derbakista George Mouzayek. Perceba que ele começa lento com o ritmo Tchifititelli (ou Wahda wo noz) e em 1:04 muda para Said, quando as dançarinas mudam a leitura para rápido.



Se a leitura para a base rítmica é fácil de identificar, por outro lado, nos momentos em que temos apenas arranjos percussivos ou rush, você precisará usar a sua sensibilidade para definir caso a caso se a leitura será lenta ou rápida.

Rush – Vibração veloz feita com os dedos sobre o instrumento de percussão, resultando em um tremido sonoro que causa a sensação de suspense. Usado antes de viradas impactantes ou finalização de músicas.


A leitura do momento rush da música poderá ser feita com shimmies, lentos ou giros, dependendo de como o arranjo musical é feito e do que vem antes ou depois deste momento, na intenção de criar contrastes.

No mesmo vídeo postado à cima, em 5:23 vemos as dançarinas dançando o rush com movimentos lentos e bem no finalzinho da apresentação, fazendo um círculo com o braço para indicar o final.

Neste outro vídeo, do grupo FatChance BellyDance, vemos uma leitura de rush diferente em 1:36: O rush está sendo tocado por cima de uma base rítmica e a dançarina líder começa a leitura com movimentos rápidos pequenos como Shoulder Shimmie Combo e Pivot Bump e em 1:51 muda para movimentos lentos, quando temos uma mudança na intenção em que o rimo de base é tocado, criando um contraste e preparando para o próximo momento da música.



Para a leitura de arranjos, de frases musicais, suas variações e repetições, você vai precisar avaliar o solo como um todo. Perceber quantas repetições de cada frase, onde a música pede mais impacto visual na movimentação, onde acelera, onde ralenta, onde você pode criar contrastes.

Faça um mapeamento do seu solo e conte quantas vezes cada frase se repete, a partir daí pense que movimentos ou combinações de movimentos podem combinar com as frases e suas transições.

Vamos pegar como exemplo este vídeo do Fat Chance BellyDance de 2016, a partir de 9:22, onde começa o solo de percussão:




Vejamos o mapeamento do primeiro minuto de música e as escolhas de leitura destas dançarinas que claramente estudaram a música muito bem:

1 - Ritmo Bambi tocado por 16 vezes. Ritmo 4/4 - 64 tempos.
Nas 8 primeiras repetições do ritmo (32 tempos) elas giram em roda, nas próximas 8 repetições fazem Turkish Shimmie.

2 - Entra ritmo fallahi com arranjo percussivo de 8 tempos, tocado por 4 vezes – 32 tempos
As dançarinas escolhem Chico Passing que se encaixa perfeitamente nos 32 tempos e tem a energia do arranjo.

3 - Ritmo fallahi, com arranjo percussivo trabalhado nos floreios em 8 tempos, tocado por 4 vezes – 32 tempos
Dançarinas escolhem fazer por duas vezes o Shoulder Shimmie Combo (descendo na repetição) para leitura dos floreios.

4 - Ritmo fallahi, porém com ênfase na batida forte no primeiro e terceiro tempos, tocado por 4 vezes – 32 tempos
Dançarinas escolhem Egyptian Basic, Calibrated Spins e Arabic with a Double Turn.

Da forma como fizeram a leitura, as transições foram precisas e as intenções da música foram muito bem representadas.

Um solo de derbake bem dançado prende a atenção do público e tem um impacto positivo na apresentação de ATS®, porém fazer escolhas interessantes sem se atrapalhar na leitura pede que as dançarinas conheçam muito bem a música e tenham bastante agilidade.
Tome cuidado para a leitura não ficar linear, parecendo que a música não proporciona variações.

Se for a primeira vez que você e seu grupo vão apresentar determinado solo, permita-se coreografar, se achar que é preciso, para ter a estrutura da música bem estudada e garantir que o resultado será satisfatório. O melhor é deixar para improvisar aquelas músicas que vocês já conhecem muito bem e quando as dançarinas já estão bem seguras dos movimentos e da agilidade para fazer as transições sem se preocupar.


Confira as demais partes da apostila:





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