[Folclore em Foco] Tribal – Fundamento e estilização

 por Nadja El Balady


O estilo tribal de dança do ventre está interligado à sua matriz popular / folclórica? 


Oi, eu sou a Nadja El Balady e neste artigo eu gostaria de apresentar a você minhas reflexões a respeito deste tema. Por isso mesmo, escrevo em primeira pessoa: Trata-se do meu ponto de vista atual. Pontos de vista são dinâmicos, podem e devem mudar conforme evoluímos, mas acredito ser esta reflexão pertinente no momento.

A primeira coisa que eu preciso colocar é que entendo que o estilo tribal é dança do ventre. Pode até deixar de se chamar tribal, mas jamais deixará de ser dança do ventre. Há 15 anos quando comecei a estudar o estilo, esta dúvida existia entre muitas dançarinas aqui no Brasil e por outro lado, este assunto também é debatido dentro dos círculos pensantes do estilo tribal americano (ATS® ou FCBD®), mas acredito ter sido abafado pelo debate a respeito da palavra “tribal” enquanto definição de nomenclatura. Este estilo inequivocamente se fez, se difundiu e se firmou enquanto mercado sob o pavilhão da dança do ventre. Com o termo dança do ventre (FCBD® – Fat Chance BELLY DANCE®). Com os figurinos e acessórios da dança do ventre. As famílias de movimento que fundamentam o estilo desde a sua origem, são todas relacionadas à dança do ventre. É preciso que se compreenda que todos os estilos de dança do ventre são provenientes do folclore árabe. Todos os estilos de dança do ventre se originam da estilização das danças populares árabes do norte da África, principalmente. Neste ponto, o estilo tribal americano não é em nada diferente da dança do ventre moderna egípcia, da brasileira ou do estilo cabaré americano. O que conhecemos como “dança do ventre” é a própria ação de estilizar as danças populares/folclóricas árabes. Então, tribal é sim dança do ventre, resultado de um processo antigo e profundo de apropriação cultural.

Entendo também que o termo “estilo tribal de dança do ventre” serve tanto para o estilo tribal americano quanto para a fusão tribal (tribal fusion) e que pode abraçar também a dança do ventre fusão (fusion belly dance). Falaremos sobre a dança do ventre fusão um pouco mais à frente, mas é importante o entendimento de que não me refiro a qualquer fusão com dança do ventre, me refiro a um estilo específico de dança do ventre fusão dos Estados Unidos, advinda da fusão tribal, compatível com seu vocabulário de movimentos, que tem coreógrafas que vieram desta vertente e que frequentam o mesmo meio, os mesmos eventos e festivais.

É possível também estender o termo para abraçar a dança do ventre que serviu como background para o surgimento do estilo que, por algumas pessoas, é também conhecida como “pré tribal”: O estilo do grupo Bal Anat na década de 70, criado por Jamila Salimpour, ampliado pela sua filha Suhaila Salimpour e que é fundamento técnico inequívoco tanto para o estilo tribal americano, quanto para a fusão tribal.


É pelo entendimento do estilo tribal como uma vertente da dança do ventre que abordo o tema deste artigo. Enquanto professora de dança do ventre “tradicional” (conectada à cultura árabe), estou questionando meus métodos de ensino de ATS® e tribal fusion. Até muito pouco tempo, minha metodologia de ensino era baseada na minha formação enquanto FCBD® Sister Studio e também nos inúmeros workshops, cursos e imersões que fiz sobre ATS® e tribal fusion. Apesar de estudar danças populares árabes desde o início da minha carreira e de estar falando sobre as origens folclóricas do estilo tribal há anos, só a partir deste ano de 2020 comecei realmente a incluir aulas específicas a respeito destas danças nas minhas aulas de tribal. Estou considerando cada vez mais importante, não só falar na teoria, mas apresentá-las na prática para as novas dançarinas.

A conexão entre as diferentes vertentes da dança do ventre e suas danças populares matrizes, para mim, sempre foi muito clara, por ser eu estudante de danças populares e folclóricas ao longo de toda a minha vida profissional na dança. Entendo agora que esta correlação não é assim tão clara para todos.


Acredito que se você estuda determinada modalidade de dança étnica, é interessante que você busque se aprofundar em elementos da origem, da história desta modalidade. É interessante também que você procure compreender os aspectos culturais e sócio econômicos que influenciaram aquela história, as transformações pelas quais possa ter passado esta modalidade de dança (talvez) tão antiga quanto a existência humana.

Mesmo que a dançarina não se interesse especialmente pelo assunto, que dance para se divertir e não goste de fazer pesquisa, é importante que saiba que se ela faz shimmie, se faz ondulações, twists, oitos e batidas de quadril, a base fundamental da sua expressão artística é popular/folclórica.


Danças populares e danças cênicas

Danças populares são manifestações espontâneas e tendem a se firmar enquanto tradição dos povos de todo o mundo, em todas as regiões do planeta, independente de religião ou sistema político. Danças populares são correlatas à geografia, hábitos e saberes adquiridos pelos povos em suas regiões de origem. São afetadas pelas questões sócio econômicas e muitas vezes modificadas pelo processo de dominação colonizadora. Nem toda dança popular assume status de folclórica, mas toda dança folclórica é popular. Danças populares são expressões de povos nativos, são tradições vivas e parte fundamental suas identidades, praticadas em festas, datas comemorativas, rituais sociais e religiosos. Normalmente toda a comunidade participa e são danças de conhecimento popular.

Danças cênicas são modalidades destinadas ao espaço cênico: o palco. São modalidades virtuoses e consideradas como arte pela a sociedade culta e dominante. A dança cênica primordial que, sem dúvida, serve de base para todas as outras danças cênicas é o balé. Muitas outras modalidades surgiram a partir do balé, ou mesmo de sua contraposição, de sua desconstrução. Danças cênicas são, geralmente, praticadas por pessoas socialmente privilegiadas, pois é preciso investimento de tempo e dinheiro para aprender e se manter praticando uma dança cênica. A profissionalização leva longos anos de estudos e dedicação intensa.

Existe uma intercessão muito importante entre as danças populares e as danças cênicas: Quando a dança popular é levada ao palco com o status de arte. Hoje em dia é comum vermos manifestações populares levadas ao palco, existem fóruns, congressos e festivais dedicados ao folclore de diversas danças do mundo. Existem grupos de cultura popular que são contratados para circuitos de eventos e espetáculos. Nos festivais de dança do ventre, sempre temos apresentações de folclore árabe. No Egito, o mais célebre artista a encenar a cultura popular egípcia no palco, na televisão e no cinema, foi o coreógrafo Mahmoud Reda.


Sem aprofundar em teorias antropológicas, existe um aspecto positivo que influencia aquele que faz cultura popular a levar sua expressão artística para o palco: Reconhecimento. Se este reconhecimento vier em forma de dinheiro, de forma que o artista popular possa tirar dele o seu sustento, teremos ainda o benefício de valorização de todo uma população se reconhecendo e afirmando sua autoestima.

O fato é que quando uma dança popular sobe ao palco, ela se modifica. O público, que em manifestações populares genuínas, é parte ativa e integrante da dança, agora assume papel passivo de espectador. As movimentações passam a ser pensadas, coreografadas, com posicionamento de cena de modo a favorecer a visão deste público. Tudo é modificado, de movimentos a figurinos, de cenário a expressão. É neste momento em que surgem as estilizações.

Inúmeras danças populares passaram por este processo de estilização ao redor do mundo, inclusive as danças populares de periferia do Egito, que deram origem à dança do ventre.


A dança do ventre e sua origem estilizada


Não vou me alongar a respeito do processo de estilização das danças populares egípcias e a consequente história da dança do ventre no Egito, existem muitos, muitos textos a respeito disponíveis, mas acredito que este é um ponto crucial para o entendimento da dançarina da atualidade. A dança do ventre como a gente conhece é fruto da estilização de diversas danças populares em uma só modalidade, que aos poucos foi ganhando mais e mais influência de danças cênicas como balé e dança moderna. Esta influência foi se intensificando cada vez mais com a presença de coreógrafos e dançarinas provenientes da elite social egípcia (como o já citado Reda). Quanto mais próximo à elite, maior a influência estética cênica, principalmente ao longo do período conhecido como “era de ouro” do cinema egípcio (1920 – 1970). A dança do ventre como conhecemos surgiu, por tanto, como uma dança popular estilizada, entre o final do século XIX e o início do século XX, proveniente dos espetáculos de entretenimento no Cairo visando estreitar relações entre a elite social egípcia e os colonizadores europeus, durante o período da dominação inglesa.

É preciso também compreender que neste mesmo período, a dança do ventre se espalhou pelo mundo, no contexto orientalista das feiras universais, dos cabarés franceses e dos espetáculos de vaudeville nos Estados Unidos. Em cada lugar a dança foi estilizada ao sabor das circunstâncias locais, se adaptando a expectativa do público de cada cidade, modificando movimentação, uso de acessórios e figurinos de acordo com as condições culturais, sociais e econômicas de cada dançarina, de cada região, de cada país onde foi apropriada como forma de arte e entretenimento, sem preocupação de preservação de tradições ou origens populares.

Acrescentamos a este contexto a utilização de culturas “exóticas” pelos cineastas de Hollywood, difundindo para todo o mundo uma dança do ventre sensual e erotizada, cujo propósito seria impressionar e seduzir homens, dançada por mulheres de reputação questionável.

A história da dança do ventre no ocidente tem mais de um século e é a história de uma dança étnica, porém cênica, estilizada, adaptada, modificada, com mil faces, pois nós ocidentais temos um ponto de vista totalmente diferente a respeito da dança em relação à forma como é vista no oriente. Aqui no ocidente, a dança pode ou não ser profissão, você pode fazer como uma atividade física, como terapia, como forma de conexão ao sagrado. Você pode dançar por anos e nunca realmente chegar a viver da dança. Diferente de alguns países como o Egito, por exemplo, lá esta prática da dança do ventre em sala de aula não é comum, não se dança regularmente como prática amadora ou como hobbie. Dificilmente uma mulher egípcia terá uma profissão qualquer e também ser dançarina. Quem estuda oriental dance ou raqs shark, é profissional, trabalha com isso e tira desta atividade todas as vantagens e desvantagens que podem vir da prática da dança no oriente. Mas isso é papo para outro artigo.

De todo modo, é preciso deixar claro que a dança do ventre nos países árabes é praticada no contexto social de formas diferentes: Tanto no espaço da cultura popular como celebrações, festas e rituais (como casamentos, por exemplo), quanto no contexto cênico de arte e entretenimento: Restaurantes, festivais, teatros, cinema e televisão. No ocidente, a dança do ventre assume exclusivamente o contexto cênico, exceto em celebrações de comunidades imigrantes árabes, turcas e afins.

A dança do ventre cênica se desenvolveu na busca de um refinamento estético, não só na movimentação, mas também na música e nos figurinos. O figurino de uma dançarina de raqs shark é totalmente diferente dos figurinos das suas fontes nas danças populares, em relação aos modelos e materiais utilizados para confecção. A dançarina oriental busca a elegância e a riqueza da identificação com as classes sociais dominantes, enquanto os figurinos das danças populares (mesmo de palco), tendem a refletir os costumes do povo da periferia.


Fusão. Sim, ou com certeza?


Ao longo do século XX, o contexto da dança nos Estados Unidos produziu um tipo de dança do ventre que conhecemos como “cabaré americano” e o tribal é fruto direto da estilização folclórica dentro do estilo cabaré americano. Dançarinas estadunidenses criaram uma conexão entre elementos das danças populares ciganas, beduínas e berberes e seu próprio ponto de vista a respeito da cena. Todo um contexto estético foi criado a partir desta estilização, incluindo elementos como figurino, cenário, acessórios, música e vocabulário de movimentos que reúnem referências populares diversas. Uma dança cênica, advinda de muitas estilizações de refinamento cênico, que passou a buscar nas danças populares e folclóricas a sua inspiração estética: Um mergulho em busca de um imaginário coletivo sobre o oriente, procurando uma outra forma de exercer a coletividade, de algo que pudesse evocar uma memória ancestral e renovar o fazer da dança do ventre em um novo sentido mágico, para uma nova feminilidade que despontava na Califórnia da década de 70.

O estilo tribal, nasceu fusionado e foi agregando cada vez mais elementos de fusão ao longo de sua evolução enquanto estilo. À mistura dos elementos estéticos das danças do norte da África foram adicionados movimentos e posturas de flamenco, além de elementos de danças tradicionais indianas. A estilização foi perdendo cada vez mais a conexão com o universo popular árabe de origem, passando a abranger elementos de figurino e musicalidade de diversos lugares do mundo. A partir da década de 90, a fusão tribal absorveu elementos das danças urbanas dos EUA e renovou a conexão com o estilo cabaré americano através de uma abordagem vintage, mas ao mesmo tempo contemporânea, buscando a inovação e um novo olhar sobre a cena, trazendo teatralidade, temas, personagens, músicas eletrônicas, se distanciando cada vez mais do contexto cultural popular e folclórico matriz.

A dança do ventre fusão que nasceu nos anos 2000 é uma linguagem cênica, construída a partir de elementos étnicos muito estilizados, que se desconectou quase completamente da estética tribal de onde surgiu. Embora mantenha em seu vocabulário essencial movimentos como tremidos, twists, sinuosos e batidas típicas da dança do ventre, de trabalhar a postura e braços do estilo tribal, ela absorve cada vez mais elementos contemporâneos, de danças urbanas e outras modalidades cênicas. A fusão não tem compromisso representativo de nenhuma etnia específica e é um campo aberto para a inovação e criatividade.


Qual a importância de se conhecer as raízes populares

O problema maior da ausência de conexão com o contexto popular originário reside, principalmente, na questão da apropriação cultural. Gerações de dançarinas de dança do ventre tribal e fusão estão sendo formadas como profissionais da dança ignorantes do contexto cultural a qual estão afeitas. Não conhecem música árabe, não reconhecem ritmos, não têm ideia da história da dança fora dos Estados Unidos, não sabem por que usam os movimentos do estilo a não ser pela questão do virtuosismo e beleza estética. Estas dançarinas não podem retornar às populações de origem o reconhecimento devido, não podem citar as danças populares matrizes de sua prática, não sabem quem são os ícones e mestres da cultura popular de onde vieram os fundamentos primordiais da estética de sua modalidade.

O estudo das danças populares reforça a prática da técnica de quadril, da técnica de abdômen, de movimentos de torso, amplia o vocabulário de movimentos e a possibilidade de criação coreográfica a partir destes elementos fundamentais. Quem conhece a fonte, dança melhor.


Urge que a dançarina de fusão se conecte com os fundamentos populares, é preciso que ela saiba identificar na sua linguagem aquilo que é ancestral, daquilo que é contemporâneo. É preciso que ela conheça a forma como vivem os povos nativos do norte da África, da Índia e de outros lugares de onde vieram os elementos estéticos que fundamentam a sua arte. É preciso que ela honre estas culturas, que lhes retribua reconhecimento, que pelo menos reconheça sua música, saiba o nome de suas danças folclóricas.

É preciso que a professora de estilo tribal e fusão ensine a respeito destas questões em sala de aula, que saiba dizer as famílias de movimento que fundamentam o estilo e a origem destes movimentos, que saiba quem são as ghawazee e as ouled nail, que saiba os quais movimentos de estilo vieram da dança beduína, flamenco, ou da dança odissi. Que saiba quem foram as dançarinas da era de ouro, além dos próprios ícones dos estilo, nas décadas de 70, 80 e 90 nos Estados Unidos. Que saiba fazer a ponte entre os novos e os antigos saberes na dança.


Estilização


Estilizar é um processo natural e não diz respeito apenas à dança, mas a todas as artes. Acontece há muitos séculos, na história da humanidade. Enquanto artistas, podemos usar diferentes elementos cênicos como ferramenta de criação. Faz parte da nossa própria construção estética, da nossa história corporal, é resultado da nossa cultura, do nosso momento, do nosso recorte da realidade.

Enquanto dançarinas cênicas, profissionais e estudantes de dança, podemos tentar reproduzir danças originais, mas sempre iremos esbarrar na questão da corporeidade. Porque um corpo construído em condições culturais diferentes, reproduz diferentes sotaques, diferentes modos de fazer. Para reproduzir fielmente uma dança popular é preciso grande vivência nesta cultura, é preciso imersão, é preciso construir um novo entendimento de movimento, afeito exclusivamente àquela dança, àquele povo. É honesto que existam modificações em termos de transposição de determinada dança para a cena e adaptação às condições de performance. Mas é importantíssimo que em uma criação se tenha o conhecimento daquilo que é original e daquilo que foi estilizado, que a performance seja também uma porta de entrada para o conhecimento das danças matrizes pelo público comum.

É legítimo que a artista se identifique com um aspecto mais teatral ou ritual da dança, que use a dança como ferramenta de expressão das suas próprias ideias e sentimentos, que sua intenção passe por outras questões em sua linha de criação, mas a partir do momento em que sua linguagem artística vem de uma dança étnica, é importante que se encontre espaço para a busca dos fundamentos culturais à sua ferramenta primordial.

É preciso começar a dar às culturas populares seu devido reconhecimento de público e financeiro. É preciso que os festivais contratem mestres da cultura popular para ministrar palestras e dar aulas práticas, é preciso que estas danças subam ao palco mais vezes, que sua sabedoria seja conhecida, que lhes seja conferido valor. Esta mudança começa na sala de aula, com a professora de dança se responsabilizando por esta mensagem, engrandecendo a si mesma e a suas alunas com conhecimento e entendimento sobre a sua função na mudança da realidade.


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Folclore em Foco


Nadja El Balady (Rio de Janeiro-RJ) é diretora do grupo Loko Kamel Tribal Dance e proprietária do Oriental Studio de Dança no Rio de Janeiro, dedicando-se há 21 anos a estudar danças orientais. Professora de Dança do Ventre, American Tribal Style® e Tribal Fusion, com experiência internacional na Europa em shows e workshops. Estuda o Estilo Tribal desde 2005 e é uma das pioneiras da Fusão Tribal Brasileira. . Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >> 
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