por Nadja El Balady
A
Influência do Folclore Árabe na Formação do Estilo Tribal
Parte
1 - Dança do Ventre X Estilo Pré-Tribal e as influências “folclóricas”
Ao
abordar este tema precisamos mergulhar na história da Dança do Ventre e sua
evolução tanto no Egito quanto nos Estados Unidos. É preciso viajar no tempo. É
preciso retornar à década de 70 e tentar, através dos escritos e de imagens,
compreender o processo criativo de Jamila Salimpour e Macha Archer, duas
grandes referências do período que vamos considerar “Pré-Tribal”. É preciso
considerar a mentalidade das dançarinas da época e a cultura vigente na
Califórnia da década de 70.
Samia Gamal - Golden Age Era |
Perceber
a diferença entre a Dança do Ventre popular/folclórica, advinda do deserto e a
Dança do Ventre que evoluiu para o glamour urbano da tela do cinema e do show
business é fundamental para entender a diferença entre os estilos da Dança do
Ventre do século XXI.
A evolução da dança do ventre no
Egito, desde o final do século XIX até hoje em dia, traz
a transição da dança popular egípcia (tipicamente ghawazee e beduína) em uma
dança cênica, fusionada e glamorosa. Uma dança
totalmente voltada para entreter a sociedade urbana, consumidora de cinema,
frequentadora da vida noturna, com gostos cada vez mais refinados e
europeizados. Encontramos nos filmes antigos algumas referências à cultura
rural no Egito, incluindo suas danças e músicas, mas geralmente estas já eram
apresentadas de forma estilizada tanto em concepção musical, como em
coreografia. Esta dança, que evoluiu para o estilo egípcio moderno, que possui
grande mercado de show business e se
espalhou mundo a fora no final do século XX, é a inspiradora do estilo cabaré
americano, estre outros.
Ouled Nail |
A Dança do Ventre base, de raiz é
aquela ligada às danças populares e folclóricas de países do Norte da África e
oriente Médio e são conectadas aos hábitos dos povos do deserto e têm origem
milenar. Falamos dos povos nômades, de beduínos, berberes e ciganos. As ciganas
ghawazee egípcias, mesmo tendo já há muitos séculos se estabelecido em cidades,
têm no DNA da sua arte a estética desenvolvida ao longo das migrações pelo
deserto e intercâmbio com estes outros povos. As movimentações femininas de
povos da região do Magreb, como a dança das Ouled Nail[1],
danças populares tunisianas e apresentações nos mercados populares são
inspirações estéticas para o que vamos chamar de “dança do deserto”. Uma dança
não “refinada” no sentido urbano da palavra, que usa elementos de seus povos,
de suas vilas, de suas tradições mais antigas.
Jamila Salimpour era dançarina de
dança do ventre do estilo chamado “Cabaré americano”. Vamos tentar entender o
que é isso em poucas palavras.... As primeiras apresentações de dança do
ventre, nos Estados Unidos, aconteceram no início do século XX. Em um ambiente
estrangeiro, dificilmente a arte se mantém pura, especialmente se a ela for
agregada o talento natural que os americanos têm para show business e comércio. A dança do ventre coube naturalmente nos
espetáculos de cabaré e não demorou para que as americanas aprendessem a dançar
e o show encontrasse um formato adequado para o gosto público local. Temos que
o estilo “Cabaré Americano” evoluiu ao longo do século XX em um ambiente
multiétnico (devido a inúmeras imigrações de povos do oriente), com mentalidade
artística inovadora e voltada para o comércio com o público americano.
Nas
décadas de 60 e 70, somamos a este cenário o ideal hippie, a mentalidade da era
de aquário, através da qual uma parcela da população americana busca uma
espiritualidade conectada à liberdade do corpo e de movimento. A transcendência
através da meditação, da música e das artes. A revolução sexual feminina. Isto
tudo se encaixa perfeitamente ao que a dança do ventre pode oferecer à mulher
californiana.
Mediante
a este contexto, retornamos à Jamila. Entre as décadas de 50 e 60 manteve
contato com diversas dançarinas egípcias, turcas e armênias. Com elas aprendeu
muito de seu vocabulário de movimentos. Ao se casar com Ardeshir Salimpour, pai
de Suhaila, foi proibida por ele de se apresentar publicamente e foi quando
começou a dar aulas. Sendo uma das primeiras professoras de dança do ventre nos
Estados Unidos, Jamila compilou todo o seu conhecimento dos movimentos de
diversas culturas e criou um mecanismo onde as americanas pudessem acessar a
técnica da dança de forma racional, para que pudessem compreender e transformar
em movimentos. Adaptou movimentos, estabeleceu padrões para os toques de snujs
e criou terminologias, deu nome para os passos, muitos deles conhecidos por nós
ainda hoje em dia como “oito maia” ou “hip drop”. Ela organizou os movimentos
de acordo com as etnias de origem e é neste ponto em que finalmente chegamos ao
objeto de observação deste artigo.
Segundo
Shareen El Safy, no artigo “Shaping a Legacy: A New Generation in the Old
Tradition”, as famílias de classificação de movimentos cridas por Jamila os
dividia em “Tunisian,” “Algerian,” Moroccan” “Egyptian,” e “Arabic.” Significa que a movimentação de quadril
ensinada por Jamila possuía características étnicas baseadas em danças
populares regionais, não só nas apresentações de espetáculo ou nas dançarinas
do cinema da chamada “Golden Age of Egyptian BellyDance.”
Esta influência se torna cada vez
mais evidente à medida em que ela estrutura as apresentações do grupo “Bal Anat”
na “The Renaissance Pleasure Faire”. Criado em 1968, o grupo Bal Anat combinava
apresentações inspiradas no folclore tunisiano e magrebino com performances
típicas de cabaré americano, com uso de acessórios como véu e espadas. A
própria Jamila se encaixava nos shows sempre com lindos trajes folclóricos e
maquiagens típicas das Ghawazee ou Ouled Nail. As bijuterias, os turbantes, os
vestidos, toda uma estética de figurino e movimentação baseadas em etnias do
norte da África, na região do Saara. A própria concepção cênica lembra as
apresentações nos mercados populares de Marrakesh: Músicos em trajes
folclóricos tocando ao vivo, dançarinas no palco formando um cenário vivo, o
uso de acessórios folclóricos como cestas, jarros e mesmo serpentes. Estes
elementos traziam às apresentações do grupo um aspecto exótico, muito
valorizado na época. Com certeza, um grande diferencial no mercado de dança do
ventre da época.
Bal Anat – Influências Tribais X Cabaré Americano
No
grupo Bal Anat, analisando com cuidado, é possível perceber as duas
influências, sendo, porém, tudo considerado “Belly dance”. Para nós é
importante compreender que nenhuma delas, Jamila Salimpour, Macha Archer ou
Carolena Nericcio, precursoras, ou mesmo criadoras, do que veio a se chamar
Estilo Tribal, nenhuma delas deixou de considerar o próprio trabalho como Dança
do Ventre. Dança do Ventre, para todos os
efeitos, é de onde veio, e o que define a linha estética da formação do Estilo
Tribal, mas esta dança do ventre tribal, a mãe de todas as outras “danças do
ventre” as danças populares dos povos do deserto.
Danseuse des Ouled Nail (Algérie 1901)
Ainda
sobre o Bal Anat e o trabalho de Jamila, vamos encontrar ali diversos elementos
como vocabulário de movimentos, toques de snujs e padrões ainda utilizados como
a base do Tribal. A maioria baseados em danças Ghawazee e Ouled Nail. Vale
considerar que Ciganos, Beduínos e Berberes são povos divididos em diversas
etnias, tribos e clãs, e que têm costumes e idiomas próprios. Embora, hoje em
dia, sejam de maioria muçulmana, as tribos mantêm suas tradições da melhor
maneira possível, apesar das inúmeras dificuldades de sobrevivência
apresentadas nos dias de hoje. São considerados verdadeiramente tribais assim
como seus costumes, suas músicas e danças.
Banat Mazin - Ghawazee
Segundo
consta em diversos textos sobre a história do Tribal, Masha Archer foi aluna de
Jamila Salimpour e criou o seu próprio grupo, que dirigiu por 15 anos: A San Francisco Classic Dance Troupe. Em
sua trupe, Masha pôs em prática muito da estética Bal Anat para figurino e
dança, trazendo, porém, alguns diferenciais. A percepção é a de que Masha
derruba de vez algumas fronteiras culturais dentro da dança oriental e busca
novos elementos em que se inspirar, como o Flamenco, agregando flores e xales,
bem como uma postura bastante altiva para a dança. É dito pela própria Carolena
que no trabalho da San Francisco Classic Dance Troupe já existiam conceitos
como o de formação, de coro e “feature”
e que esta linha de trabalho foi levada por ela como base para as criações do
grupo Fat Chance BellyDance® e que foi largamente ampliada e aprimorada ao
longo do tempo de experimentações e que resultou na linguagem estética que hoje
chamamos de American Tribal Style®.
Macha Archer e San Francisco Classic Dance Troupe
O Estilo Tribal de Dança do
Ventre, por tanto, captura a estética de vestimenta e movimentação das danças
do deserto e produz um estilo novo e adaptado ao gosto ocidental com
referências étnicas diversas que se combinam de maneira inusitada com apelo
exótico e artístico. Com raízes tanto em danças tribais ancestrais como no
pensamento libertário da das décadas de 60 e 70, o Tribal traduz um desejo de
retorno à uma comunidade imaginária, feminina, livre, feliz e que encontra na
dança sua maior celebração e união. Isto tudo muito bem elaborado, estruturado,
organizado e divulgado por Carolena Nericcio e suas seguidoras que souberam bem
comercializar e difundir pelo mundo este trabalho que se desdobrou no Tribal Fusion e o mar de possibilidades
estéticas contemporâneas que surgiram a partir de então.
Fat Chance BellyDance® |