por Natália Espinosa
Uma das coisas que considerei mais interessantes da mudança no formato das aulas do FCBD® (não está sabendo? Corre lá em http://fcbd.com/class-format/) foi a mudança de nome do famigerado Puja. Todo mundo que estuda o ATS® conhece esta linda sequência de gestos. Alguns de nós fazemos todas as aulas, sempre antes de uma performance ou até mesmo durante algumas performances. Eu não conheço ninguém que seja indiferente ao Puja: todo mundo acha lindo. Talvez porque dê um aspecto sagrado e devocional à dança.
Porém, nosso Puja não tem o mesmo significado que o Puja das danças clássicas indianas. O nosso Puja não é direcionado a nenhuma deidade ou panteão, não se tratando de uma prece.
O que ele é de fato está perfeitamente resumido em seu novo nome: uma meditação de gratidão, um momento para se voltar para dentro de si mesmo e listar os motivos que você tem para ser grato, agradecer aos responsáveis por quem você é hoje e a quem ajuda a sua dança a se concretizar.
A cada etapa da meditação da gratidão, reconhecemos o efeito positivo de elementos envolvidos em nossa dança e agradecemos por eles. Vamos recordar os gestos dessa meditação, refletindo mais profundamente sobre cada um deles?
1-Trazer as mãos juntas na altura do coração e reconhecer, abrindo o braço direito e depois o esquerdo, o espaço em que se dança, tocando novamente os dedos na altura do coração ao fim do gesto:
foto por The Dancers Eye/2016 | Modelo: Wendy Allen
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2- Fazer o gesto da Flor de Lótus subindo até acima da cabeça e descendo de volta:
foto por Kristine Adams | Modelo: Carolena Nericcio-Bohlman |
É fácil entender por que a Lótus é uma metáfora perfeita da condição humana, mas, às vezes nós como dançarinos, não conseguimos perceber que é impossível passar a vida inteira ao Sol: a noite inevitável virá, e deveremos neste momento retornar à lama, ao escuro e profundo; às vezes até ao desagradável. Ocorrerão decepções, ocorrerão momentos em que não nos sentiremos bons o suficiente, cometeremos erros, vai bater aquele choque de realidade de que precisamos melhorar muito, receberemos críticas duras, chegaremos a becos sem saída com nossa técnica e a hiatos criativos. Mas se soubermos tirar alimento e força dessas situações, novamente retornaremos à luz do Sol.
No ATS®, temos nosso momento de estar no coro e estar no centro, temos nosso momento de liderar e seguir. E temos nosso momento de brilhar e nosso momento de lidar com nossas próprias limitações.
Saber transitar graciosamente entre esses momentos é a sabedoria que buscamos, tanto na vida quanto na dança.
3- Ajoelhar e tocar o chão:
foto por The Dancers Eye/2016 | Modelo: Kristine Adams
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4- Tocar as orelhas reconhecendo a música ao som da qual dançamos:
foto por Mar Morena | Modelo: FCBD |
A música é essencial para nossa arte. Eu sinto como se dançar fosse cantar a música com o corpo. Quando estamos dançando, usamos o universo particular dos músicos como estrada para a expressão da nossa própria arte! Ser grato às pessoas que fazem arte que pode somar à nossa é o mínimo.
Uma forma de expressar essa gratidão, a meu ver, é comprando as músicas. Seja o CD, seja o download, mesmo que você não possa comprar hoje a música que você quer dançar e acabe baixando ilegalmente, organize-se para comprar e apoiar a arte dos músicos. Ficamos muito chateados quando dançamos e não recebemos um tostão, não é? Se queremos que nos valorizem, precisamos nós também valorizar os artistas. Os músicos que dançamos em geral são independentes, não vendem milhões de discos, não fazem turnê internacional. Podemos contribuir comprando nem que seja uma música só, que custa 5 reais.
Agradecer aos músicos é uma excelente forma de começar a reconhecer que nosso sucesso na dança depende do esforço e suor de outras pessoas. Na vida é a mesma coisa.
5- Tocar o chão novamente, e trazer as mãos juntas à testa, na altura do “terceiro olho”:
foto por The Dancers Eye/2016 | Modelo: Carolena Nericcio-Bohlman |
Um mestre é a pessoa que compartilhou conhecimento com você, que se preocupou com a assimilação desse conhecimento por você, que se propôs a ser paciente e corrigir seus erros. Seu mestre esperou seu tempo, mas soube te motivar. Seu mestre não escondeu conhecimento de você, e desejou não somente que você chegasse ao nível dele, mas que você o ultrapassasse. Seu mestre quis que você atingisse todo seu potencial, vibrou com suas vitórias como se fossem dele, porque foram.
Muitas vezes temos professores que não são mestres – esses também merecem reconhecimento e gratidão, claro. Mas mestres são especiais. É muito difícil e solitário aprender e lapidar uma arte sem um mestre.
A cultura oriental valoriza muito o professor e o mestre, mas aqui no Brasil eu testemunho muita falta de respeito em relação a quem ensina uma arte. Simplesmente não sabemos ser alunos ou pupilos. Somos acostumados a contratar um professor como um mero veículo para nosso objetivo, isso produz alunos desleais, maledicentes, mimados e egoístas, que não percebem que o professor está recebendo dinheiro não para te dar um produto, mas para segurar a sua mão e te ajudar a passar por um processo. Alunos pulam de estúdio em estúdio falando mal dos professores que passaram por suas vidas, não creditam quem tanto fez por eles para sobressair e se colocar em posição mais elevada, ignoram os conselhos e recomendações do professor mas não se esquecem de culpá-los quando algo dá errado. E o pior: esquecem que os professores são humanos, sujeitos a tudo o que ser humano acarreta.
Algo ruim também acontece com o professor: infelizmente, em algumas áreas precisamos ser professores para conseguir viver. Isso acontece no meio acadêmico, no meio da música e também na dança. A pessoa que gosta de apenas de se apresentar e ser o centro das atenções vai precisar dar aulas se quiser viver disso. O que acontece é que esse professor vai querer ser o centro das atenções também em sala de aula, preocupando-se mais com produzir um exército de clones do que artistas (amadores ou profissionais) livres e distintos. Ele vai desrespeitar seus alunos, falar mal deles para outros alunos e outros professores, e se sentirá ameaçado quando um aluno atingir o nível profissional.
Não há nada mais urgente, a meu ver, que lançar um novo olhar à relação professor-aluno, ou, como prefiro chamar, facilitador-dançarino em formação. Um olhar não de análise crítica, mas um olhar de coração, um olhar emocional, como o olhar que lançamos a nossos familiares e provedores quando somos crianças, ou como o olhar que lançamos sobre uma vida pela qual em parte nos responsabilizamos. É com amor, respeito e MUITA gratidão. Essa parte da meditação precisa ser sempre reforçada, pois nunca chegamos a lugar nenhum sozinhos.
Eu particularmente penso assim, nessa hora: tudo o que sou hoje, devo a meus mestres e aos mestres dos meus mestres. Sou meramente uma ponte dessa corrente de aprendizado para novos dançarinos que escolherem dançar comigo, seja por uma hora, seja por uma vida.
6- Trazer novamente as mãos na altura do coração:
foto por The Dancers Eye/2016 | Modelo: Carolena Nericcio-Bohlman |
Eu acredito que este gesto seja muito parecido com o gesto anterior. Enumerar e reconhecer quem te trouxe até aqui e quem abriu os caminhos para que você pudesse passar é um excelente exercício de poda de ego.
Não somente nossos familiares podem ser nossos ancestrais, mas também aqueles que vieram antes de nós na família dançante. Aqueles que ousaram abrir as portas, mesmo que nem as vejamos mais ao passar por elas. Nossos Pilares. Gostamos muito de sentir que estamos fazendo algo único, e isso é especial. Inovar, quebrar barreiras, desconstruir padrões... Como artistas, sonhamos com isso. Mas não podemos deixar de reverenciar quem nos mostrou que isso é possível: os pioneiros. Existe um legado, ignorá-lo é o primeiro passo para fazer arte vazia. A arte é uma construção em si, é um trabalho de várias mentes e corações ao longo do tempo. Podemos escolher deixar nossa contribuição nesse grande monumento ou fazer um castelinho de areia só nosso que desaparecerá assim que não estivermos mais ativos.
7- Reconhecer, com o mesmo gesto do item 1, as pessoas com quem dançamos e para quem dançamos:
Às vezes torna-se difícil praticar o conceito mais simples do ATS®, que é priorizar a beleza do grupo e não a beleza do indivíduo. Ainda mais em nossa sociedade, onde mesmo em grupo estamos preocupados em “fazer o nosso”. Julgar a dança ou a personalidade da pessoa que está dançando com você, comparar dançarinos, querer estar sempre no centro ou na liderança... Tudo isso é bem normal no tipo de sociedade centrada no indivíduo dentro da qual nascemos.
foto por The Dancers Eye/2015 | Modelo: Lisa Allred |
Às vezes torna-se difícil praticar o conceito mais simples do ATS®, que é priorizar a beleza do grupo e não a beleza do indivíduo. Ainda mais em nossa sociedade, onde mesmo em grupo estamos preocupados em “fazer o nosso”. Julgar a dança ou a personalidade da pessoa que está dançando com você, comparar dançarinos, querer estar sempre no centro ou na liderança... Tudo isso é bem normal no tipo de sociedade centrada no indivíduo dentro da qual nascemos.
Só que nossa dança – e, PASME! Nosso mundo! – só funciona através do esforço coletivo, e seu companheiro de dança não deveria estar ali para te colocar em uma situação desconfortável e sim para trabalhar em conjunto por um objetivo comum.
Objetivos em comum são assustadores. Você não tem controle sobre todas as etapas do processo. Você vai enfrentar opiniões diferentes da sua, modos de lidar com as coisas diferentes do seu. Você terá a quem culpar se sentir que tudo deu errado, da mesma forma que alguém poderá se sentir no direito de culpar você . Ou seja, tudo pode dar errado. Mas quando dá certo, ah... que maravilha!
A boa notícia é que NO ATS® SEMPRE DÁ CERTO, mesmo quando algo sai “errado”. Não tem o esperado, não tem coreografia. Você tem lindos movimentos, pessoas com vontade de dançar esses movimentos e as ferramentas para transformar isso tudo em um espetáculo, compartilhando essa alegria com um público espectador. Vai dar certo, e você só tem a agradecer a quem topou entrar nessa loucura com você. Tenha sempre um sorriso e um carinho no coração para quem compartilha a dança com você. Isso é íntimo e especial.
Da mesma forma, precisamos ter a consciência de que o público que vai nos ver é o receptor da nossa mensagem. Tudo o que fizemos, nossas roupas, nossas aulas, ensaios, música, tudo se traduz nesse momento de comunicação. No final das contas, essas pessoas escolheram receber a nossa mensagem, mesmo sem saber o que vamos falar. Essas pessoas deram tempo de suas vidas, e talvez dinheiro, para receber o que temos a oferecer. Essas pessoas nos devolvem toda a nossa energia investida. Por conta disso, essas pessoas são merecedoras de toda nossa gratidão.
8- Levantar-se, juntar tudo e trazer novamente as mãos na altura do coração.
Foto de Marcelo Justino |Modelo: Natália Espinosa |
Embora essas reflexões estejam no contexto do ATS®, eu estou convencida de que podemos levá-las para até os aspectos mais corriqueiros de nossas vidas. Sugiro começarmos cada dia com uma meditação de gratidão, talvez uma criada por nós mesmos, mas que abranja todos os pontos que às vezes passam despercebidos por nós.
Obrigada a todos vocês por lerem e trocarem energia e conhecimento comigo!