12
fev
2016

[Tribal Brasil] O personagem no Tribal Brasil: uma construção multifacetada

por Kilma Farias

Tórtola, a bailarina dos pés desnudos
       Há uma tendência histórica com o Tribal de retratar Deusas que dançam, acredito que pela própria herança que nos foi deixada pelas bailarinas de vanguarda do Orientalismo americano.

Uma das mais importantes, conhecida com “a bailarina dos pés desnudos”, Cármen Tórtola Valencia desenvolveu um estilo próprio que expressava a emoção pelo movimento. Tórtola tem uma origem controversa e misteriosa, alguns diziam ser bastarda de uma família real espanhola, outros diziam que era filha de um nobre inglês, mas certo é que nasceu no início do século XX.

Tórtola Valencia -  As precursoras do Fusion já retratavam personagens
Tórtola Valencia retratava em sua dança uma releitura dos universos egípcio, indiano, figuras míticas como serpentes, deusas gregas, africanas e danças ancestrais americanas.

       A forte figura feminina Mata Hari, com também misteriosa biografia, traz ares de deusas que dançam para influenciar as construções na Dança Tribal. Diz a história que ela tomou contato com a cultura oriental em Java e percebeu o  poder que tinha nas mãos através da dança. Alguns dizem que se tornou espiã, mas foi condenada e fuzilada sem que se provasse essa afirmação.

Mata Hari trazia em seus personagens a semelhança com rainhas e princesas do Egito, e do Oriente
O fato é que sua dança ficou associada a um jogo de sedução, sendo utilizada como arma política e socio-cultural na época da primeira guerra mundial. Símbolo de ousadia e força do feminino, retrata em seus personagens como Cleópatra, entre outras rainhas, princesas e deusas.

       Para citar mais uma e ter uma trilogia, trago a lembrança da Ruth St. Denis com seu gosto e interesse pelo exótico, deusas egípcias, indianas, chinesas, balinesas entre outras. Ficou marcado em sua história seu solo Radha e sua paixão pela deusa Ísis, motivo que a levou a imergir na cultura Oriental.


Ruth St Denis dançou Radha, entre outras deusas indianas.
Na Licenciatura em Dança, na UFPB, tive a oportunidade de participar de um experimento de remontagem do solo Radha de Ruth St. Denis como parte de atividade da disciplina Teoria do Movimento Corporal, ministrada pela professora Candice Didonet. Essa foi uma experiência marcante no sentido de aprofundamento do entendimento das corporalidades e fisicidades que envolvem a construção de um personagem previamente conceitualizado.

       O Tribal Brasil também vai trazer suas deusas, rainhas e figuras míticas como modo de buscar inspiração na força e beleza de arquétipos ligados ao feminino e ancestralidade. Não que a dança pela dança e o improviso não sejam bem-vindos no estilo. Pode-se apenas investigar derivações em um padrão de movimento como por exemplo o samba.


Kilma Farias homenageando Ruth St. Denis em Radha
Mas quando falamos em construção de personagem, e principalmente se esse personagem é uma deusa, rainha, figura mítica, ou histórica datada, precisamos nos valer de estruturas técnicas para conseguirmos sucesso em nosso desafio.

No Tribal Brasil já trabalhei personagens históricos como Maria Bonita e Salomé, também figuras míticas como a Jurema, mas é nos Orixás Iemanjá, Iansã e Oxum que essa construção pode ser observada melhor no sentido das intenções de movimento e atitudes geradas pelo personagem.

Laban nos diz que:

Deuses que flutuam acima das águas demonstram no ritual, ou representação pictórica, uma atitude complacente em relação aos fatores de Tempo, Peso e Espaço no movimento. Flutuar é um movimento leve e flexível que espelha um estado de espírito de semelhante conteúdo. (LABAN, 1978, p. 44)

Flutuar sobre as águas pode ser um forte aliado na construção do personagem Iemanjá. Flutuar é umas das oito Ações Básicas denominadas por Laban e que é definida por movimento de tônus leve, tempo sustentado e trajetórias indiretas, multifocais. Sendo assim, para construir personagens das águas salgadas como Iemanjá e sereias, o bailarino pode se valer desse estímulo inicial do flutuar e contrastar com o que mais sua imaginação sugerir.

A Ação Básica de sacudir me levou a explorar possíveis caminhos para a construção da minha Iansã. Vejamos o que diz Laban sobre essa ação:

As resplandecentes divindades da alegria e da surpresa são frequentemente caracterizadas, nas danças, por movimentos de sacudir e fremir. Aqui a sensação de leveza se casa a uma indulgência com espaço, que é evidenciada na flexibilidade e na plasticidade dos movimentos. Aparições e desaparições súbitas conferem aos movimentos de sacudir e fremir a sua luminosidade (LABAN, 1978, p. 45)

“Aparições e desaparições súbitas” – o vento sopra aonde ele quer. Assim é Iansã e suas mudanças repentinas que vão do vento à tempestade. A lei maior em Iansã é a mudança. Daí a necessidade de buscar movimentos mais ágeis, mudanças de temperamento e intenção de movimento que produzem natural estado de alegria, estimulado pelos shimmies e músicas de batida crescente.

O sacudir é uma ação que envolverá movimentos de Tempo súbito, Peso leve e deslocamentos indiretos, flexível. Um bom exemplo são os giros, pois tanto geram deslocamentos com trajetória em espiral, simbolizando o próprio furacão, como literalmente produzem vento no palco.


Para Oxum, identifiquei a Ação Básica de deslizar, assim como a água desliza entre si mesma e o lodo nas profundezas dos rios. Laban nos diz que deslizar é um:

[...] movimento sustentado e direto com toque leve. Ao deslizarem, o homem e sua divindade envolvem-se na experiência da infinitude do tempo e da cessação do peso da gravidade, embora estejam ambos atentos para a clareza dimensional de seus movimentos. (LABAN, 1978, p. 44)

Ser clara e direta nos movimentos, buscando ausência de peso através de trajetórias contínuas de linhas de braço, por exemplo. Gerar experiência da cessação do tempo é possível através de uma música sem muitas variações, onde a brincadeira do variar acontece no movimento, causando a sensação de que o tempo parou, de que a bailarina dançou tanto, mas a música ainda está lá da mesma forma, suspensa no espaço.


Esse recurso musical é bastante utilizado nos rituais religiosos que envolvem dança, de linha Afro-brasileira. Os toques dos Orixás e pontos, assim como cânticos indígenas, buscam suspender o tempo, manter os participantes na sensação de infinitude, a sensação do tempo eterno que não mais corre, mas se faz unidade com o ser que dança.

Esse deslizar, pela música e pelo espaço, pode ser um inspirador ponto de partida para se trabalha Oxum, assim como outros personagens das águas doces como a Iara ou Mãe D’água, Ondinas e Nereidas.


Mata Hari

Uma boa pesquisa musical também está atrelada ao sucesso do seu personagem, assim como a livre escolha por não ter música alguma. O importante é que a música consiga extrair de quem dança um algo mais além dos movimentos corporais meramente físicos. O bailarino precisa ser a música e para isso precisa ser tocado profundamente por ela. Na maioria das vezes, a música nos escolhe.

       A inspiração pelo sentido da visão também se faz necessária. Pesquisas de imagens seja pintura, escultura, em vídeo, do Orixá no terreiro: tudo é material disparador da construção do seu personagem. Alie a essa pesquisa sua vivência pessoal de movimentos. Seus momentos de brincadeira no mar, desde a infância até hoje em dia. A lembrança do vento bagunçando seu cabelo, os banhos de cachoeira e rio, o sentir das pedrinhas redondas sob os pés. Transforme essa memória em dança e com certeza estará nascendo a sua leitura pessoal do personagem.



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