[Venenum Saltationes] Desvendando - com Lucile Bier

por Hölle Carogne




O primeiro Desvendando de 2016 traz um trabalho muito intenso e à flor da pele...
Eu pude ver com meus próprios olhos a construção desta coreografia e me emocionei todas as vezes que vi...A coreografia ainda não tem nome, pois faz parte de um processo pessoal em construção... A bailarina gaúcha Lucile Bier nos conta um pouquinho sobre sua história de vida e o que há por trás deste trabalho tão inquietante e, ao mesmo tempo, tão belo.

Lucile, seja bem-vinda! É uma honra ter teu trabalho compartilhado na Venenum Saltationes! <3
  
  
Meu nome é Lucile, sou geógrafa e bailarina, estudos que cultivo desde a mesma temporalidade Comecei a dança do ventre em 2007 e o tribal em 2011. Faço parte do Grupo de Dança Zahira Razi, da professora Fernanda Zahira Razi. Participar desse grupo foi/é uma experiência extremamente enriquecedora, pois além de todo o talento e trabalho de expressão única da Fernanda, ela permite e incentiva a busca de nossa própria identidade na dança, sem repetir seus padrões, de forma que as aulas servem como uma canalização desse processo e não a sua reprodução. 


Venenum Saltationes: Quando e como surgiu a vontade de criar este trabalho?

Essa coreografia surgiu como uma necessidade urgente de expressão em meio a um ano super turbulento. Na verdade, a primeira vez que ouvi essa música fiquei bastante tocada, mesmo assim nem imaginava dançá-la. Um tempo depois, surgiu uma apresentação do Grupo Zahira Razi no bar Rock'N'Soul, em Porto Alegre/RS. Pra variar, estava sem tempo de montar alguma coisa e, como muitas vezes, optei pelo improviso. Escolhi essa música no mesmo dia (ou um dia antes, não lembro ao certo) da apresentação, pois estava na mesma vibração que eu naquele momento; e ao ouvir outras para seleção, nenhuma me dava vontade de dançar, mesmo aquelas que gostava. Marquei somente o início e fim da coreografia. Nem lembro ao certo como dancei, mas tenho certeza que a música percorreu alguns processos que estavam difíceis de encarar. Ao final da apresentação, algumas pessoas vieram falar comigo, que tinham se emocionado ao assistir essa dança. Isso me tocou, até porque não é uma música que tenha um clima de bar, e a recepção foi a melhor possível.

Bem, a partir de então, decidi que mudaria um pouco o que vinha fazendo com a dança. Sempre me considerei uma bailarina de grupo, pego rápido os movimentos e tenho facilidade em gravar uma coreografia. Entretanto, quando tinha que apresentar um trabalho autoral era sempre problemático. Sou muito crítica em relação ao que faço, e isso me atrapalha bastante. Acho que as artes em geral tem que se comunicar com quem a recebe, de forma a promover uma sensibilização, reflexão ou crítica. A questão do “ficou bonito” me incomodava nas minhas coreografias. Isso fica claro quando vejo que fazia coreografia para os outros, pensando em algo agradável de se olhar. Sou bastante reservada em relação a sentimentos e mantinha distância em externalizá-los através da dança.

Essa coreografia foi um aprendizado. Antes, preocupava-me muito a técnica, a execução dos movimentos. Ali, permiti que a dança fluísse conectada ao que sinto, e consequentemente, à autenticidade de estar presente. Nota-se que a movimentação em si é bastante simples, pois permiti que essa fosse uma preocupação secundária pela primeira vez. 


  
Venenum Saltationes: Do que se trata este trabalho? Qual o assunto abordado?

Esse trabalho ainda está em desenvolvimento e esse é um dos motivos de não tê-lo nomeado ainda. Há muito do que o alimenta presente em mim atualmente, e projeto que seja ao mesmo tempo mais livre num âmbito geral e mais detalhado musicalmente.

Trata-se de enfrentamentos que tive que lidar em 2015. Fala de redescobertas, de percorrer um caminho novo, cheio de novidades, de projetar-se de forma realista. É, sobretudo, um aprendizado, de sentir-se responsável pelas provocações, mas também se assustar com a repercussão delas. Fala também de decepções, de fugas e descaminhos.

Posso dizer, assim, que o assunto abordado é um recorte da minha trajetória individual, que vinha se delineando, e que sempre houve espaço para escapar. Então chega aquele momento em que estamos pressionadas/os e resolvemos encarar determinada(s) situação(ões).



Venenum Saltationes: Existe alguma linguagem oculta por trás dele?

Existe uma energia latente, que trata dos aspectos mais humanos ecarnais em amplo sentido. Desnudar-se de práticas sociais, aceitando-se e, da mesma forma, compreendendo as limitações do eu-eu, eu-outra pessoa e outra pessoa-eu. Dessa forma, a linguagem oculta é energética, ou seja, as frequências de sentimentos e práticas que percorremos para atingir algo ou que experimentamos ao sermos atingidas/os. 

  
Venenum Saltationes: Com quem tenta se comunicar? E o que quer dizer?

Essa é uma questão bastante difícil de responder e o próprio retorno que tive reflete isso. Assim, acredito que emiti uma mensagem, que neste caso não elaborei intencionalmente, e cada pessoa que assistiu a captou de acordo com suas vivências ou por aquilo que compartilha diretamente comigo.

Contudo, de um modo geral, creio que a comunicação é com as pessoas que enxergam uma dualidade no agir da própria existência ou em algum momento específico. Por isso, o contraste, a meu ver, entre momentos de entrega à música, e outros desalinhados ou marcados junto a uma expressão agônica ou neutra nessa coreografia. Explora-se desde a beleza das movimentações que podem remeter ao prazer dos sentidos de forma natural ou ao ego, assim como torna visível um lado obscuro, que não significa fomentá-lo por trazê-lo à tona, ou monótono/ insensível do cotidiano.

Portanto, ela diz que há diferentes tipos de energias que experimentamos, com as quais jogamos de acordo com nosso interesse e resistência.Trata-se de trajetos, enfrentamentos que reverberam em nós e a postura que adotamos perante essas dificuldades.Ou seja, algumas rupturas e (re)começos que mudam nossa frequência energética. 



Venenum Saltationes: Comente sobre os processos de criação desta coreografia.

Como havia apresentado uma coreografia improvisada com essa música e tinha pela frente uma mostra de dança do Grupo Zahira Razi, resolvi dar sequência a essa proposta e recomeçá-la. Basicamente resgatei três situações distintas, duas correlacionadas e uma turbulência pessoal paralela a tudo isso, com suas sensações e perspectivas.

Recorri a lembranças marcantes, ainda tão presentes, transformando-as em movimentação, que refletem um roteiro não-linear dos acontecimentos. Linearmente, parte-se de um acordar para esta realidade, cheia de encantamentos, permitindo-se desfrutá-la plenamente. Segue a emersão dos problemas advindos de escolhas e um brincar/esconder dentro dessa realidade, ao mesmo tempo provocando o acontecer e experimentando o pavor das cobranças e frustrações que caminham junto. Há o momento em que essas três situações convergem, quando são representadas por um distúrbio, uma vontade de fuga e negação. Após, a entrada automática de seguir mecanicamente o enfrentamento, pois não há energia disponível para lidar com todas as emoções que afloram. Ao final, o momento em que a turbulência cessa, pode-se permitir um afastamento da situação, buscando a compreensão e o amadurecimento, retirando-se das situações, dando espaço, contraditoriamente, para sedimentar um turbilhão. 


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