por Kilma Farias
Dentro do Tribal
Brasil, a inspiração vem também de arquétipos ligados às danças
afro-brasileiras. Através das Iabás
Iemanjá, Iansã, Oxum e Obá essa construção pode ser mais bem observada, no
sentido das intenções de movimento, subjetividades e atitudes geradas por cada
orixá em diálogo com a individualidade da bailarina de Tribal e articuladas com
outras hibridações de movimentos.
Sobre
a dança das Iabás no Xirê,
Denise Mancebo Zenicola afirma que
O Estudo da
Performance empresta insights
importantes e abre campo para o entendimento intercultural, oferecendo
questionamento crítico das práticas culturais nesse ritual, associadas aos
aspectos da vida cotidiana. (ZENICOLA, 2014, p. 21)
Ao
pensar aspectos da vida cotidiana, podemos trazer o que Rudolf Laban chamou de
Ações Básicas de Esforço. Estas foram estruturadas em oito ações com base na
combinação dos Fatores de Movimento – Tempo, Espaço, Peso e Fluência (ou
Fluxo).
As ações estão
presentes em danças de qualquer tipo, folclórica, clássica ou contemporânea. Um
salto provém da ação de saltar ou pular. As ações corporais são fáceis de serem
compreendidas e a composição delas é excelente forma de introduzir as pessoas à
dança. (MOMMENSOHN; PETRELLA, 2006, p. 128).
Tendo
em vista esse fácil acesso à compreensão da utilização das Ações Básicas em seu
método, optei por esse sistema de análise dentro do Tribal Brasil. Mas para
compreendê-lo, faz-se necessária uma breve explicação sobre Espaço, Peso e Tempo
dentro da teoria de Laban.
Laban
nos diz que o Espaço de um movimento pode acontecer de modo direto ou indireto,
também chamado de flexível. Quando há uma intenção clara, objetiva em mover, o
movimento se caracteriza como direto. Quando não há uma orientação clara e o
movimento se esboça como algo difuso, multifocal, o movimento é caracterizado
com flexível ou indireto.
No
que diz respeito ao Peso, o movimento pode se desenvolver de modo suave ou
firme, e todas as nuances entre os estados de tônus necessários para a ação.
Quanto maior contração muscular, mais firme; quanto mais relaxamento, mais
suave.
O
Tempo de um movimento em Laban pode ser súbito ou sustentado, e toda a gama de
variações entre essas duas proposições. Caracterizando-se como súbito o
movimento que ocorre num curto espaço de tempo; e sustentado, o movimento que
ocorre num tempo longo, dilatado.
Assim,
apresento as Ações Básicas em Laban e suas implicações com os Fatores de
Movimento Espaço, Peso e Tempo.
AÇÃO
|
ESPAÇO
|
PESO
|
TEMPO
|
Socar
|
Direto
|
Firme
|
Súbito
|
Pontuar
|
Direto
|
Suave
|
Súbito
|
Flutuar
|
Flexível/Indireto
|
Suave
|
Sustentado
|
Torcer
|
Flexível/Indireto
|
Firme
|
Sustentado
|
Talhar / Chicotear
|
Flexível/Indireto
|
Firme
|
Súbito
|
Pressionar
|
Direto/Indireto
|
Firme
|
Sustentado
|
Deslizar
|
Direto
|
Suave
|
Sustentado
|
Sacudir
|
Flexível/Indireto
|
Suave
|
Súbito
|
Laban nos diz que:
Deuses
que flutuam acima das águas demonstram no ritual, ou representação pictórica,
uma atitude complacente em relação aos fatores de Tempo, Peso e Espaço no
movimento. Flutuar é um movimento leve e flexível que espelha um estado de
espírito de semelhante conteúdo. (LABAN, 1978, p. 44).
|
Iemanjá |
Zenicola
(2014, p. 107) nos fala da dança de Iemanjá na qual identifico a ação de
Flutuar como a tônica do mover desse orixá, embora tenhamos a compreensão das
várias faces de Iemanjá, assim como as várias personificações trazidas ao
mundo, influenciadas pela subjetividade no corpo de quem a recebe. Essa
correlação oferece subsídios para que a bailarina de Tribal Brasil se oriente
pela ação de Flutuar em sua construção e seus possíveis desdobramentos,
buscando pontuar a dança com pequenos contrastes de ação.
Pode-se
ainda buscar em outras culturas representatividades que possuam simbologias
semelhantes, como, por exemplo, lendas de sereias, deidades celtas das águas, e
articular com o que é semelhante, complementar ou contrastante. A bailarina
também busca em si o que flutua. Traz de seu mundo particular, da sua
subjetividade para propor diálogos entre suas flutuações e a ação de Flutuar
presente na dança de Iemanjá.
Na
dança de Iemanjá não existem movimentos grandes, ampliados ou mesmo em alta
velocidade, possivelmente como reflexo das características do orixá; o gestual
das mãos lembra carícias na água, elemento do qual faz parte, empurrando-a para
trás do corpo. Seu deslocamento é suave, ligeiramente contido, como se
flutuasse ou caminhasse dentro da água [...] (ZENICOLA, 2014, p. 107).
Laban nos diz que desde tempos
remotos que o homem atribui sua ação de mover a impulsos divinos. Ele nos fala
que “[...] os deuses eram os iniciadores e também os incitadores do esforço em
todas as suas configurações. E, além disso, eram os símbolos das várias ações
de esforço.” (LABAN, 1978, p. 45).
Havia
deuses que talhavam, que lutavam contra o tempo e contra o peso com ligeireza e
poderosa resistência e, não obstante, eram flexíveis no espaço, ou seja,
facilmente se adaptavam às mudanças de forma. (LABAN, 1978, p.45.).
|
Iansã
|
A ação básica de Talhar aproxima-se
da tônica dos movimentos de Iansã. A mudança faz parte do repertório de
intenções desse orixá, assim como a ligeireza. Iansã é a senhora dos ventos e
tempestades, e como tal sopra aonde quer e com a intensidade que quer. Ela
chicoteia o ar dispersando energias negativas. Sobre aquele que corporifica
Iansã, Zenicola diz que
Dança
em impulsos e muda rapidamente de um a outro extremo, de humor e de desempenho
corporal, num piscar de olhos, alternando movimento retos com curvos, breves
corridas, giros em plano médio e alto, gritos. Sua dança assume constantes
gradações de mudança na qualidade de peso, que varia fortemente, caracterizada
pela mudança de força do movimento. (ZENICOLA, 2014, p. 103).
A
tônica em Iansã é a mudança. Daí a necessidade de buscar no Tribal Brasil movimentos
mais ágeis para sua interpretação, mudanças de temperamento e intenção de
movimento que produzem estados de presença variados. Um bom exemplo são os
giros, pois tanto geram deslocamentos com trajetória em espiral, simbolizando o
próprio furacão, como literalmente produzem vento no palco.
Como
já falamos, o Tribal propõe fusionar, hibridizar, traduzir; e esse processo se
constrói a partir do atrito entre diversas expressões culturais. Por esse
motivo, para a construção de uma Iansã no Tribal Brasil, pode-se buscar
semelhança, por exemplo, nos povos berberes que vivem em constante movimento
sendo nômades e também desenvolvem a dança com sabres, ou na tempestade de
areia do deserto, o sirocco. Ao mesmo
tempo, a bailarina deve estar sensível para perceber suas inquietações e
inconstâncias, suas mudanças de humor e fazê-las dialogar na construção da sua
Iansã pessoal pra o palco.
|
Obá
|
Já
para pensar a possível construção de uma Obá no Tribal Brasil, pode-se recorrer
à ação de Sacudir. Vejamos o que diz Laban sobre essa ação:
As
resplandecentes divindades da alegria e da surpresa são frequentemente
caracterizadas, nas danças, por movimentos de sacudir e fremir. Aqui a sensação
de leveza se casa a uma indulgência com espaço, que é evidenciada na
flexibilidade e na plasticidade dos movimentos. Aparições e desaparições
súbitas conferem aos movimentos de sacudir e fremir a sua luminosidade (LABAN,
1978, p. 45).
O
Sacudir é uma ação que envolve movimentos de Tempo súbito, Peso leve e
deslocamentos indiretos, flexível. A “alegria e a surpresa” destacadas por Laban
podem identificar-se com a virilidade guerreira de Obá e com a surpresa ao
perceber a reação repulsiva de Xangô ao vê-la oferecendo-lhe a própria orelha
cortada. Construção mitológica que sustenta a rivalidade entre Obá e Oxum,
visto que esta última havia influenciado Obá a cometer tal ato.
Obá é
considerada um orixá feminino muito enérgico [...] essa dança, assim como o
orixá, revela uma alternância característica, através da corporalidade, que ora
curva-se enganada por uma insinuação da sua rival, ora empunha uma arma à
frente do seu corpo, pronta a guerrear. (ZENICOLA, 2014, p. 110).
Ao
construir uma Obá no Tribal Brasil, pode-se, por exemplo, associá-la a Neith,
deidade egípcia que é mostrada como uma mulher atlética e ágil, também com
forte ligação com o universo da caça. No processo de exteriorização, pode-se
buscar a relação consigo mesmo, com o amor próprio, a força dentro do feminino,
o “caçar-se” a si mesmo.
|
Oxum |
Para
abordar Oxum, destaco a ação de Deslizar. Assim como a água que desliza entre
si mesma e o lodo nas profundezas dos rios. Laban nos diz que Deslizar é um:
[...]
movimento sustentado e direto com toque leve. Ao deslizarem, o homem e sua
divindade envolvem-se na experiência da infinitude do tempo e da cessação do
peso da gravidade, embora estejam ambos atentos para a clareza dimensional de
seus movimentos. (LABAN, 1978, p. 44).
Ser
claro e direto nos movimentos, buscando ausência de peso através de trajetórias
contínuas de linhas bem definidas de braço, por exemplo. Gerar experiência da
cessação do tempo é possível através da utilização de uma música sem muitas
variações, onde a brincadeira do variar acontece no movimento do corpo do
bailarino, causando a sensação de que o tempo parou, de que o corpo dançou há
bastante tempo, mas a música ainda está lá da mesma forma, suspensa no espaço.
Esse
recurso musical é utilizado nos rituais religiosos de matrizes afro-brasileiras
que envolvem dança. Os toques dos orixás, alguns pontos de candomblé, assim
como cânticos indígenas, buscam suspender o tempo, manter os participantes na
sensação de infinitude, a sensação do tempo eterno que se faz contínuo, que se
faz unidade com o ser que dança.
A
expressividade de sua dança é composta por um fluxo livre de movimentos,
leveza, um tempo desacelerado e contínuo. O fraseado coreográfico contém um
balanço específico, que inclui o aumento gradual da intensidade expressiva.
Oxum se move em harmonia espacial, usando movimentos de alcance médio, ou seja,
seus movimentos não são tão expansivos ao projetar-se para fora do seu eixo
corporal. (ZENICOLA, 2014, p. 106).
Esse Deslizar pela
música e pelo espaço pode ser um ponto de partida para se trabalhar a
construção de Oxum no Tribal Brasil. O bailarino também pode buscar pontos
semelhantes, complementares ou contrastantes com outras personalidades míticas
das águas doces como a Iara ou Mãe D’água, Ondinas e Nereidas.
Zenicola (2014, p. 110)
propõe uma tabela de atitudes e intenções de movimentos para as Iabás, não como
um modo reducionista de abordar a dança desses orixás. Mas como um ponto de
partida para o entendimento das tônicas em cada corporeidade.
|
Ação
|
Ação
Básica
|
Ação
secundária
|
Peso
|
Tempo
|
Espaço
|
Fluência
|
Iansã
|
Talhar
|
Forte
Flexível Expandida e/ou Recolhida
|
Bater Ativar Chicotear
|
Firme ou suave Enérgica
|
Súbita Curta duração
|
Direta Imediata Flexível e linear
|
Livre
|
Oxum
|
Deslizar
|
Leve Flexível Recolhida ou Expandida
|
Alisar Borrar
|
Suave Relaxada
|
Sustentada Prolongada
|
Expansão Flexível
|
Livre
|
Iemanjá
|
Flutuar
|
Leve Densa Recolhida
|
Mexer Remar
|
Suave
|
Sustentada Prolongada
|
Direta Flexível
|
Progressão Densa
|
Obá
|
Sacudir
|
Forte Recolhida
|
Roçar Agitar em trancos
|
Firme Enérgica
|
Sustentada Prolongada
|
Direta Imediata Linear
|
Progressão Controlada
|
Fonte: ZENICOLA,
D. Performance e Ritual: a dança das Iabás no Xirê, Maud X: Faperj,
2014, p. 110
Abordar
corporeidades afro-brasileiras no Tribal Brasil é antes de mover externamente,
mover o interno, a subjetividade. E essa interioridade vem atrelada há um
legado histórico de bailarinas que retratam deusas que dançam. Podemos falar de
uma possível memória coletiva dançada, tendo no corpo a centralidade dessa
experiência.
Recordar
ancestralidades e dar corpo a essas deusas é dar corpo há um processo
sociocultural de luta pelo empoderamento da mulher. É levar diversas formas de
pensar o feminino e sua sensibilidade para um lugar de visibilidade que é o
palco. Questionar o social através da arte é, para o bailarino de Tribal
Brasil, uma forma de ser no mundo e com o mundo.
Ao
tomar conhecimento das Iabás, abre-se a oportunidade de conhecer uma tradição
com toda a sua complexidade simbólica e espiritualidades atreladas. Assim, o
respeito nutre o processo investigativo dentro da pesquisa performativa.
Conhecendo, vivenciando e articulando reelaborações com o corpo, o bailarino
desenvolve uma espiritualidade através do ultrapassamento do humano ao
reconhecer-se na alteridade e ao tomar contato com visões de mundo diversas.
Desse modo, a dança colabora para a formação do sujeito pela prática de si
mesmo e pela consequente flexibilização de conceitos, através da articulação de
culturas e consequentemente de visões de mundo, compreensões de corpo e de
subjetividades.
Referências
Bibliográficas
LABAN,
Rudolf. Domínio do movimento. São Paulo: Summus, 1978.
MOMMENSOHN, M; PETRELLA, P. Reflexões sobre Laban, o mestre do movimento. São Paulo: Summus,
2006.
ZENICOLA,
D. M. Performance e ritual: a dança das Iabás no Xirê. Rio de Janeiro:
Mauad X: Faperj, 2014.
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Tribal Brasil - Identidade no Corpo
Kilma Farias (João Pessoa-PB) é bailarina, professora, coreógrafa, produtora e pesquisadora na área da dança. É formada em Licenciatura em Dança e Jornalismo pela Universidade Federal da Paraíba. Mestra em Ciências das Religiões pela UFPB, desenvolveu dissertação voltada para a relação entre presença cênica e espiritualidade na Dança Tribal. Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >>