[Índia em Dia] Ratha Yatra - a grande procissão dos Deuses rumo aos novos tempos

 por Raphael Lopes


Bom dia leitores,

Como um inveterado apaixonado pela dança Odissi e por toda a cultura milenar que cerca e enriquece essa forma refinada de arte, não poderia deixar de registrar aqui a ocasião do Ratha Yatra - a Procissão dos Carros. Esse que é um dos mais famosos festivais hindus, onde as imagens sagradas de Jagannatha (e seus irmãos Baladeva e Subhadra) saem de seu templo principal (em Puri, Orissa) e seguem em procissão em grandes carruagens para o Templo de Gundicha.

Esse festival ocorre há pelo menos oito séculos nesse formato, e muitas tradições se construíram ao redor dessa data. Como toda festividade hindu, esse festival ocorre no terceiro dia do mês lunar de Ashadha (que coincide sempre entre os nossos meses de Junho e Julho), e se tornou muito famoso no ocidente com o surgimento do movimento Hare Krishna nos anos 70, nos Estados Unidos. Inclusive, a palavra Juggernaut (massivo ou inexorável) foi cunhada pelos ingleses no início do século passado após verem os colossais carros de madeira que conduzem a procissão das deidades.

O Ratha Yatra tem ao redor de si uma série de detalhes místicos e históricos que ganham na dança uma amálgama interessante, e atualmente muitos bailarinos de Odissi (inclusive esse que vós escreve) encontram nesse festival uma plataforma para apresentarem sua arte em forma de serviço devocional nas atividades oferecidas pelos templos vaishnavas ao redor do mundo. A dança foi historicamente um dos maiores pilares nos serviços religiosos nesses templos, de modo que muitos rituais consistiam basicamente na apresentação de danças e cantos específicos, enaltecendo e celebrando as glórias e passatempos divinos.

O atual repertório da dança Odissi foi pensado em uma forma mais aberta e lúdica de se vivenciar esses ritos, na atmosfera adequada dos palcos. O que antes era uma apresentação longa e contínua, se tornou fracionada em diversos itens que contém em si partes vitais do culto religioso: a oferenda de flores, a saudação constante aos Deuses e seres celestiais, a movimentação que cria mandalas constantes no palco, etc. Uma recensão das antigas tradições do passado, que sobrevivem se adaptando aos novos tempos. 

Ainda que não sejamos mais as mesmas sacerdotisas e devotos em seu modo estritamente religioso de se experimentar o sagrado, somos os herdeiros e representantes dessas antigas tradições que são reafirmadas e trazidas aos novos tempos toda vez que assumimos - ainda que de forma cênica - o nosso papel como sacerdotes e adoradores por meio da dança. Por um outro lado é muito importante dimensionar esse papel numinoso como uma experiência pessoal e íntima, e cuidarmos muito para não nos tornamos uma caricatura ou um pastiche do que seriam essas dançarinas sagradas.... Isso sem contar no sem número de riscos que temos em segregar ainda mais essa forma de arte, criando na espiritualidade algum tipo de elitismo que distancia mais do que aproxima de fato.

É chegada a hora de lembrarmos que o Odissi não se trata de uma dança congelada na idade média hindu, e que todos nós aqui no ocidente nem poderíamos dança-la se assim o fosse. A dança é fluída, e a história só prova o quanto ela se transformou para chegar até aqui. E mais do que nunca, a pandemia nos permitiu perceber o quanto ainda estávamos patinando em ideias pre-concebidas que nem sempre contemplavam a realidade.

É muito simbólico estarmos agora nos aproximando cada vez mais de uma nova normalidade nas atividades sociais e culturais na medida em que as medidas de vacinação estão se tornando mais amplas. As atividades artísticas (que consolidaram nos meios virtuais novas formas de se produzir e discutir arte) estão como que abençoadas por Jagannatha, cada vez mais próximas de um contato real e presencial.

Mas é muito importante não perdemos essa dimensão muito clara, entre o que é a origem espiritual e como ela se desenha na prática em nossas danças.

Tome muito cuidado com professores que se colocam como Gurus (não temos nem de longe nenhum professor próximo da envergadura real desse termo), que monopolizam a relação do bailarino aluno com a dança e cultura hindus, usando a régua da espiritualidade para isso.

Tome muito cuidado com professores que proíbam a troca e o contato com outros pensadores da dança, e que contornam sua relação em tons sectaristas disfarçados de esoterismo e misticismo. 

Que saibamos referendar nossas raízes espirituais, pra além das caixinhas ou da manipulação e controle disfarçada de pureza espiritual...

Que o Senhor Jagannatha em sua procissão, nos traga novamente os dias de glória e aglomeração, onde a arte e a rua se mesclam numa grande encruzilhada em constante expansão.

Em tempos de festa, dance para celebrar.

Em tempos de crise, dance para resistir.


Até a próxima,

Namaskar.

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Índia Em - Dia


Raphael Lopes (São Paulo-SP) é bailarino de dança clássica indiana Odissi e tem levado à dança aos cenários dos Festivais e Encontros nacionais defendendo seu caráter sagrado, conscientizando as novas gerações a buscar um aprofundamento tradicional evitando a macula à essa refinada e sofisticada forma de arte. Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >> 
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