[Que História é Essa?] INTERLÚDIO - Para Entender o Contexto da Emergência do Tribal: política e cultura nos EUA no século XX

por Ana Terra de Leon

Nos últimos posts da coluna, nós nos debruçamos sobre uma fonte específica produzida pela bailarina Jamila Salimpour. Hoje, no entanto, ao invés de continuar a análise que comecei no post passado, vou discutir rapidamente com vocês um pouco sobre o contexto estadunidense e começar a abordar relações entre política, arte e história e como isso aparece no Tribal. Assim, ficará mais fácil entendermos o próximo post e vocês terão um pouco mais de contexto para compreender a análise que virá. Vamos juntes?


Vamos começar nos situando nos termos de nossa própria dança. O ATS bellydance (American Tribal Style, recentemente rebatizado para “FatChanceBellyDance Style”) é um estilo de dança contemporâneo emergido durante a década de 1980. Podendo ser traduzido literalmente como “Estilo Tribal Americano de dança do ventre”, será aqui denominado de Estilo Tribal Estadunidense de Dança do Ventre. O ATS fusiona uma série de danças diferentes em sua estética. A sua base principal é a dança do ventre, porém aparecem elementos do flamenco e das danças indianas não só em seus passos como em sua construção de figurino. 


O Tribal Estadunidense foi feito para ser dançado em grupo, de maneira totalmente improvisada. Para isso, as bailarinas e bailarinos do estilo aprendem um vocabulário de passos, alguns possuindo senha, e os grupos se organizam de maneira a seguir uma líder, que é quem guia o improviso coordenado em grupo. A liderança pode ser constantemente trocada entre as integrantes do grupo, o que cria uma dinâmica interessantíssima de coletivo. No ATS, o grupo se sobressai à bailarina. Esta característica não se constitui apenas como um critério técnico: as praticantes e suas criadoras prezam por esta concepção como uma base filosófica para a dança.


Ué, Ana, mas você não tava falando da Jamila? Por que você tá falando de ATS? Porque meu intuito discutindo o trabalho de Salimpour é que a gente consiga entender o nosso fazer nas diversas ramificações do Tribal hoje em dia. E do ponto de vista das Fusões Tribais, compreender a formação histórica do ATS é fundamental. Todas estas fusões, estabelecidas nos anos 2000, de alguma forma ou de outra, derivam do ATS - ou pelo menos tem alguma relação histórica com ele. O estilo, no entanto, como tudo que acontece na história da humanidade, não surgiu do vácuo. Para nos aprofundarmos na história do ATS e das Fusões que dele derivam (mesmo aquelas que, esteticamente, não conversam tanto assim com ele), é necessário compreender toda a efervescência cultural envolvida na história da Dança do Ventre nos Estados Unidos. E para compreender essa dança dos Anos 1980, é necessário voltar duas décadas antes: os tumultuados e, ao mesmo tempo, frutíferos anos 1960. E é por isso que estamos começando com a Jamila!


Nos anos 1960, os Estados Unidos já eram um país com plena capacidade imperialista. O país interferiu diretamente pela eclosão de uma série de ditaduras em toda a América Latina. O motivo? Bem, é mais fácil falar em motivos. Porém, para simplificar nossa vida, ressaltei aqui um só. Em plena Guerra Fria, o mundo capitalista se via interpelado com força pelo comunismo. As elites, conglomerados de imprensa e políticos liberais se viam amedrontados pela possibilidade de que a então União Soviética conseguisse, a partir do apoio às democracias latinas, influenciar estes contextos políticos e findar o capitalismo nesses países. O comunismo se assomava sobre o mundo capitalista como possibilidade de libertação para trabalhadores e trabalhadoras - que eram a maioria populacional, e ainda o são hoje. Sob a bandeira da igualdade e da retomada do poder pelos trabalhadores, inspirava lutas por independência no Oriente e na África já havia algumas décadas, e finalmente chegou do lado de cá do mundo.

Isto não seria nem um pouco interessante para os Estadunidenses, pelo simples motivo de que perderiam relações comerciais e políticas importantes com países que eram por eles subalternizados. Certamente há mais fatores que isto, mas como precisamos voltar às nossas danças, digamos que estes fatores eram os principais. Essa relação de interferência não se deu apenas na América. Países de África se viram sob os holofotes tanto da URSS quanto dos EUA, que buscavam expandir seus modelos político-econômicos para os países envolvidos nas lutas por independência. É importante lembrar que grande parte dos países africanos ainda não eram reconhecidos como independentes e travaram lutas constantes por sua emancipação ao longo de todo o século XX. O domínio colonial europeu é ainda muito recente. A independência egípcia, por exemplo, se deu apenas em 1922, e o fim do processo é datado da década de 1950!


No final do século XIX e no início do século XX, os Estados Unidos já se colocavam, a partir da ideologia do Destino Manifesto, como salvadores das nações vizinhas. Essa salvação se dava, justamente, pela presença militar. Ou seja: por meio da imposição da força, acreditavam que poderiam colaborar com a “civilização” dos países vizinhos. A política do Big Stick é um excelente exemplo desta ideologia.


 Charge “Theodore Roosevelt and his Big Stick in the Caribbean”, de William Allen Rogers, 1904.

Os EUA se constituíram, após a 2ª Guerra Mundial, como uma potência militar e bélica. Suas política de estado e economia eram fortemente baseadas no fazer da guerra e na presença militar em outros países. A ideia de que as tropas baseadas em países estrangeiros são heróis é fortemente presente na cultura estadunidense até hoje. Sabemos que o pai de Jamila Salimpour, por exemplo, serviu em uma base militar no Egito. Certamente o pai de Jamila não foi para as bases estadunidenses em países árabes para colher flores e fazer amigos.


A partir do final da década de 1950, o olhar da política externa dos Estados Unidos se voltou para o Oriente. Sem deixar de lado América Latina e África, os “ianques” começaram a se envolver nos conflitos internos orientais em relação a independência, disputas políticas e, principalmente, combater a influência soviética nos países - um caso bastante famoso é o iraniano; o filme Persépolis aborda en passant esta questão de maneira bem lúdica.


Infográfico de 2020 elaborado pelo jornal Washington Post com as bases militares estadunidenses presentes na Ásia Menor, ou “Oriente Médio”. Mais ou menos um século depois, os EUA seguem “civilizando” à força.


Mas os Estados Unidos não foram os primeiros a estabelecerem bases militares no que popularmente conhecemos como Oriente Médio. No início do século XX, a Europa se via envolvida na invasão e manutenção de uma série de territórios - incluindo África e Ásia. Conflitos nestas e sobre estas regiões, que possuía bases militares de países europeus, foram o combustível para a explosão da Primeira Guerra Mundial (comumente marcada entre 1914 a 1928).

Numa dessas bases militares, por volta de 1910 no Egito, havia um soldado siciliano que se interessava muito pelas danças populares das ciganas Ghawazee. Em Alexandria, este homem viu uma apresentação destas mulheres nas praças, e, anos mais tarde, relatou esta experiência numa carta. Posteriormente, ele e a família migraram para os Estados Unidos. A filha deste homem, ainda criança, aprendeu com ele os primeiros passos das danças destas mulheres. Essa filha, nascida Giusippina Carmela Burzi, cresceu apaixonada pelas danças orientais, vindo a ser a famosa dançarina Jamila Salimpour.

Quem dança fusões tribais conhece a história: Jamila ensinou a Masha, que ensinou a Carolena, que ensinou a Jill, e Rachel, e Mega Ghavin, que ensinaram a etc etc etc. E no meio desta história, as linhagens vão se fundindo, se separando, e fazendo emergir uma série de estilizações dentro da estilização: a dança oriental era transformada em dança do ventre cabaré, em dança do ventre de estilo tribal, e em fusão tribal. 


Jamila Salimpour começou a dançar muito nova, e já em 1948 (poucos anos após a 2º Guerra Mundial) praticava dança do ventre em cafés e restaurantes e dava aulas. Dançou tanto no famoso The Fez quanto no Bagdad Cafe, do qual foi dona. Porém, a sua criação que é frequentemente associada ao princípio do que anos depois se chamaria American Tribal Style e depois o Tribal Fusion é o Bal Anat, grupo de dança criado na década de 1960. E é a partir daqui que a gente começa a falar sobre orientalismo.


A década de 1960, como já dito anteriormente, é marcada por uma série de movimentos culturais, sociais e políticos ao redor de todo o mundo. O contato de Jamila com a cultura oriental não é um fato isolado: a cultura ocidental - especialmente a contracultura - fazia novamente incursões ao oriente e se apropriava de suas estéticas. Os Beatles incluíam a cítara em suas músicas, Jimmy Page foi à Índia e conta que conta sobre seu primeiro encontro com Ravi Shankar, os hippies se interessavam por cultura hindu e os templos budistas ao redor do mundo começam a ganhar mais adeptos.

No próximo post, vamos entender essa relação entre a cultura estadunidense e o surgimento das danças que culminaram na emergência do Tribal, voltando ao documento que analisamos nos dois posts anteriores! A minha ideia é que fique mais fácil entender que as problemáticas envolvendo a nossa dança - tanto no nome quanto nas questões de apropriação cultural  - tem relação com o próprio processo de surgimento dela. Com estes textos, espero instrumentalizar bailarines a compreender melhor a própria prática e se posicionar de maneira mais consciente e embasada. Até a próxima!


Bibliografia: 


HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX. Editora Companhia das Letras, 1995.


SAID, Edward. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia de Bolso: 2011.


SALIMPOUT, Jamila. Jamila’s Speech at the International Conference on Middle Eastern Dance, 1997. Disponibilizado por Salimpour School em: https://www.salimpourschool.com/resources/ > http://www.salimpourschool.com/wp-content/uploads/2014/12/JamilaSpeechICMEDMay1997sml.pdf.


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Que história é essa?

Ana Terra de Leon (Florianópolis-SC) é bailarina de ATS® e Dança Oriental, historiadora, com mestrado em História Cultural pela UFSC e especialista em História da Psiquiatria no Brasil. Pesquisadora autônoma, coordena o Heréticas, Grupo de Estudos sobre História da Bruxaria, e o Tribus Nexum, sobre danças orientais e suas fusões. Participa da equipe organizadora do Praksis - Simpósio brasileiro de fusões tribais e é integrante do Coletivo Hunna - Historiadoras que dançamClique aqui para ler mais post dessa coluna! >>


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