por Natália Espinosa
Quando a Natália me pediu pra escrever esse texto eu tive um misto de sensações. Algo entre “Que legal! Querem ouvir a minha história!” e “Socorro! por onde eu começo?”. E por uma brincadeira do destino fui convidada pela Laila Garbeiro pra participar da edição especial do Simpósio Práxis de fevereiro de 20121 para falar justamente de…memórias do início do Tribal no Brasil!
Foi um momento muito propício porque eu estava preparando a minha mudança pra São Paulo e todas as minhas coisas estavam à mão, no meio da arrumação do que levar para casa nova. As pastas e caixas com os certificados, recibos, flyers, credenciais de eventos estavam todas ali. Memórias físicas do que aconteceu, e não só fotos em redes sociais mortas e drives externos abandonados.
Os remanescentes de figurinos canibalizados, bases e peças que eu não me desfiz com o passar dos anos, materiais que caíram em desuso por conta das modas e preferências atuais, peças que se desfizeram ou que não cabem mais. Foi um momento bem propício pra olhar pro começo, no meio de todas essas coisas que já foram protagonistas na minha história.
E no início de tudo (pelo menos pra mim) tiveram esses dois vídeos: de um grupo de mulheres dançando no que parecia ser uma feira medieval muito animada (o palco era na frente de um rio, e tinha uma barquinho passando, nunca tinha visto uma apresentação de dança ao ar livre) e outro vídeo de uma mulher que não parecia real. Ela se movimentava de uma maneira não natural e vestia o figurino mais impressionante que eu já tinha visto (apesar da qualidade de imagem ser péssima naquela época). Depois de muito tempo eu descobri que o grupo se chamava Daughters of Durga e a mulher se chamava Rachel Brice. Cheguei a esses vídeos através de uma plataforma para artistas que eu usava na época, o Deviantart.
Depois da minha formatura como bacharel em Artes Plásticas pela UFRJ em 2004 eu fiz muitas coisas, não me contentei em traçar uma carreira apenas como pintora. Eu ilustrava, dava aulas de desenho e pintura, costurava, criava performances e arte digital, então criei um perfil nessa plataforma e entrei em contato com outros artistas de várias partes do mundo. E no perfil de uma moça da costa Oeste dos Estados Unidos eu vi o link para esses vídeos. Ela usava o nome de Danya e dançava nessa trupe Daughters of Durga, e tinha como colega Tori Halfon (ela mesma, a criadora do Tribal Massive!) em 2006. O próximo vídeo que apareceu na pesquisa do Youtube foi um solo de Rachel Brice com o percussionista Tobias Robertson em uma edição do Tribal Fest. E eu pirei mais ainda. Fiquei muito impressionada com a estética dos vídeos e me interessei em saber mais sobre aquilo.
Nessa época eu praticava Dança do Ventre por conta própria, sozinha em casa, com o auxílio de revistas, cds, e lembranças das apresentações que eu via na tv (eu morei em Foz do Iguaçu - PR dos 5 aos 17 anos, uma das maiores colônias libanesas do Brasil. Tínhamos canais libaneses na tv a cabo, eu tinha colegas libaneses na escola. A dona da escola que eu estudei era libanesa. Toda festa do folclore da escola tinha roda de Dabke. Enfim…fui exposta à cultura por um bom período de tempo, mas sem me aprofundar) E esses vídeos foram mais um incentivo para procurar aulas regulares, apesar de eu não saber bem o que era aquilo, mas achar parecido com algumas coisas que já tinha visto.
Cheguei em 2007 ao Asmahan Escola de Artes Orientais por indicação de um amigo em comum que eu tinha com a fundadora da escola: Jhade Sharif. E qual foi a minha surpresa ao encontrar no site da escola algumas fotos dela com esse figurino diferente (e até meio parecido com o das americanas) em shows da escola e em restaurantes! Achei o que eu estava procurando a um ônibus de distância da minha casa e descobri o nome daquele estilo diferente de dança do ventre: Dança Tribal.
Olhando pra essas memórias 14 anos depois me dou conta de que o que se colocava como Dança Tribal naquela época era muito mais fruto de pesquisas pessoais de profissionais expostos a essas performances, que chegavam sem explicação nenhuma e fora de contexto, (as pessoas não sabiam ainda do poder da internet de difundir conteúdo indiscriminadamente) fora a barreira do idioma. Não existia nenhum tipo de unidade nem de conhecimento do que outras pessoas faziam, e a produção artística nacional apesar de já estar ocorrendo em vários lugares, passava despercebida da maioria. A informação de que o Tribal Fusion (que foi adotado depois, pois não se fazia diferenciação) era derivado do antigo American Tribal Style (que foi difundido no Brasil muito depois) era inexistente.
Através de pesquisas numa rede popular entre as tribalistas americanas da época chamada Tribe.net descobri essa e muitas outras informações sobre o estilo e iniciei um blog que se chamou “ATS e ITS” em que comecei a traduzir informações sobre a história do estilo, os códigos de vestimenta do ATS, as diferentes vertentes de improvisação coordenada (ITS) e as últimas notícias da comunidade americana. O blog durou alguns anos, mas com o tempo e a demanda de trabalho com aulas e o atelier deixei de publicar atualizações.
No Tribe.net também conheci outras artistas americanas do estilo e no youtube e orkut descobri o trabalho das nacionais Cia Halim (SP), Kilma Farias (PB) , Nanda Najla (MG), Bruna Gomes (RS) e de Victoria Vasquez (Chile), além de Nadine Fernández (Alemanha) (que Jhade tinha acabado de convidar para workshops no Asmahan, pouco antes de eu entrar pra escola).
Meu estande do Tribes Brasil I (Tribal.fest / Festival Tribal do Rio) - 2008 |
O primeiro momento em que pude ver alguns destes nomes nacionais juntos, mais a companhia Shaman, Rhada Naschpitz e Nadja el Balady (que dividiu a produção do encontro com Jhade) e outras artistas que não fui capaz de recordar foi no primeiro encontro que ocorreu no Rio em julho de 2008. A primeira edição do Tribes Brasil (Tribal.fest / Festival Tribal do Rio). Participei como expositora no que seria o embrião do meu atelier (Nataraja Designs) e dancei com mais duas amigas de aulas no show de mostras. Depois disso tudo mudou, e novos eventos exclusivos de Dança Tribal com esse caráter de encontro começaram a surgir em outras regiões do país.
Tribal.fest / Tribes Brasil I, 2008. Eu, Sarah Bott e Carla Nar |
Foi muito interessante ver as expressões individuais das outras artistas brasileiras, traduzidas em figurinos e escolhas musicais. Acho que foi a primeira vez que vi ao vivo um figurino incorporando elementos nacionais como crochê e chitão, de Kilma, Cia Halim e das Shamans.
Naquela época a joalheria indiana importada que hoje é tão comum de se encontrar (apesar do preço) era extremamente rara, e só quem viajava para o exterior tinha acesso. Os sites de venda ainda eram poucos e muitos não enviavam para o Brasil. Mesmo as lojas de bijuterias não tinham a variedade de peças com inspiração oriental que temos hoje com a moda Boho em alta, então o impacto de ver figurinos ricos e bem feitos com produtos nacionais foi ainda maior!
Eu frequentava feiras de antiguidades e brechós pra conseguir algo interessante e conseguia verdadeiros achados, a custa de muita paciência e barganhas. Comprava bijuterias antigas, às vezes até achava alguma peça indiana legítima, roupas com tecidos interessantes para reaproveitar e acessórios como xales, luvinhas de crochet e broches.
Existiam pouquíssimos ateliers de figurino para Tribal, era muito difícil conseguir um figurino completo em pronta-entrega, muitas vezes tínhamos que criar acessórios e figurinos por conta própria ou com a ajuda de costureiras. Foi aí que surgiu o meu atelier inclusive.
Primeira tentativa de look ATS Old School - Figurino completo Nataraja Designs - 2009 |
As tendências de figurino nesse início eram muito inspiradas no visual do contingente tribal do BellyDance SuperStars (a principal fonte de referência da maioria de nós) e de alguns dos poucos vídeos que chegavam a nós pelo youtube. Aos poucos o figurino tradicional de cintos de franjas de lã e calças boca de sino foram sendo substituídos pelo visual mais vintage usado pelo The Indigo no seu show recém lançado Le Serpent Rouge.
Carol Schavarosk, Sarah Bott, Eu e Karine Xavier em figurinos tribais criados e executados por nós mesmas (excetuando o da Karine). Al Khayam - 2009 |
Os workshops eram todos grandes exposições das pesquisas artísticas pessoais de cada bailarina, seguindo uma linha individual de desenvolvimento totalmente independente. Não existiam ainda os formatos pré-estabelecidos (como Datura ou DanceCraft) e não havia ninguém com conhecimento mínimo de ATS para dar aulas (apesar do método já existir e os DVDs já serem comercializados no mercado “informal”, vulgo Pirataria). A primeira brasileira a dar aulas de ATS no Brasil só viria no ano seguinte (Isabel de Lorenzo, em 2009).
Os dvds pirateados foram primordiais para muitas de nós termos o primeiro contato contextualizado com a produção americana do estilo. Apesar do idioma, muitas de nós conseguiram ultrapassar esse obstáculo e pudemos entrar em contato com os primeiros vídeos didáticos explicando o conteúdo das aulas e a importância de temas como o estudo do Yoga, fundamentos técnicos do estilo e suas variações.
Com a vinda das primeiras bailarinas americanas ao Brasil no ano seguinte ( Sharon Kihara, Mardi Love e Ariellah no Tribal Y Fusion/2009 - produção Adriana Bele Fusco) houve esclarecimento de alguns destes tópicos e uma difusão ainda maior desses fundamentos por todo território nacional a partir das participantes do evento, que foi de quase 200 bailarines de todo o país. Foi um momento de descobertas e de compreensão muito grande para a cena brasileira.
Jhade Sharif , Nadja el Balady e eu - 2009 - Tribal y Fusion - Primeira apresentação da Tribo Mozuna - primeiro grupo de ATS do Brasil. |
Existia um senso de comunidade e um otimismo muito grande nesses primeiros anos, uma preocupação em criar um ambiente receptivo e de suporte mútuo que era perceptível nos corredores dos eventos, salas de aulas e camarins. Tudo era muito novo e a sensação de encontrar alguém que compartilhava aquela mesma dança inebriava e empolgava a todes. Ainda hoje me sinto como se estivesse “visitando a família” nos grandes eventos, onde tenho a oportunidade de encontrar esses rostos familiares de tantos anos.
Nestes 14 anos houve uma evolução muito grande em todos os aspectos da nossa cena: Integração, variedade, qualidade de performance e instrutores e a quantidade de praticantes, frutos de muito trabalho e dedicação tanto das gerações mais antigas quanto das mais novas, nossas alunas e ex-alunas. As reflexões atuais geradas pelos simpósios, coletivos e grupos de estudo (que floresceram durante a pandemia) trouxeram aprofundamento das discussões teóricas, históricas e sociais e amadurecem ainda mais nossa comunidade, nos colocando no próximo estágio de evolução da dança do país.
E basicamente esse era o cenário quando comecei a “dançar tribal”, nos primeiros anos da difusão do estilo no país. Espero que tenha sido uma experiência boa esse passeio pelas minhas memórias!
Grande beijo!
Aline Muhana
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