por Hölle Carogne | Participação de Anath Nagendra
Gente, olha que surpresa maravilhosa: estou reabrindo a Série Desvendando, para compartilhar com vocês o trabalho lindo realizado pela bailarina gaúcha Anath Nagendra.
O trabalho dela fala sobre a runa Isa! Vem ler esta matéria incrível e saber o que a inspirou!
*Lembrem-se, qualquer trabalho de dança com conceito místico ou ocultista pode ser enviado para a coluna. Será um prazer divulgar a sua magia transformada em dança!
ISA: uma encruzilhada em linha reta
Por Anath Nagendra
Sabe crise dos 30? Aquela época da vida em que certas fichas caem e parece que tudo está se desfazendo ao seu redor, vivida principalmente por mulheres? Então, sou cética quanto à essa crença popular em tempos atuais, principalmente por estar enraizada na cultura patriarcal (p.ex. a crise por não ter arranjado marido/filhos).
Mas devo admitir que uso a expressão, de brincadeira, pra ilustrar o melê atual da minha vida. Ainda mais porque a minha “crise dos 30” começou na margem de erro, por volta dos 28 (ou antes, até). Problemas financeiros e emocionais, estresse com o trabalho, preocupações com a família, com a saúde, o choque de realidade de entrar na vida adulta depois de anos dentro de uma bolha intelectual resumida à universidade, a depressão com o estado atual do mundo, autoestima no chão, etc.
Assim, às portas de completar 29 anos, criei “ISA”. E o que diabos isso tem a ver com o que falei acima? Simples, essa performance foi um ritual pessoal “multicamadas”, cuja intenção era quebrar essa onda da “crise dos 30”. Os resultados foram tão “WOW” que senti que essa apresentação merecia uma matéria só pra ela. Obviamente que a “crise dos 30” não sumiu magicamente após a dança, provavelmente precisarei de um tempo e de outros trabalhos internos pra dar continuidade a essa saga, mas certamente este foi o pontapé inicial desse concerto.
E como ocultistas no meio da dança não são exatamente numerosos, acho interessante dividir um pouco destas experiências e percepções, ainda mais por ser um mundo tão particular e subjetivo.
Sendo introvertida (INTJ, especificamente) e com ascendente em escorpião, costumo ser um livro fechado a sete chaves, que revelo somente pra pessoas extremamente íntimas. Mas isso não me impede de abrir certas brechas para o mundo, e aqui isso se faz necessário pra contextualizar os acontecimentos pré, durante e pós-performance. Uma destas coisas é que minha espiritualidade é, literal-metaforicamente, uma salada de frutas. Algo tipo o Tribal Fusion, ou seja, uma manifestação coerente e única que surge da fusão de diferentes elementos.
ISA, para mim e neste contexto da minha vida, canalizou a energia de si mesma, representou a despedida do meu cabelo gigante, deu um boost na minha autoconfiança e autoestima, me ajudou a calar a boca do superego, e foi o resultado de um pedido à um Exu!
Mas tia Anath, quem ou o quê é uma isa?
“Isa” é uma das 24 runas escandinavas, comumente usadas como um oráculo (como o tarot, por exemplo, ainda que diferente). Chamada também de “Is” ou “Isaz”, significa gelo (também correlata do inglês ice), é representada como um único traço vertical, e seu arquétipo é relacionado a questões como: inércia, estabilidade, eixo, cerne, estagnação, equilíbrio, resistência, controle, etc.
E, como frequentemente acontece com muitos arquétipos – sejam runas, arcanos do tarot, deuses de algum panteão ou os signos do horóscopo –, seus aspectos negativos são enfatizados e o símbolo torna-se estereotipado. Quando comecei a estudar runas, anos atrás, via Isa sempre como um problema ou algo que eu não conseguia decifrar direito, análogo às intepretações, também estereotipadas, do arcano XII, “O Enforcado”, e o hexagrama 33 do I Ching, “Retirada”.
Foi no desenvolvimento da performance que eu fui mergulhando em suas camadas e percebendo sua complexidade e suas facetas positivas. Se Isa surge em uma leitura de runas, é praticamente impossível de se compreender o significado sem considerar bem o contexto da pergunta e ter uma boa intuição. Ela pode indicar que a situação da pergunta está estagnada (ou seja, rígida demais), mas também pode indicar instabilidade (ou seja, frouxa demais), de modo que a estabilidade deve ser buscada. Ela pode ser um bom agouro, indicando que as ações levarão ao centramento e equilíbrio, como também mostrar que tais ações podem levar à inércia.
Não há motivos para “carimbar” a runa com apenas um significado, ou uma faceta. É impossível discernir isso apenas olhando pra ela. Isa é um arquétipo complexo em si mesmo, uma energia misteriosa presente em absolutamente tudo. Não é à toa que não há como ignorá-la quando construímos, por exemplo, um símbolo que é uma combinação de runas, ou mesmo quando utilizamos uma única runa, pois, sendo todas traços retos, Isa está sempre embutida no desenho, e portanto se faz presente em todas as situações.
A primeira camada de significado presente na minha dança foi: Isa como estabilidade. Estes foram os elementos que busquei canalizar ao construir sua performance, buscando trazer pra minha vida – interna e externa – ao menos um pouco de seu cerne. Para isso, utilizei a música “Isa”, da banda norueguesa Wardruna – que, aliás, criou três álbuns totalmente focados nas runas –, desenvolvi um figurino simples em tons de branco e prata claro, maquiagem artística branca e prata, e procurei evitar sair do lugar durante a dança. Afinal, uma runa toda voltada ao eixo e rigidez não clama por muito deslocamento, certo?
A performance, ainda que tenha sido improvisada, tem uma estrutura “narrativa”: inicio parada, enrijecida, trêmula de frio, como se despertando lentamente de uma longa inércia. Ao me erguer, os movimentos, ainda “quebrados”, com acentos e tickings, representam a quebra do gelo do corpo. Conforme a dança avança, vou me tornando mais fluída, permanecendo no eixo. As “unhas” que uso representam o gelo também, como estalactites, que vou me desfazendo (acreditem, esse simbolismo eu percebi apenas depois, assistindo ao vídeo). Mais para o final, me movimento de maneira circular, lenta e calmamente, mantendo o eixo, representando a fluidez centrada e estável como faceta positiva da energia de Isa.
Curiosamente, o vídeo está com um micro delay no áudio, o que conferiu um ar meio “creepy”, em especial no início. :p
A segunda camada foi perceber o simbolismo referente ao equilíbrio fornecido pela runa. Tempos antes da apresentação, quando eu ainda estava cogitando dançar essa runa, estava escutando a música original (tive de editá-la para diminuir a duração), e devaneando minha performance mentalmente. Costumo fazer isso sempre, pois isso me ajuda a verificar se o que a música me transmite é passível de ser feita (considerando meu atual repertório e capacidades), a bolar o figurino, narrativa, etc. Pois desta vez, percebi que o devaneio se desenrolou de forma que a apresentação de Isa seria uma “despedida” do meu cabelo.
Contexto: como podem ver nas fotos, tenho um cabelo mega comprido. Sei que eu sempre quis ter um cabelão, mas não consigo mais me lembrar do motivo, apenas que eu adorava – e ainda adoro – quando as pessoas se chocam com o tamanho dele. Mas sempre tive muita dificuldade em fazê-lo crescer, pois passei a vida tingindo com tintas de farmácia, sem cuidar ou ir a salão, o que me impedia de deixa-lo muito grande pois as pontas ficavam horrendas. Quando troquei a química por henna, ele ficou muito mais saudável e pude atingir o comprimento atual sem ele estar detonado – ainda que precise de um tantin de tratamento. Mas, mesmo assim, meu cabelo é deveras fino, quebra e enoza fácil, fora que tenho pouquíssima quantidade de cabelo.
Quando eu finalmente atingi esse comprimento diferentão que eu sempre quis, comecei também a perceber que eu não estava exatamente feliz por isso. Praticamente nunca o uso solto – quente demais no verão, fica se enroscando em tudo, etc. –, e mesmo quando solto, não tem muito movimento ou expressividade. Mesmo na dança (do Ventre, ao menos) não conseguia utilizá-lo em movimentos, pois é leve demais. E como não costumo ir a salões pra deixa-lo ajeitado e nem fazer isso eu mesma, acaba que a aparência natural parece um tanto desleixada. Além disso, há algum tempo tenho sentido muita vontade de brincar com volume nas madeixas, mas nesse atual estado, é praticamente impossível avolumar qualquer coisa.
Foi aí que percebi que teimar em continuar com o cabelão não era o que eu queria, mas ainda assim, eu senti resistência em considerar um corte dramático. E essa resistência era um sinal de apego, mas um apego perigoso: aquele que, na realidade, é o medo da mudança. Aquele apego às expressões de espanto das pessoas, mas que não me agregam nada. Aquele apego que também tem raízes na cultura patriarcal, que diz que mulher tem que ter cabelão. Aquele apego a uma identidade que tentei construir por anos, mas que agora vejo que não sou eu. Não necessariamente.
Meu cabelo se tornou um excesso, um dos muitos que geram meu desequilíbrio interno.
Tem muito mais coisa por trás disso, mas não irei me alongar demais. Basta dizer que outro fator importante nesse contexto, e consequentemente para a performance da Isa, é que estou há algum tempo trabalhando internamente para destruir bloqueios e amarras que impedem a minha expressividade. Um deles é de libertar parte da minha Sombra (viés junguiano) que é o meu Sol em Leão, das “garras” do Superego (viés freudiano), e uma das ferramentas que estou usando para isso é uma ritualização do corte do cabelo.
Aí você vai pensar, “ah, então é por isso aquela enrolação de cabelo no vídeo, legal!”, e eu vou te responder, “sim e não”, e aí você vai ficar “WTF”. Explico: como disse acima, tive o devaneio em que a performance seria essa despedida, em que eu interagia com as madeixas. BÃT, eu acreditei que isso seria uma camada simbólica da dança, e não literal. Quando ensaiava a estrutura da dança, ignorei totalmente esse aspecto, o cabelo seria apenas um elemento estético. Ledo engano :p
Logo que começou a apresentação, o cabelo enrolou forte numa das minhas mãos, já fazendo com que uma das unhas caísse. Isso não estava nos planos. Mas, ao invés de sentir aquela adrenalina e pensar “fudeufudeufudeufudeu”, eu percebi na hora que a performance QUERIA que eu interagisse com o cabelo e representasse o simbolismo da despedida. Assim, imbuí o acontecimento na dança e segui o baile. Ou seja, sim, estava nos planos, e não, não estava nos planos. Hehehe
E isto puxa a terceira camada, que aqui não relaciono a um simbolismo específico, mas à manifestação da runa: a tranquilidade. Tranquilidade como a consequência do centramento, do equilíbrio. Porém, isso não veio depois da performance, mas sim antes. Não sei exatamente quanto tempo antes, mas percebi, conforme se aproximava o dia do evento, que eu não estava nem um pouco preocupada com nada. Construí a performance com calma, testei figurino sem nenhum estresse, e nem um pingo de ansiedade surgiu antes ou durante, e mesmo depois tive apenas a ansiedade de ver como ficaram as fotos e vídeo, com uma expectativa bem animada.
Talvez você ache isso normal, mas, ao menos no meu caso, foi a primeira vez que isso aconteceu. Mesmo com quase sete anos de dança, continuo sentindo aquelas borboletinhas no mínimo logo antes de entrar no palco, mas desta vez, nem isso! E só depois da performance que fui perceber que isso provavelmente já era a Isa se manifestando em mim, me trazendo estabilidade mental e emocional que me permitiu cria-la sem nenhuma dor de cabeça, e que certamente influenciou a minha reação tranquila ao “causo” do cabelo enroscado.
Finalmente, a quarta camada: a performance como resultado de um pedido a um Exu! <o>
Explico: há algum tempinho tenho tido contato com alguns elementos da Umbanda, pela primeira vez. Esse contato surgiu espontaneamente, e culminou na minha descoberta de que o meu Exu era especificamente o Zé Pelintra. Estudando sobre ele e tendo contato através de Imaginação Ativa, combinamos que ele iria me dar um auxílio na guerra contra o superego. E, algum tempo antes da performance de Isa, eu estava em um dia particularmente down e pedi a ele que me ajudasse com um pequeno boost na minha autoestima, em troca de uma vela. Ok, deixei isso de lado, quando eu percebesse que o favor foi concretizado, acenderia a vela.
Poucos dias após a apresentação, recebi as fotos e o vídeo. O que aconteceu foi algo que eu não estava esperando: pela primeira vez na vida, eu estava me admirando, tanto nas fotos quanto no vídeo. Pela primeira vez na vida, eu não dei bola para a barriga gordinha, tamanho o encantamento com o resto. Pela primeira vez na vida, me encantei comigo mesma da mesma forma que admiro minhas bailarinas favoritas.
Talvez você pense que isso é narcisismo, talvez você pense que é porque sou leonina, talvez você pense que isso é algo normal. Não para mim. Por mais que eu gostasse de uma performance/fotos minhas, sempre havia aquela vozinha crítica, aquela que aponta o que não tá legal, o que não tá bem feito, as gordurinhas, etc. Resgatar o meu amor-próprio e autoestima é um dos meus principais focos atuais, tamanha repressão que fiz da minha própria vaidade e autoconfiança.
E foi nessa hora, quando percebi como eu estava me admirando, que me toquei: o pedido que tinha feito ao Seu Zé foi cumprido. Com essa performance eu consegui realizar algo que outrora eu não acreditaria que pudesse fazer, que era calar a boca do crítico interno. Com essa performance, eu consegui, de maneira inédita e sincera, não dar bola para o meu sobrepeso.
Obviamente, o resultado disso é um pequeno boost na minha autoconfiança.
Laroyê, Zé Pelintra!
Espero que esse textão tenha sido interessante, e que possam ter uma pequena noção do que a dança pode nos proporcionar como ferramenta de experimentações esotéricas. Logo abaixo deixo o vídeo, para quem quiser ver como tudo isso aí se manifestou.
A performance ocorreu na Mostra de Danças de Inverno do Centro Municipal de Dança de Porto Alegre, no dia 25 de julho de 2018. Registro em vídeo por Luhã Valença, e fotos por Fernando Espinoza.