Entrevista publicada originalmente na revista impressa
Ou Seja - http://www.ouseja.jor.br/
O Butoh é a dança japonesa do pós-guerra que vem conquistando
cada vez mais espaço e reconhecimento em território nacional. Ela vem sendo
retratada pelo bailarino brasileiro que leva em seu próprio nome a marca desta
arte, João Butoh. Confira na entrevista abaixo um pouco sobre o artista e este
magnífico universo, cheio de intensidade e sentimento.
Hölle Carogne:
Conte-nos um pouco sobre a sua historia de vida, falando sobre a pessoa, o homem
e o bailarino João Butoh.
João Butoh:
Fui alfabetizado em casa pelos meus pais. Ingressei em escola pública aos 6
anos de idade - modelo dos Parques Infantis desenvolvidos por Mário de Andrade
que tinha por finalidade: assistir, educar e recrear as crianças, em São Simão
interior de São Paulo, onde tive contato com as artes em geral e comecei a dançar e fazer teatro. Aprendi
marcenaria com meu pai e a costurar com a minha mãe. Aos 18 anos freqüentei a
escola Dança Clarisse Abujamra, onde recebi bolsa de estudos e a oportunidade
de aprender várias técnicas de dança com profissionais do mais alto gabarito. Participei
de uma infinidade de festivais de dança nacionais e internacionais, os quais me
possibilitaram exercitar o meu lado de criação e execução de meus trabalhos.
Foi daí que perdi o meu sobrenome e passei a ser conhecido como o garoto que
dançava butoh – Joao Butoh. Sou formado em jornalismo, história e educação
física. Fundei a Ogawa Butoh Center em 1983 e desde então venho me dedicando a
pesquisa estética e corporal do butoh.
Hölle
Carogne: Provavelmente, muitos dos nossos leitores não conhecem o Butoh. Pode
nos dar uma breve explicação sobre este estilo de dança?
João Butoh:
O Butoh surgiu no Japão nos anos 60, criado por TATSUMI HIJIKATA e
posteriormente KAZUO OHNO, como um movimento cultural para impedir a invasão da
cultura ocidental no pós-guerra. Os interpretes buscam no inconsciente comum a
todo homem, oriental ou não, a beleza e a decrepitude a simplicidade e a
complexidade, o cômico e o trágico. Essas dualidades como o masculino e o
feminino, a vida e a morte, são características desta arte, que retomou antes
de tudo a idéia quase esquecida de que o intérprete não “joga” para consigo
mesmo, mas para reviver algo muito maior.
Hölle
Carogne: Como foi seu primeiro contato com a dança e quando decidiu dedicar-se
a essa arte?
João Butoh:
Foi quando recebemos no Brasil uma exposição do acervo de peças do Museu da Paz
de Hiroshima, realizei uma criação para a abertura e encerramento e uma das
técnicas do museu ao final da apresentação me procurou perguntando onde eu
aprendera o butoh. Desde então teci uma teia para conseguir informações que
pudessem ajudar a entender ao que me haviam sido instigado. E foi por meio de
informações enviadas de parentes no Japão e posteriormente pela minha própria
mãe que passou a residir naquele país, que pouco a pouco desenvolvi pesquisa e
estruturei minha linguagem corporal baseada nesta dança.
Hölle
Carogne: Quais são suas inspirações neste meio?
João Butoh:
Kazuo Ohno.
Hölle
Carogne: Você vê no Butoh uma filosofia de vida? Comente.
João Butoh:
O conceito de filosofia para mim está relacionado com a busca incessante pela
sabedoria. Assim, uma filosofia de vida também inclui a busca pelo
autoconhecimento e por normas que atribuam estabilidade para um determinado
indivíduo. Eu incessantemente busco aprender e conhecer não só aspectos que
possam contribuir com o meu crescimento artístico como também pessoal. Todas as
funções que exercito vêm de encontro a uma necessidade pessoal de um discurso
cada vez mais completo e transparente por meio da minha arte. Esse diálogo que
tecemos com a sociedade por meio de nossa arte é o que me direciona e canaliza
a minha energia para este equilíbrio pessoal.
Hölle
Carogne: Como é o cenário do Butoh no Brasil?
João Butoh:
Frutífero! Com uma abertura de infinitas possibilidades para se experimentar.
Em cada parte e região de nosso país, poderão surgir novas releituras desta
dança, oriundas de verdades díspares e muita criatividade que é a marca de
nosso povo.
Hölle
Carogne: Existem algumas expressões que, de acordo com a internet, estão
associadas ao Butoh, como por exemplo, “corpo morto” e “olho de peixe”. É correto
associar estas expressões à dança? E o que elas significam?
João Butoh:
Podemos dizer que estejam associadas a algum momento histórico desta dança, mas
não mais dela como um todo. Ela pode ter sido verdade para o desenvolvimento de
algum padrão corporal, criativo ou mesmo didático, mas não pode ser encarada
como uma verdade coletiva, pois a mesma não reverbera em inúmeros intérpretes
espalhados por várias partes do mundo, seja no caráter didático ou mesmo
performático. Cada qual de nós recebe estímulos de maneiras diferentes, e o que
pode ser verdade no interior de um intérprete dificilmente será encontrado
dentro de outro, e o que se diz sobre o entendimento desta dança, a mesma coisa.
Corpo morto sugere um corpo vazio, mas o intérprete tem dentro de si histórias
que são impossíveis de serem arrancadas. Sugere também que não seguimos
coreografias predeterminadas, mas mesmo os fundadores do butoh dotavam deste
recurso. Olho de peixe nos sugere um olhar fixo, vidrado. Alheio ao que
acontece a sua volta. Em algum momento pode ser útil, mas em outro
completamente indispensável. Todas as ferramentas que nos são sugeridas devem
ser experimentadas e igualmente aprendidas. O intérprete deve saber qual o
momento certo para usá-las. Sabedoria e conhecimento. Ferramentas são
ferramentas. Expressões ilustrativas. O esclarecimento ao que se referem estas
e tantas outras expressões e ferramentas, são necessárias para que se consiga o
resultado almejado, seja ele no processo de aprendizado ou mesmo de performance.
Hölle
Carogne: Além da técnica visível, há uma característica semelhante entre os
bailarinos de Butoh: a expressividade. Como espectadora, tenho a impressão de
que todos os músculos do corpo querem dizer alguma coisa. Estou correta?
Comente sobre a importância da expressão nesta dança.
João Butoh:
É um pouco o que falamos na pergunta anterior, mas também está ligado ao
entendimento do que se espera de um intérprete de butoh. Não podemos
desassociar que o butoh é uma arte performática e a mesma também caminha em
terrenos conhecidos do universo da encenação. Não existe arte sem público e
pensando nisso, nos imbuímos da maior quantidade de informação para que o que
estamos criando se transforme em uma obra de arte. Todos os elementos que
trazemos ao tema proposto, deve estar totalmente inserido no tema e na
performance. Se o butoh é uma dança, e dança a fazemos com o corpo, o mínimo
que se espera de um intérprete é que o mesmo tenha um trabalho corporal
significativo. Que tenha conhecimento do próprio corpo. Conhecimento corporal
advêm de estudo, de práticas de aulas de técnica de dança freqüentes e de
ensaios. Quanto mais os realizar, mais seu discurso corporal se enriquecerá.
Hölle Carogne: É comum que as pessoas, ou amem ou odeiem o Butoh, muito provavelmente pelo “peso” característico que há por trás dele. Essa sensação de “agonia” que as pessoas sentem ao ver um trabalho de Butoh é intencional?
João Butoh:
Posso te dizer que um trabalho bem feito dentro desta proposta dificilmente vai
entediar alguém. Acho um desrespeito sem tamanho levar “work in progress” ao
palco. Trabalho ainda não concluído no máximo se recebe profissionais para contribuir
ao processo em espaço fechado, e os mesmos sabendo que estão sendo chamados
para isso. Não existe desculpa mais amadora para um trabalho ruim, quando o
interprete se escora na justificativa de estar fazendo uma “performance de
butoh”. Isso diferencia quem realmente é um artista. Outro erro evidente é se
ancorar em metáforas. O Corpo nunca mente. E o público sabe disso!
Hölle
Carogne: O Butoh está associado a algum tipo de crença ou forma de
espiritualidade? Por que é comum que os espectadores associem a dança a algo
obscuro? Existe alguma explicação para este fenômeno?
João Butoh:
Todo artista está ligado de alguma maneira a uma crença ou mesmo alguma forma
de espiritualidade. Buscamos atingir o divino o tempo todo. Buscamos o sublime,
o perfeito. O Butoh assim como qualquer outra arte deve estar isenta de padrões
religiosos. Cada artista a meu ver deve buscar a sua maneira de se conectar com
o ser supremo que o ampara e o ilumina. O Butoh inicialmente era chamado de
Angoku Butoh – Dança das Trevas, e é por isso que alguns intérpretes ainda
trafegam por esta estética de horror. Pois assim ele foi introduzido para a
sociedade japonesa em 1959 com a primeira performance a qual se estabeleceu
como data do surgimento do butoh “Revolt of the Body”.
Hölle
Carogne: De que maneira sua arte expressa seus sentimentos mais profundos?
João Butoh:
Trabalho com verdade o tempo todo. Nenhum tema que trago proposto em minhas
obras saiu de pelo menos muitos anos de estudo. Um artista não acontece pela
metade, deve estar sempre completo em cena. Você é o que você construiu. Embora
estamos nos construindo e reconstruindo o tempo todo, isso não pode ser
desculpa para desmazelo ou mesmo preguiça. Todo artista precisa de conteúdo.
Toda obra e criação necessita igual. O superficial me entedia!
Hölle
Carogne: Suas ideologias e crenças influenciam em suas criações artísticas? De
que forma?
João Butoh:
Citando Marx e o ilustrando por meio da música de Cazuza, não! Não tento
mascarar a realidade por meio de minhas criações. Eu sigo o papel que todo
artista deveria imprimir na sociedade atual. Não como forma de alienação, mas
como opção de sugestionar um mundo melhor, uma sociedade mais justa. Temos a
oportunidade de vivenciar muitos personagens, viver muitas vidas, sugerir
infinitos universos. Qual significado teria um artista que perdeu o trem da
história? Não dou as costas à realidade. A enfrento de frente e de peito
aberto!
Hölle
Carogne: Como você se sente quando está dançando? O que passa em sua cabeça e
em seu corpo no momento da dança?
João Butoh:
Muito subjetiva esta pergunta. O Sentir deriva de sentimentos, e eu sou só
sentimentos. Não acredito que a arte esteja isenta de sentimentos. Eu me
preparo para estar completo em cena. Tenho uma paixão por histórias. Paixão por
histórias emocionantes, aquelas que tocam fundo na alma. Está é uma
característica da minha arte. Conto histórias por meio do butoh. É o que me
seduz na arte, proporcionar uma viagem emocionante durante alguns minutos, e no
final desta jornada, deliciar que o meu público está totalmente entregue a esta
doação. A arte como instrumento para emocionar as pessoas. Daí, é um passo para
a transformação do indivíduo. Sim, só a arte transforma!
Hölle
Carogne: Sou bailarina de Dança Tribal, que é uma dança de fusões. Acharia
interessante uma fusão com Butoh? Por quê?
João Butoh:
Isso só quem pode responder é você! Se algo te ressalta aos olhos e anseios e
te instiga a buscar algo mais para a sua vida e a sua arte, você deve optar por
seguir ou não este instinto. Desde que você sugeriu-me esta pergunta é porque
você viu alguma luz adentrando por esta janela da divina possibilidade.
Hölle
Carogne: Gostaria de agradecer pelo seu tempo e pela excelente
entrevista. Foi uma honra para nós da Equipe Vero conhecer um pouco mais sobre
você e sobre essa arte tão encantadora que é o Butoh. O espaço a seguir é seu,
para que deixe suas considerações finais e seus contatos para que as pessoas
que queiram conhecer um pouco mais sobre você e seu trabalho com Butoh, possam
encontrá-lo.
João Butoh:
É imprescindível para todo e qualquer artista responder no seu íntimo o fator e
a necessidade que o fez mergulhar neste universo da arte. A vida é extremamente
efêmera e quanto mais se dedicar a sua arte, mas seu estado criativo amadurece.
Perguntas como: O que você quer com a sua arte? Qual contribuição você quer
deixar para o universo? Já são pontos de partida para nortear a
responsabilidade de se ser artista, e o investimento que fazemos sobre nós
mesmos, tem que valer a pena! Não existe dor mais profunda do que a negação de
um ser humano em buscar acesso a informação. E hoje em dia ela está bem diante
de nossos olhos e ao alcance de nossas mãos.
Deixo aqui
então os nossos contatos para quem se interessar em saber mais sobre o trabalho
que realizamos.
Todas as fotos por Boaz Zippor