por Kilma Farias
Oxúm | Foto por Renata Chaves |
Dança
dos Orixás, temas que trazem o terreiro como conceito central da coreografia,
Maracatus, Cocos e Reisados são inspiração constante dentro do Tribal Brasil.
Achei importante levantar pontos para reflexão sobre essa identidade africana
dentro do nosso estilo em desenvolvimento.
Desde a época da vinda dos primeiros escravos
negros ao Brasil, os Bantus, oriundos da Costa Ocidental Africana a exemplo de
Angola, Congo e Moçambique que um processo de construção de uma nova etnia se
iniciou. Os Bantus acreditavam em dois mundos; o visível e o invisível,
entendendo o homem como centro da criação, estabelecendo uma ética
antropocêntrica que conflitava com os ideais do catolicismo em época da
colonização em nosso país. Exímios dominadores do ferro e do marfim, produziam
exóticos artefatos que hoje fariam brilhar os olhos das tribaldancers mais
vaidosas.
Para o Brasil também vieram escravos
da África Central, os Jêjes, oriundos de Dahomé. De língua Fon e cultuando os
Voduns, os Jêjes deixaram raízes no Maranhão. Danças como o Tambor de Mina e
Tambor de Crioula guardam segredos desses guerreiros, sendo essa última de
cunho mais profano, apresentada inclusive em festividades culturais, e também
religiosas ligadas a São Benedito. Já os Iorubás, Nagôs, oriundos do Ketu,
terra de Oxossi, estruturavam a construção de sua ética em quatro pilares: o
indivíduo, a comunidade, a criação/natureza e o passado. Esse passado encontra
ecos no Tribal Brasil, onde buscamos gerar o novo com as influências
sócio-político-econômicas da nossa época, mas com um olhar sob o passado,
trazendo-o ao presente de um modo relido, resignificado. São dos Nagôs que
herdamos os Orixás que tanto nos inspiram.
O Orixá inspira a construção de
personagens dentro do Tribal Brasil por sua riqueza de características,
movimentação e figurinos próprios dentro de uma estética que em muito se
assemelha a do Tribal. A empatia é inevitável, assim como o envolvimento da
musicalidade Afro, e traz uma atmosfera mística, construindo um espaço quase
sobrenatural no palco para falar em gestos de uma cultura que se hibridiza em
movimento.
Com a mão de obra escrava predominante
a partir do século XVII, a figura dos reis e rainhas negros do Congo se fazem
presentes em cortejos dançantes em diversas expressões culturais. Nos cultos
aos santos negros São Benedito, Nossa Senhora do Rosário e Santa Ifigênia,
articulações políticas e religiosas são tramadas no sentido de enfraquecer a
cultura e religiosidade Africana, propondo uma efetivação da dominação
colonial. Atualmente, as congadas são cortejos de música e dança sem
necessariamente terem ligação com irmandades negras, como por exemplo, as
Cambindas da Paraíba, mas ainda encontramos forte influência religiosa nos
maracatus nação de Pernambuco.
A temática do Maracatu é sempre
bem-vinda no Tribal Brasil, assim como o arquétipo da Rainha Negra, como por
exemplo, Nzinga, desenvolvida em coreografia de Jaqueline Lima para a Cia
Lunay, dentro do espetáculo Axial (2012).
As expressões culturais que possuem
contexto dramático representam as guerras intertribais, chamadas de guerra
justa entre africanos cristianizados e gentios. Na cultura portuguesa, as
cruzadas são a primeira referência dessa guerra. Negros que aprenderam a ler e
escrever em árabe, assim como foram convertidos, eram chamados de Malês. Os
Malês também foram trazidos como escravos, vindo com eles traços de uma cultura
africana hibridizada com a árabe. Em si, uma boa fonte de pesquisa para o
Tribal Brasil. O conflito entre cristãos
e mouros aparece em folguedos como as cheganças, cavalhadas, congos e congadas.
As brincadeiras de marinheiros, barcas, marujadas aparecem como dança dramática
como, por exemplo, na Nau Catarineta. Todas essas expressões culturais que
envolvem dança e batuques são heranças dos Negros trazidos da África, influente
identidade na construção do brasileiro.
Os
batuques, à época da colonização portuguesa no Brasil, figuravam como o lugar
dos excluídos, que não prestavam cultos às irmandades católicas, mas uniam
dança, cantos e tambores em esferas reservadas, pejorativamente enquadrados
como baderna e feitiçaria pelos colonizadores que temiam os ajuntamentos dos
negros, pensando a força político-religiosa que poderiam vir a se tornar. Esses
batuques foram proibidos e perseguidos; sua verdadeira natureza sempre escapou
à compreensão dos brancos colonizadores. Dissimulando seus ritos na
espiritualidade católica surgem o jongo, candombe e a capoeira. Outra forte
presença da herança dos batuques são as danças de umbigada. O coco e a capoeira
aparecem nas construções de Tribal Brasil, reconstruindo esse lugar de
ajuntamento, de tribo. Será que o pensamento de militância contracultural do
Tribal encontra na cultura africana dos batuques uma resistência e aí se
identifica? Geralmente em roda, ou meia lua, devido à configuração do palco
italiano, a capoeira já foi tema de improvisos e construções coreográficas em
Tribal Brasil por diversos grupos e solistas.
Entre 1768 e 1769 o então governador
de Pernambuco, Dom José da Cunha Grã Ataíde manda proibir os batuques negros às
escondidas em “Cazas e Roças” comparando-os com os Fandangos e Fofas europeias,
condenando-os como danças “supersticiosas e gentílicas”. Jêjes, Nagôs, Malês e
Haussás, Angolas e Congos reúnem-se em locais afastados para a prática de sua
religião tradicional aos cultos africanos dos Orixás, Inkissis e Voduns. Surge
assim os Candomblés, sendo resistentes redutos africanos. Um Brasil de Macumbas
e Catimbós se estabelece, trazendo traços dos sincretismos religiosos e
resistência africana de seus cultos, tão nossos. A Catimbozada foi retratada
pela Shaman de forma majestosa, sendo apresentada em diversos eventos de Tribal
no Brasil e exterior.
Os
batuques inspiram grande parte dos praticantes de Tribal Brasil, a exemplo de
Nadja El Balady e Jaqueline Lima, ambas construtoras de um estilo que bebe na
fonte dos Orixás e de danças Afro de Trabalho.
Pensar o Tribal Brasil a partir da
identidade africana é pensar nossa construção de mundo através do processo de
colonização, mas principalmente através dos nossos atuais processos de
pós-modernidade. Como encontrar em nossa arte diálogos entre identidades –
entre Negros, Índios, Norte-americanos e Europeus, Asiáticos, Indianos, e
justamente por isso sermos tão brasileiros? No fazer do Tribal Brasil, em cada
movimento que se reinventa, essa teia encontra possibilidades diversas de
caminho, gerando uma complexidade étnica que não se pode falar em uma identidade,
mas em múltiplas formas de se identificar com o(s) mundo(s). E o Afro é,
certamente, uma força extrema de beleza e riqueza dentro e fora do Tribal
Brasil.
Tribal Brasil - Identidade no Corpo
_______________________________________
João Pessoa, Paraíba