Avisos:
1-O texto é muito grande, com 6 páginas no Word, então leia se você
realmente tiver tempo e interesse pelo assunto.
2- Eu não dividi o texto em partes porque a pessoa pode não ler as
demais partes, por isso, se preferir, divida a leitura conforme o seu ritmo ou
entusiasmo pela mesma =)
Esse texto foi escrito em função
da seguinte indagação da bailarina Natália
Espinosa: “O quê é o Tribal Fusion?”
Falar sobre o que é o Tribal Fusion requer sair da
"zona de conforto", sem indagações e contestações, para colocar nossas mentes
para refletir e tentar raciocinar diante do tema, que não é tão simples assim,
principalmente no Brasil. Primeiro, porque não moramos nos Estados Unidos,
particularmente, na Califórnia, que foi o berço da dança. Conhecer o local,
entrar em contato com sua cultura e “respirar o mesmo ar” é importante para começar
a entender todo esse processo. Há de se pensar também no processo histórico, político, sócio-cultural para
entender tudo isso. Ou seja, é bem mais complicado para entendermos do que as norte-americanas. Talvez, isso
esteja na mesma proporção delas entenderem o samba e todo o processo que este
também possui na nossa cultura. Segundo, como já dito anteriormente, a dança
entrou faltando peças, aqui no Brasil. Faltou explicarem sobre o ATS® e que
este era a base do Tribal Fusion. Ou seja, faltou uma parte bem grande a ser
explicada. Quando conseguiram encaixar essa peça na cena, a dança já estava
enraizada e, com ela, seus vícios, suas disfunções e carências. Mas houveram
bailarinas engajadas em recuperar tudo isso e reconstruir tudo isso. A dança tribal ainda é recente no
país e , por mais que o acesso as informações e professores tenha sido
aumentada, a comunidade de dança do ventre ainda não entende o que é o Tribal.
Tudo isso eu já disse em um post anterior, que você pode ler aqui, caso tenha
interesse.
Na minha opinião, o Tribal Fusion faz parte do grupo
de danças do ventre. Danças essa que não é só a dança do ventre com “glamour” ocidentalizada
que estamos acostumados a ver em cima dos palcos. Pensar em Tribal Fusion
é pensar no que é a própria Dança do
Ventre. É tentar sistematizar as idéias para que essas tenham coerência entre
si. De forma bem simples(resumida),
conhecemos a Dança do Ventre:
- Tradicional -libanesa, egípcia,etc;
- Clássica - bases no ballet clássico, como giros, postura elegante, meia-ponta,etc;
- Moderna tem um visual mais flexível,músicas mais parecidas com ocidentais mantendo-se os ritmos árabes,etc;
- Folclore Árabe - Ghawazee, Khaleege, Hagalla,Fellahi,Núbia,etc;
- Fusão - fusão da base de passos da dança do ventre com outras danças, como indiana, flamenca, africana,etc.
Todos esse conjunto de dança faz parte das danças “do ventre”. Claro, muitas delas
fazem referência à dança ligado originalmente ao arquétipo feminino, à
celebrações cotidianas ou estacionais das diferentes épocas do ano, da
fertilidade, gestação e maternidade. Essas danças tem em comum muito gingado
,movimentos acentuados nos quadris, ondulações e vibrações abdominais. Sim,
existem as danças árabes que são masculinas, mas estamos entrando apenas no
mundo feminino, pois é o enfoque em questão.
As danças folclóricas árabes são de diferentes lugares do Oriente Médio( “um termo que se refere a uma área geográfica à volta das partes leste e sul do mar Mediterrâneo. É um território que se estende desde o leste do Mediterrâneo até ao golfo Pérsico.” ) e Norte da África. Eu aprendi que estudar dança do ventre requer deixar a preguiça de lado e olhar todo o contexto em si. Então, para nos situarmos, temos que procurar um mapa geográfico e visualizar os países que fazem parte do:
As danças folclóricas árabes são de diferentes lugares do Oriente Médio( “um termo que se refere a uma área geográfica à volta das partes leste e sul do mar Mediterrâneo. É um território que se estende desde o leste do Mediterrâneo até ao golfo Pérsico.” ) e Norte da África. Eu aprendi que estudar dança do ventre requer deixar a preguiça de lado e olhar todo o contexto em si. Então, para nos situarmos, temos que procurar um mapa geográfico e visualizar os países que fazem parte do:
·
Oriente
Médio (Afeganistão, Arábia Saudita, Bahrein, Catar,
Chipre, Egito,Emirados ÁrabesUnidos,Lémen,Israel,Irã,Iraque,Jordânia,Kuwat,Líbano,Líbia,Omã,Palestina,Qatar,Síria,Sudão
e Turquia);
·
Norte
da África(Egito, Líbia,Sudão, Argélia, Marrocos e Tunísia).
Ouled Nail |
A partir daí,temos que conectar às danças
folclóricas que conhecemos.Por exemplo, o Hagalla
é uma dança beduína, encontrada no
Egito e Líbia.Dança Núbia é
originária da Núbia, região entre o
Egito e Sudão ao longo do Rio Nilo.Fellahi
é no Egito, uma dança de agricultores. Khaleege
é uma dança do Golfo Pérsico( Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita, Quatar, Bahrein , Kuwait,
Iraque, e Irã.). As ghawazee são
denominadas ciganas egípcias que,provavelmente,
imigraram do Norte da Índia. Na Argélia
temos as Ouled Nail. Enfim, essas são
algumas danças típicas e suas regiões de origem.
Agora vamos nos voltar para a dança tribal. Sabemos
que o Tribal tem três principais bailarinas que participaram do seu desenvolvimento:
Jamila Salimpour, Masha Archer e Carolena Nericcio. A partir disso,
podemos pensar em cada uma delas separadamente para depois juntá-las.
Pensei primeiro: “O quê é Jamila Salimpour?” Quais suas inspirações, influências?
Como foi criado o Bal Anat? Eu não
vou desenvolver tudo isso, pois isso daria outro enorme post. Então, de uma
forma sucinta vou tentar colocar as respostas e esquematizar aqui.
1)Anteriormente,
Jamila foi dona de uma casa noturna, Bagdad Cabaret, no Broadway. E isso é um fator importante no
contexto da dança tribal por dois motivos, na minha opinião:
- por ela ter estado em contato com diferentes bailarinas do Oriente Médio, conhecendo diferentes passos e catalogando os movimentos, criando um rico repertório de passos;
- para a construção de uma dança de entretenimento, uma dança performática.
Bal Anat |
2)Na década de 60, o Bal Anat nasceu no contexto do Renaissance Faire, sendo um grupo bem circense, devido a sua
bagagem como acrobata, havendo
apresentações acrobáticas, show de mágica, música ao vivo e representação
de fusão com danças folclóricas do Egito, Marrocos, Argélia e
Turquia de forma teatral e através de licença criativa/poética alteravam tais
danças, ao introduzir alguns movimentos modernos, porém, de forma a aparentar que eram representativos ao arquétipo antigo para o público.Logo, a
primeira geração tribal nasceu da fusão entre
as danças folclóricas de tais regiões. O figurino do Bal Anat era
baseado no Norte de
África e do Mediterrâneo Oriental, assuit escuros, uso de máscaras, cobras e
espada(sim, Jamila também foi a criadora da dança com a espada e com a cobra na
dança do ventre). Assim, este tipo de tribal é chamado como Tribal Folclórico,
termo que John Compton utilizava
para descrever seu próprio grupo, Hahbi ' Ru, que é uma linha bem forte do Bal Anat.
Nosso segundo pilar foi Masha Archer,aluna de Jamila e professora de Carolena Nericcio.
Masha tinha uma óptica diferente da dança do ventre, ela queria valorizá-la,
trazendo-a para cima dos palcos, tirando-a da marginalidade que ela vinha sendo
tratada em bares e restaurantes. Masha formou, nos anos 70, o San Francisco Classic Dance Troupe, cujo
estilo era denominado “Tribal Art Nouveau”, pois ela
utilizava figurinos em tons pastéis, joalherias pesadas de tribos e peças
antigas tanto do Oriente Médio quanto da Europa, fazendo alusão a Arte Européia;além
do uso de outras músicas além das tradicionais folclóricas, mas músicas
clássicas e óperas, o que compunha todo uma visão de uma dança que lembrasse pinturas
européia.
San Francisco Classic Dance e Masha Archer(à direita) |
O terceiro pilar e o fomentador do
estilo Tribal, é Carolena Nericcio.
No final da década de 80, ela cria o seu grupo, o FatChance BellyDance(FCBD). Carolena teve muita bagagem herdada por
Masha, mas a distribuição das bailarinas no palco teve influência de Jamila:
forma de coro em meia-lua, havendo momentos de destaque entre um pequeno grupo
de duas ou três bailarinas que depois retornavam ao coro principal. No figurino
há o uso de calças bufantes, xales,cholis ,sutiã de moedas e uso de adornos
étnicos e flores e muitas jóias étnicas. Ao figurino foi acrescentado turbantes, saia
rodada, bindis e cinturões com pom-pons, além de ser um figurino mais sério,
com mais uso do preto e cores
vivas.Carolena resgata as raízes folclóricas do Norte da África e do Oriente Médio, acrescentando
a postura , projeção do tórax, braços e alguns passos da dança flamenca, e o
Kathak, dança do Norte da Índia, também foi acrescentando, através de giros e
outros movimentos adaptados deste.
Assim, houve a formatação dos passos mais utilizados a partir da necessidade de
apresentá-lo em diferentes espaços(pequenos ou muito grandes), por meio da
improvisação coordenada.
OBS:Lembrando que o ATS® não é a fusão aleatória da dança do ventre, indiana e flamenca! É uma dança formatada, que possui características próprias e independentes das danças anteriores mas que usou recursos das mesmas para criar sua própria identidade. Eu não vou me alongar nesse ponto, pois já dei a minha opinião sobre isso nos textos anteriores, quem se interessar, leia aqui.
OBS:Lembrando que o ATS® não é a fusão aleatória da dança do ventre, indiana e flamenca! É uma dança formatada, que possui características próprias e independentes das danças anteriores mas que usou recursos das mesmas para criar sua própria identidade. Eu não vou me alongar nesse ponto, pois já dei a minha opinião sobre isso nos textos anteriores, quem se interessar, leia aqui.
Carolena Nericcio |
Nesses três exemplos vemos o uso do
termo “estilo tribal americano”. O termo “estilo tribal” pela tentativa de
representar tribos e seus arquétipos de antiguidade. Contudo esse estilo não
era genuíno, não era verdadeiramente étnico, pois eles não representavam
fielmente seus folclores, modificando passos e figurinos; o termo “americano” é
empregado para esclarecer que é uma adaptação americana, ou sob a óptica, “sensibilidade”
dos norte-americanos em recriar aquele folclore e trazê-lo para nossa
atualidade/realidade. Os americanos são muito performáticos, sempre elevando a
arte em proporções de espetáculos e isso pode ter sido visto desde Jamila e seu
show circense, visando a diversão e o entretenimento
dos espectadores de forma impactante, inusitada e hipnotizante, através de uma
série de atos entre dança, malabarismos e magia. Esse lado circense é muito
característico até hoje no Tribal Americano.
De uma
forma bem simples, poderia ser um “Neo-folclore” se esse termo fosse permitido,
mas deixo claro que o emprego dele é incorreto, estou utilizando apenas para ilustrar
este processo, porque folclore se trata de tradição, e isso é consolidado
também através do tempo, passados através de gerações.
Bom, agora depois de traçar todo esse panorama
sobre nossa dança, eu vou dar o meu ponto de vista.
Na minha opinião a dança tribal é um
tipo de dança do ventre. Não a dança do ventre que conhecemos,mas sim uma dança
do ventre “modificada”. Vou dar um exemplo bem simples: médico x médico
veterinário. Ambos são médicos, porém, um é de humanos e outro de animais.
Geralmente o médico tem mais prestígio que um médico veterinário(= dança do
ventre é mais famosa que a dança tribal). Contudo, o veterinário estuda não
apenas a base da medicina comum as duas,
mas outras espécies de animais(= estuda diferentes fusões, como dança indiana,
flamenca, street dance, etc), ele tem outras áreas de atuação além da clínica e
laboratório, mas atua no campo, tecnologia de alimentos,etc . Eu vejo a mesma
coisa com relação ao caso Dança do Ventre X Dança Tribal.
Outro ponto a demonstrar que o tribal é
uma dança do ventre é que esta veio de bailarinas do ventre. Percebe-se que a maioria das bailarinas que já tem a base de
dança do ventre consegue aprender o tribal sozinho( e esse foi o processo
inicial que aconteceu no Brasil quando a informação ainda era escassa. Não
vamos esquecer do processo que a dança se desenvolveu por aqui). Fazendo um parênteses:eu não estou dizendo que
é para todo mundo deixar de fazer aulas de tribal porque você pode aprender
sozinho. Não é essa a questão. Isso foi dado a “circunstâncias de sobrevivência”
e adaptação de um estilo! As bailarinas tinham que se virar com as únicas
informações escassas que conseguiam ter acesso para estudar. E logo depois
tivemos o início de workshops internacionais que foram alicerçando melhor o
estudo das bailarinas nacionais. Então,
voltando ao assunto,imagine pegar uma bailarina que só dançou dança flamenca ou
só dança indiana e nunca fez dança do ventre. Será que elas teriam a mesma
facilidade que as bailarinas de dança do ventre? Eu acredito que não,apenas dominariam
aquilo que diz respeito a sua dança, portanto, elas teriam que aprender os
movimentos básicos da dança do ventre, como maias, shimmies etc, pois a maior
base do tribal veio da dança do ventre. Imagine a dança tribal como uma árvore
genealógica, quando vamos olhando as gerações vemos que o “ sangue da dança do
ventre” é o que mais se mantém. O cruzamento da dança do ventre com outras
danças étnicas se deu com mais força a partir da Carolena Nericcio e sua trupe.
Além disso, além da base de movimentação
ser principalmente de dança do ventre, vemos os ritmos árabes sendo trabalhados
com o uso de snujs e derbakes, eu nunca vi , por exemplo, o uso de percussão
indiana nas apresentações de Tribal. O uso de elementos cênicos utilizados por
bailarinas do ventre, como véus, cestos, jarros e espadas. As bailarinas de
tribal no exterior sempre participam de eventos de dança do ventre e não
somente os especializados na fusão tribal. Todas as bailarinas famosas, assim
como grupos utilizam o termo “bellydance”:
FatChance BellyDance, Black Sheep BellyDance, WildCard BellyDance,etc
A dança tribal é étnica contemporânea no sentido de remeter às tribos,seus
folclores e culturas, mas contemporâneo por ser atual e fusionar com danças
modernas, como o street dance e a dança contemporânea, por exemplo, misturando
músicas eletrônicas, rock, metal,etc; usar figurinos mais leves, sem tantos
adornos, ou que valorizem o corpo e a execução de seus movimentos. Eu não gosto
muito de usar esse termo, ainda não me sinto confortável o suficiente por ter
receio dele ser usado erroneamente( e já vi muitos equívocos e por isso estou
comentando), de achar que a base da dança tribal é a dança contemporânea. Essa
é um conceito equivocado! Todo o processo da dança tribal veio com a dança do
ventre. A dança contemporânea foi introduzida depois, com bailarinas como Tjarda e Heather Stants, por exemplo. Nesses últimos 3 anos é que ela vem
ganhando mais enfoque dentro da comunidade Tribal.
Quando penso nos principais ícones do Tribal
Fusion(apenas citarei a Rachel Brice
e Zoe Jakes para não me estender
ainda mais nesse post) vejo que as duas convergem em suas ideologias,mas usam
as bases do tribal de forma diferente. Rachel tem muita influência do estilo
Bal Anat, de Carolena Nericcio e Masha Archer; mesmo nunca ter tido aulas ou contato com esta, sinto muito a força de Masha em Rachel, que sempre usa um estilo mais vintage e a Art Nouveau em suas danças, isso foi muito bem visto no The Indigo e agora no Datura vemos as três linhagens bem características em sua dança. Eu acho que ela consegue passar
um pouco das três bailarinas bases da Dança Tribal. Vejo Rachel usar a dança de
forma ritualística,mas lembrando muito a cultura do Oriente Médio e suas
mulheres, a força que um grupo feminino pode causar ao dançar juntas. No caso
da Zoe eu sinto essa mistura meio diferente. A Zoe é muito mais performática e
teatral na minha opinião, talvez seja toda a bagagem que ela vem tendo ao longo
dos grupos de dança e musicais que fez parte. Zoe primeiramente fez parte do
grupo Aywah de Katarina Burda, que estudou com Jamila e fez parte do Bal Anat;lembrando que a Zoe já fez parte do Suhaila Dance Company em 2001;também
saiu em turnê com The Yard Dogs Road Show que tinha
várias performances variadas desde tribal fusion quanto burlesco e afins. Na
questão tribal dela, vejo muito o uso da raiz indiana que é a fusão que ela
mais utiliza movimentos e aparenta gostar de interpretar seu cerne ritualístico.
No Brasil ainda não nos identificamos
como bailarinas do ventre e nem as
bailarinas de dança do ventre nos reconhecem como tal. Talvez pela forma que a
dança entrou, como poucas informações, havendo “seqüelas” para comunidade de dança
do ventre que ainda vê a Dança Tribal como algo estranho. Talvez para dar
destaque e status, permitindo que seja uma dança independente e não vinculada à
Dança do Ventre. Talvez por preconceito de ser uma dança alternativa, com
muitas pessoas tatuadas, com piercings, cabelos coloridos que podem chocar um
público acostumado com bailarinas padronizadas. Enfim.
A dança tribal, na minha opinião, é uma dança do
ventre principalmente no sentido original da palavra, por ser uma dança
feminina, ritualística, de valorização do corpo feminino, do parto, da
maternidade e fertilidade. Por ser uma dança cujo ventre é o alicerce de toda dança. E sinceramente, essa rusticidade
e sua ancestralidade, a força que ela emana vêm da forte consangüinidade entre
suas principais danças que as compõem: indiana, dança do ventre e flamenca.
Onde as três convergem em sua linha genética? As três tem a dança cigana como seu ascendente. E
acho que isso é determinante para que o Tribal tenha nascido com esse espírito
cigano, livre, indomável,ousado,sensual,alegre e festivo, cujas mulheres dançam
entre si, resgatando sua feminilidade e ancestralidade nos dias atuais. Talvez
essa seja a essência, a magia, o espírito da dança que precisamos alimentar
nosso corpo nos dias de hoje, que sempre oxidam com o estilo de vida criado
pelo homem industrializado, computadorizado e robotizado em sua rotina
cotidiana.