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[Tribal Brasil] As Iabás no Tribal Brasil através do método Laban

 por Kilma Farias

 

Dentro do Tribal Brasil, a inspiração vem também de arquétipos ligados às danças afro-brasileiras. Através das Iabás[1] Iemanjá, Iansã, Oxum e Obá essa construção pode ser mais bem observada, no sentido das intenções de movimento, subjetividades e atitudes geradas por cada orixá em diálogo com a individualidade da bailarina de Tribal e articuladas com outras hibridações de movimentos.

            Sobre a dança das Iabás no Xirê[2], Denise Mancebo Zenicola afirma que


O Estudo da Performance empresta insights importantes e abre campo para o entendimento intercultural, oferecendo questionamento crítico das práticas culturais nesse ritual, associadas aos aspectos da vida cotidiana. (ZENICOLA, 2014, p. 21)

             Ao pensar aspectos da vida cotidiana, podemos trazer o que Rudolf Laban chamou de Ações Básicas de Esforço. Estas foram estruturadas em oito ações com base na combinação dos Fatores de Movimento – Tempo, Espaço, Peso e Fluência (ou Fluxo).


As ações estão presentes em danças de qualquer tipo, folclórica, clássica ou contemporânea. Um salto provém da ação de saltar ou pular. As ações corporais são fáceis de serem compreendidas e a composição delas é excelente forma de introduzir as pessoas à dança. (MOMMENSOHN; PETRELLA, 2006, p. 128).

             Tendo em vista esse fácil acesso à compreensão da utilização das Ações Básicas em seu método, optei por esse sistema de análise dentro do Tribal Brasil. Mas para compreendê-lo, faz-se necessária uma breve explicação sobre Espaço, Peso e Tempo dentro da teoria de Laban.

            Laban nos diz que o Espaço de um movimento pode acontecer de modo direto ou indireto, também chamado de flexível. Quando há uma intenção clara, objetiva em mover, o movimento se caracteriza como direto. Quando não há uma orientação clara e o movimento se esboça como algo difuso, multifocal, o movimento é caracterizado com flexível ou indireto.

            No que diz respeito ao Peso, o movimento pode se desenvolver de modo suave ou firme, e todas as nuances entre os estados de tônus necessários para a ação. Quanto maior contração muscular, mais firme; quanto mais relaxamento, mais suave.

            O Tempo de um movimento em Laban pode ser súbito ou sustentado, e toda a gama de variações entre essas duas proposições. Caracterizando-se como súbito o movimento que ocorre num curto espaço de tempo; e sustentado, o movimento que ocorre num tempo longo, dilatado.

            Assim, apresento as Ações Básicas em Laban e suas implicações com os Fatores de Movimento Espaço, Peso e Tempo.

 

AÇÃO

ESPAÇO

PESO

TEMPO

Socar

Direto

Firme

Súbito

Pontuar

Direto

Suave

Súbito

Flutuar

Flexível/Indireto

Suave

Sustentado

Torcer

Flexível/Indireto

Firme

Sustentado

Talhar / Chicotear

Flexível/Indireto

Firme

Súbito

Pressionar

Direto/Indireto

Firme

Sustentado

Deslizar

Direto

Suave

Sustentado

Sacudir

Flexível/Indireto

Suave

Súbito

           

            Laban nos diz que:

Deuses que flutuam acima das águas demonstram no ritual, ou representação pictórica, uma atitude complacente em relação aos fatores de Tempo, Peso e Espaço no movimento. Flutuar é um movimento leve e flexível que espelha um estado de espírito de semelhante conteúdo. (LABAN, 1978, p. 44).

           

Iemanjá

                     Zenicola (2014, p. 107) nos fala da dança de Iemanjá na qual identifico a ação de Flutuar como a tônica do mover desse orixá, embora tenhamos a compreensão das várias faces de Iemanjá, assim como as várias personificações trazidas ao mundo, influenciadas pela subjetividade no corpo de quem a recebe. Essa correlação oferece subsídios para que a bailarina de Tribal Brasil se oriente pela ação de Flutuar em sua construção e seus possíveis desdobramentos, buscando pontuar a dança com pequenos contrastes de ação. 

            Pode-se ainda buscar em outras culturas representatividades que possuam simbologias semelhantes, como, por exemplo, lendas de sereias, deidades celtas das águas, e articular com o que é semelhante, complementar ou contrastante. A bailarina também busca em si o que flutua. Traz de seu mundo particular, da sua subjetividade para propor diálogos entre suas flutuações e a ação de Flutuar presente na dança de Iemanjá.

Na dança de Iemanjá não existem movimentos grandes, ampliados ou mesmo em alta velocidade, possivelmente como reflexo das características do orixá; o gestual das mãos lembra carícias na água, elemento do qual faz parte, empurrando-a para trás do corpo. Seu deslocamento é suave, ligeiramente contido, como se flutuasse ou caminhasse dentro da água [...] (ZENICOLA, 2014, p. 107).

            Laban nos diz que desde tempos remotos que o homem atribui sua ação de mover a impulsos divinos. Ele nos fala que “[...] os deuses eram os iniciadores e também os incitadores do esforço em todas as suas configurações. E, além disso, eram os símbolos das várias ações de esforço.” (LABAN, 1978, p. 45).

Havia deuses que talhavam, que lutavam contra o tempo e contra o peso com ligeireza e poderosa resistência e, não obstante, eram flexíveis no espaço, ou seja, facilmente se adaptavam às mudanças de forma. (LABAN, 1978, p.45.).  

Iansã
         

              A ação básica de Talhar aproxima-se da tônica dos movimentos de Iansã. A mudança faz parte do repertório de intenções desse orixá, assim como a ligeireza. Iansã é a senhora dos ventos e tempestades, e como tal sopra aonde quer e com a intensidade que quer. Ela chicoteia o ar dispersando energias negativas. Sobre aquele que corporifica Iansã, Zenicola diz que

Dança em impulsos e muda rapidamente de um a outro extremo, de humor e de desempenho corporal, num piscar de olhos, alternando movimento retos com curvos, breves corridas, giros em plano médio e alto, gritos. Sua dança assume constantes gradações de mudança na qualidade de peso, que varia fortemente, caracterizada pela mudança de força do movimento. (ZENICOLA, 2014, p. 103).


            A tônica em Iansã é a mudança. Daí a necessidade de buscar no Tribal Brasil movimentos mais ágeis para sua interpretação, mudanças de temperamento e intenção de movimento que produzem estados de presença variados. Um bom exemplo são os giros, pois tanto geram deslocamentos com trajetória em espiral, simbolizando o próprio furacão, como literalmente produzem vento no palco.

            Como já falamos, o Tribal propõe fusionar, hibridizar, traduzir; e esse processo se constrói a partir do atrito entre diversas expressões culturais. Por esse motivo, para a construção de uma Iansã no Tribal Brasil, pode-se buscar semelhança, por exemplo, nos povos berberes que vivem em constante movimento sendo nômades e também desenvolvem a dança com sabres, ou na tempestade de areia do deserto, o sirocco. Ao mesmo tempo, a bailarina deve estar sensível para perceber suas inquietações e inconstâncias, suas mudanças de humor e fazê-las dialogar na construção da sua Iansã pessoal pra o palco.

Obá

            Já para pensar a possível construção de uma Obá no Tribal Brasil, pode-se recorrer à ação de Sacudir. Vejamos o que diz Laban sobre essa ação:

As resplandecentes divindades da alegria e da surpresa são frequentemente caracterizadas, nas danças, por movimentos de sacudir e fremir. Aqui a sensação de leveza se casa a uma indulgência com espaço, que é evidenciada na flexibilidade e na plasticidade dos movimentos. Aparições e desaparições súbitas conferem aos movimentos de sacudir e fremir a sua luminosidade (LABAN, 1978, p. 45).

            O Sacudir é uma ação que envolve movimentos de Tempo súbito, Peso leve e deslocamentos indiretos, flexível. A “alegria e a surpresa” destacadas por Laban podem identificar-se com a virilidade guerreira de Obá e com a surpresa ao perceber a reação repulsiva de Xangô ao vê-la oferecendo-lhe a própria orelha cortada. Construção mitológica que sustenta a rivalidade entre Obá e Oxum, visto que esta última havia influenciado Obá a cometer tal ato.

 

Obá é considerada um orixá feminino muito enérgico [...] essa dança, assim como o orixá, revela uma alternância característica, através da corporalidade, que ora curva-se enganada por uma insinuação da sua rival, ora empunha uma arma à frente do seu corpo, pronta a guerrear. (ZENICOLA, 2014, p. 110).

 

            Ao construir uma Obá no Tribal Brasil, pode-se, por exemplo, associá-la a Neith, deidade egípcia que é mostrada como uma mulher atlética e ágil, também com forte ligação com o universo da caça. No processo de exteriorização, pode-se buscar a relação consigo mesmo, com o amor próprio, a força dentro do feminino, o “caçar-se” a si mesmo. 

Oxum

            Para abordar Oxum, destaco a ação de Deslizar. Assim como a água que desliza entre si mesma e o lodo nas profundezas dos rios. Laban nos diz que Deslizar é um:

[...] movimento sustentado e direto com toque leve. Ao deslizarem, o homem e sua divindade envolvem-se na experiência da infinitude do tempo e da cessação do peso da gravidade, embora estejam ambos atentos para a clareza dimensional de seus movimentos. (LABAN, 1978, p. 44).

            Ser claro e direto nos movimentos, buscando ausência de peso através de trajetórias contínuas de linhas bem definidas de braço, por exemplo. Gerar experiência da cessação do tempo é possível através da utilização de uma música sem muitas variações, onde a brincadeira do variar acontece no movimento do corpo do bailarino, causando a sensação de que o tempo parou, de que o corpo dançou há bastante tempo, mas a música ainda está lá da mesma forma, suspensa no espaço.

            Esse recurso musical é utilizado nos rituais religiosos de matrizes afro-brasileiras que envolvem dança. Os toques dos orixás, alguns pontos de candomblé, assim como cânticos indígenas, buscam suspender o tempo, manter os participantes na sensação de infinitude, a sensação do tempo eterno que se faz contínuo, que se faz unidade com o ser que dança.

A expressividade de sua dança é composta por um fluxo livre de movimentos, leveza, um tempo desacelerado e contínuo. O fraseado coreográfico contém um balanço específico, que inclui o aumento gradual da intensidade expressiva. Oxum se move em harmonia espacial, usando movimentos de alcance médio, ou seja, seus movimentos não são tão expansivos ao projetar-se para fora do seu eixo corporal. (ZENICOLA, 2014, p. 106).

           Esse Deslizar pela música e pelo espaço pode ser um ponto de partida para se trabalhar a construção de Oxum no Tribal Brasil. O bailarino também pode buscar pontos semelhantes, complementares ou contrastantes com outras personalidades míticas das águas doces como a Iara ou Mãe D’água, Ondinas e Nereidas.

Zenicola (2014, p. 110) propõe uma tabela de atitudes e intenções de movimentos para as Iabás, não como um modo reducionista de abordar a dança desses orixás. Mas como um ponto de partida para o entendimento das tônicas em cada corporeidade.

 

 

Ação

Ação Básica

Ação secundária

Peso

Tempo

Espaço

Fluência

Iansã

Talhar

Forte

Flexível Expandida e/ou Recolhida

Bater Ativar Chicotear

Firme ou suave Enérgica

Súbita Curta duração

Direta Imediata Flexível e linear

Livre

Oxum

Deslizar

Leve Flexível Recolhida ou Expandida

Alisar Borrar

Suave Relaxada

Sustentada Prolongada

Expansão Flexível

Livre

Iemanjá

Flutuar

Leve Densa Recolhida

Mexer Remar

Suave

Sustentada Prolongada

Direta Flexível

Progressão Densa

Obá

Sacudir

Forte Recolhida

Roçar Agitar em trancos

Firme Enérgica

Sustentada Prolongada

Direta Imediata Linear

Progressão Controlada

Fonte: ZENICOLA, D. Performance e Ritual: a dança das Iabás no Xirê, Maud X: Faperj, 2014, p. 110

           

            Abordar corporeidades afro-brasileiras no Tribal Brasil é antes de mover externamente, mover o interno, a subjetividade. E essa interioridade vem atrelada há um legado histórico de bailarinas que retratam deusas que dançam. Podemos falar de uma possível memória coletiva dançada, tendo no corpo a centralidade dessa experiência.

            Recordar ancestralidades e dar corpo a essas deusas é dar corpo há um processo sociocultural de luta pelo empoderamento da mulher. É levar diversas formas de pensar o feminino e sua sensibilidade para um lugar de visibilidade que é o palco. Questionar o social através da arte é, para o bailarino de Tribal Brasil, uma forma de ser no mundo e com o mundo.

            Ao tomar conhecimento das Iabás, abre-se a oportunidade de conhecer uma tradição com toda a sua complexidade simbólica e espiritualidades atreladas. Assim, o respeito nutre o processo investigativo dentro da pesquisa performativa. Conhecendo, vivenciando e articulando reelaborações com o corpo, o bailarino desenvolve uma espiritualidade através do ultrapassamento do humano ao reconhecer-se na alteridade e ao tomar contato com visões de mundo diversas. Desse modo, a dança colabora para a formação do sujeito pela prática de si mesmo e pela consequente flexibilização de conceitos, através da articulação de culturas e consequentemente de visões de mundo, compreensões de corpo e de subjetividades.

  


[1] “Orixás femininos do candomblé de origem iorubá, as Iabás, conhecidas no Brasil pelos nomes Iansã, Oxum, Iemanjá e Obá.” (ZENICOLA, 2014, p. 17).

[2] “Festa pública dos terreiros de candomblé e, no momento que acontecem, intermediam a comunicação com os orixás”. (ZENICOLA, 2014, p. 17).


Referências Bibliográficas 

LABAN, Rudolf. Domínio do movimento. São Paulo: Summus, 1978.

MOMMENSOHN, M; PETRELLA, P. Reflexões sobre Laban, o mestre do movimento. São Paulo: Summus, 2006.

ZENICOLA, D. M. Performance e ritual: a dança das Iabás no Xirê. Rio de Janeiro: Mauad X: Faperj, 2014.

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Tribal Brasil - Identidade no Corpo


Kilma Farias (João Pessoa-PB) é bailarina, professora, coreógrafa, produtora e pesquisadora na área da dança. É formada em Licenciatura em Dança e Jornalismo pela Universidade Federal da Paraíba. Mestra em Ciências das Religiões pela UFPB, desenvolveu dissertação voltada para a relação entre presença cênica e espiritualidade na Dança Tribal.  Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >> 


[Tribal Brasil] Brasil, estereótipos e preconceitos

 por Kilma Farias



Não tem como se negar a carga cultural pesada do colonialismo europeu sobre o Brasil. Séculos de submissão, racismo e exploração sexual são traduzidas em coreografias e discursos em torno do Tribal Brasil e Fusões com danças populares e afro-brasileiras.

O silêncio que se estabelece diante de coreografias que reduzem o Brasil a samba, banana, floresta, índio e mulatas desnudas é preocupante por dois motivos. O primeiro é que haja uma conformidade mórbida e histórica de que gringo nos vê assim mesmo e tá tudo bem. O segundo é que não se perceba (ou até perceba) e ainda se aplauda, reforçando ainda mais essa cultura do oprimido e explorado. Isso é percebido quando observamos os incomparáveis valores dos workshops internacionais com os nossos e como o público lota as salas de aula quando recebemos esses profissionais aqui no Brasil.

Assim, um paradigma vai se perpetuando sem ser questionado, dizendo que “bom é o que vem e fora”, ao ponto de se fazer considerável público enxergar a falta de respeito com tão rica cultura como algo ingênuo, engraçado, leve. Dizer que arte e política não andam juntos é desconhecer toda importância da arte no mundo e desconhecer as construções sociais que nomeiam épocas como por exemplo, o Renascimento, Iluminismo, Expressionismo, Modernismo, etc.


Portanto, aos que se aventuram a uma boa fusão brasileira, deixo aqui uma contribuição em 3 passos.

Primeiro, busque informações de fontes seguras sobre a comunidade ou manifestação popular que deseja fusionar. Faça uma pesquisa de campo, visite o lugar. Se você não puder conviver com essas pessoas nem por um final de semana que seja, assista documentários, suas danças, do que vivem, qual religião predominante. Uma dança é feita de pessoas e pessoas têm vida, costumes, ocupações, crenças, lutas.

Segundo, anote todas as suas descobertas num diário de bordo – um caderno que você possa consultar quando for desenvolver uma fusão com essa tal manifestação cultural pesquisada.

Terceiro, estude as danças e movimentos dessa manifestação cultural. Como o corpo se coloca no espaço, como os pés se organizam no chão, como o quadril se comporta, se os movimentos simbolizam algum gesto do cotidiano, em que época acontece, etc. E reproduza esses movimentos. Dance! Imite o mais próximo que sua corporeidade possa chegar. Repita, repita, repita. E só depois, busque pontos de intercessão e diferenças com as estéticas e poéticas do nosso Tribal. Assim, você terá condições responsáveis de traduzir uma dança popular ou afro-brasileira para nosso Tribal, ou Fusion Bellydance, como muitos têm atualmente nomeado.

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Tribal Brasil - Identidade no Corpo


Kilma Farias (João Pessoa-PB) é bailarina, professora, coreógrafa, produtora e pesquisadora na área da dança. É formada em Licenciatura em Dança e Jornalismo pela Universidade Federal da Paraíba. Mestra em Ciências das Religiões pela UFPB, desenvolveu dissertação voltada para a relação entre presença cênica e espiritualidade na Dança Tribal.  Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >> 

[Tribal Brasil] Tribal Brasil de corpo e saia

por Kilma Farias

           

           A saia é uma materialidade bastante presente no universo das danças do Ventre e Tribal. Há muito me inquieto com as possibilidades de formas e movimentos que rascunham um possível feminino poético no espaço, se fazendo corpo juntamente com a bailarina ou bailarino.

            Ao lançar um olhar sobre as histórias da Dança Moderna Americana, encontro possíveis heranças e pontos de interseção. Pontos esses que começo a investigar no corpo enquanto história que se veste no tempo-espaço do movimento.

            As pistas pelas heranças dançadas da saia me levam a quebrar a cronologia para trazer um véu sobre meu olhar à Dança Moderna Americana; a skirt dance.

            A skirt dance deixa rastros na história da dança através do teatro burlesco e vaudeville no final do século XIX e início do XX, apresentando-se como uma forma de dança popular na Europa e América, influenciando o surgimento do can-can francês.

            Longas saias, inicialmente brancas, conferiam uma poética de pureza e feminilidade romântica às bailarinas. Posteriormente as saias foram ganhando inúmeros babados, mas seu manuseio permaneceu presente, embora no can-can as pernas das bailarinas passam a ser o foco principal de ação e a saia passa a assumir uma qualidade de moldura aos movimentos. Essa é uma questão que merece aprofundamento: os trânsitos das danças populares para os cassinos e cabarets através da exacerbação da sensualidade no corpo da mulher. Pois, a compreensão ocidental de gênero que temos hoje, onde o corpo da mulher é objetivado, inclusive nas danças ligadas a uma ideia de feminino, incluindo as danças do Ventre e Tribal, é reforçada nessa época. Por hora, irei apenas margear essa questão a partir do que me interessa na construção do imaginário da saia nas danças que me movem.

            Partindo desse interesse, observei que pioneiras da Dança Moderna Americana vão buscar no Orientalismo europeu e americano do início do século XX as motivações de seus movimentos e poéticas. Em suas formas de atualização e reelaboração, buscam questionar essa dita objetivação da mulher que reforça a desigualdade de gênero; e a saia entra como protagonista de uma assinatura feminina corporal.

            Judith Lynne Hanna (1999, p. 195) em seu livro Dança, Sexo e Gênero, no capítulo que enfatiza padrões de dominação, mais precisamente no texto “Dança para libertação das mulheres” afirma que: Denunciar, desmantelar e criar, coloca a dança moderna como o movimento que trouxe a resignificação do feminino. Esse movimento surge em libertação ao corpo da mulher e como uma “crítica das mulheres ao sistema do século XIX, que as excluía dos principais papéis econômicos e políticos [...] A afirmação e o controle feminino do corpo eram um impulso da crítica das mulheres” (HANNA, 1999, p.196). Embebidas nessa missão, as mulheres fizeram da dança moderna, em parte, um revide contra a dominação masculina vigente, tanto na dança quanto no dia-a-dia.

            Os movimentos pessoais foram colocados em foco e tudo poderia ser motivo de dança, que aconteceria em qualquer lugar, com ou sem música, com qualquer vestimenta, e não mais os espartilhos e sapatilhas que o ballet clássico da época impunha.
Enquanto o século XX progredia, aos poucos os tabus sobre as partes do corpo que podiam ser mostradas desapareceram. Com o advento dos maiôs e de novos movimentos de dança, os espectadores viram o corpo – entrepernas, nádegas, coxas e seios – de todo ângulo possível. (HANNA, 1999, p. 198).


            As precursoras desse movimento foram Loie Fuller, Ruth St. Denis e Isadora Duncan, dentre outras. Meu olhar chega à bailarina americana Ruth St. Denis (1879-1968) atraída pelo seu gosto e interesse pelo exótico. Ao observarmos a trajetória artística de Ruth St. Denis, vamos contemplar uma história de encontro com o espiritual através da dança, indo buscar fonte de inspiração em diversas estéticas a exemplo da egípcia, indiana, flamenca, tailandesa, chinesa, entre outras.

Na sua escola, a Denishawn School em Los Angeles, Califórnia, passaram nomes como Martha Graham e Doris Humphrey, expoentes da Dança Moderna Americana que influenciam até hoje grande parte de bailarinos do Ocidente, contribuindo com técnicas como contração-expansão e queda-recuperação, respectivamente.

Ruth St. Denis ficou conhecida pelos seus solos, a exemplo de Rahda (1909) e The legend of the peacock (1914), onde retratava a “complexidade e autonomia das mulheres.” [1] Esses solos em muito se assemelham à estética do que conhecemos hoje como dança Tribal. “A mistura do físico e da divindade nas coreografias de St. Denis levou que ela estudasse várias religiões ao longo da sua vida. Em sua opinião, a dança era um ritual e uma prática espiritual.” [2]

            “A complexidade e autonomia das mulheres” retratadas por essas bailarinas, na maioria das vezes através de arquétipos de deidades femininas com suas longas saias que se abrem no espaço nos remetem a uma cultura do feminino e suas implicações socio-histórico e antropológicas em diálogo com as discussões sobre gênero.

            Ao pensar os domínios estruturais e ideológicos das relações entre sexos, os historiadores sociais vão dizer que, para além de possíveis definições de papeis entre feminino e masculino, “O gênero se torna, aliás, uma maneira de indicar as construções sociais [...]” (SCOTT, 1990, p.7) bem como um lugar de legitimação de poder, constituindo-se como “uma categoria imposta sobre um corpo sexuado”. (SCOTT, 1990, p. 7).

            Desse modo, esse “corpo sexuado” dentro das danças do Ventre e Tribal propõe transcender sua condição humana buscando na condição de deidade seu poder simbólico para afirmar sua força enquanto feminino; e a saia passa a ser uma materialidade que impulsiona essa transcendência de condição.

            Essa compreensão nos faz perceber que “A história do pensamento feminista é uma história de recusa da construção hierárquica da relação entre masculino e feminino” (SCOTT, 1990, p. 19). E isso consequentemente contribui sobremaneira para a transformação de visão de mundo dos sujeitos, fazendo emergir o que Hall (2011, p. 34) chama de sujeito pós-moderno através do descentramento do sujeito cartesiano.
[...] o feminismo teve também uma relação mais direta com o descentramento conceitual do sujeito cartesiano e sociológico: ele questionou a clássica distinção entre o “dentro” e o “fora”, o “privado” e o “público”. O slogan do feminismo era: “o pessoal é público” (HALL, 2011, p.45).

            Sim, “o pessoal é público”. Penso que nossas inquietações e reflexões mais internas são laboradas através da arte, e isso ganha uma dimensão pública que busca levantar discussões sobre o que se fala e o que é silenciado em nós através de uma investigação em dança, e das materialidades que elencamos para dar corpo e voz às nossas subjetividades como, por exemplo, a saia.


            Outra influência a utilizar saias em seu trabalho é Margaretha Gertruida Zelle (1876-1917), mais conhecida como Mata Hari. Sua contribuição na dança é controversa, uma vez que se destacou muito mais como cortesã do que como bailarina. Suas saias, quando utilizava, traziam transparências, visto que o seminu foi bastante presente em suas composições. E justamente por esse motivo trago-a para essa discussão. Onde a ausência da saia também é um estado de presença dela.

Desse modo, pensar a ausência da saia enquanto lugar de potência para a ação também foi de fundamental importância no processo, visto que a própria vida se constitui dessa forma: presenças e ausências. Na arte não podia ser diferente: a música é feita de som e silêncio, a dança é feita de movimento e pausa. Na nossa própria respiração há um instante entre a inspiração e expiração. Assim, penso que a saia se faz presente tanto mais se procure deixá-la transparente, invisível, como quem funde a saia com o espaço.

            Mata Hari foi condenada à morte por prestar serviço de dupla espionagem para Alemanha e França durante a Primeira Guerra Mundial e fuzilada sem que fosse provada essa acusação.
A exótica espiã Mata Hari, começa sua carreira de bailarina em Java. Lá tomou os primeiros contatos com a cultura oriental. De volta a Europa, percebeu rapidamente que a experiência vivida na Indonésia poderia servir-lhe como trampolim para entrar na alta sociedade europeia, que carecia de exotismo para transcender a penosa situação econômica. Seu mito causa polêmica dado que a personagem Mata Hari se associou mais ao jogo da sedução, usada como arma política e social, do que à evolução da arte da dança. (PASSOS, 2011, p. 204).[3]
           
            Símbolo de ousadia e força do feminino, Mata Hari foi silenciada no corpo e na saia por seu poder simbólico atrelado à sedução. Não penso que “[...] se associou mais ao jogo da sedução, usada como arma política e social, do que à evolução da arte da dança” (PASSOS, 200, p. 204) porque não penso a arte da dança de modo evolutivo, mas simplesmente como um corpo coletivo em constante mudança, dada a condição de impermanência que nos é oferecida nesse planeta.

            Esse pensamento de impermanência me é trazido pelas práticas orientais das quais sou praticante, a kundalini yoga e o budismo. E que venho desenvolvendo em diálogo com o “cuidado de si” em Foucault, pensando a filosofia como espiritualidade, propondo em minha dissertação de mestrado (PPG-CR/UFPB) uma possível Arte de si através da dança Tribal. Essa impermanência é a experiência de ser fluxo no constante presente onde todas as coisas estão em permanente transformação. Desse modo, não há um passado, um presente e um futuro. Assim como não há o desejo de obter nenhum estado de presença na dança, pois isto seria projetar-se no futuro; e só há o presente num constante devir.

            Isso me motiva a utilizar a saia no Tribal Brasil e a transformá-la em diversas formas, passando por algumas citações corporais que me são caras, oriundas das danças populares e afro-brasileiras, mas também de personalidades femininas da história da dança, dando constante nascimento a essa materialidade, atualizando-a. Tenho encontrado na impermanência um modo poético de olhar para a arte e para a história.
Não pense que o tempo apenas foge. Não vejo o fugir como a única função do tempo. Se o tempo apenas fugisse, você estaria separado do tempo. A razão pela qual você não entende claramente o ser-do-tempo é porque pensa no tempo apenas passando. [...] Se o tempo continua indo e vindo, você é o ser do tempo exatamente agora (TANAHASHI, 1993, p. 92).

            Podemos pensar o bailarino como o “ser-do-tempo” quando consegue se manter exatamente no momento de seu gesto, com todos os seus corpos alinhados (físico, mental, emocional, espiritual) e completamente presente na ação constante da mudança. Assim, a percepção da impermanência implica na compreensão de um outro tipo de temporalidade. Por isso, sinto-me à vontade para ir do terreiro de candomblé às brincadeiras de criança, de Loie Fuller à Mata Hari, pois não há uma linha. Ao invés disso, há uma nuvem.

            Quilici (2015, p. 29) aponta para uma qualidade de ser a partir da impermanência e o cuidado de si: o sujeito extemporâneo. E para fundamentar, trás as “considerações extemporâneas” de Nietzsche. Este aponta para que vivamos nossas experiências do presente saindo do nosso tempo, buscando uma visão de estrangeiro em relação ao próprio tempo para que, ao enxergar perto demais não fiquemos cegos pela atualidade. Desse modo, o extemporâneo lança-se “[...] para fora do círculo fechado do presente histórico e do atual, habitando as margens do seu tempo, para sondar aquilo que ora se apresenta apenas como possibilidade virtual aos seus contemporâneos [...]” (QUILICI, 2015, p. 29). Esse ir e vir no tempo aciona memórias e estas são de fundamental importância no fazer o no pensar do que entendo hoje como sendo o Tribal Brasil.          Nesse sentido, a saia passa a ser um fio condutor do tempo entre tantas vozes e corpos femininos que imprimem suas estéticas e poéticas na história da dança.
           

Referências bibliográficas

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2011.

HANNA, Judith Lynne. Dança, Sexo e Gênero. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

PASSO, Patrícia. Fusión: el universo que danza. Madrid: Esteban Sanz Martinez Editorial, 2011.

QUILICI, Cassiano. O ator-performer e as poéticas de ta transformação de si. São Paulo: Annablume, 2015.

SCOTT, Joan. “Gênero: Uma categoria útil para a análise histórica.” Traduzido pela SOS: Corpo e Cidadania. Recife, 1990.

TANAHASHI, Kazuaki. (Org.). Escritos do Mestre Dogen: A Lua numa Gota de Orvalho. São Paulo: Siciliano, 1993.


[1] Disponível em <http://tribalmind.blogspot.com.br/2011/01/ruth-saint-denis.html> , acesso em 15 de mar. de 2017.
[2] Disponível em <http://tribalmind.blogspot.com.br/2011/01/ruth-saint-denis.html>, acesso em 15 de mar. de 2017.
[3] Tradução minha do original: La exótica espiá Mata Hari, empieza su Carrera de bailarina trás su estância em Java. Allí tomo lós primeros contactos com la cultura oriental. De vuelta a Europa, se percató rapidamente de que la experiencia vivida em Indonesia podría servirle como trampolín para entrar em la alta sociedad europea, que carecia del exotismo para transcender la penosa situación econômica. Su mito causa polémica dado que El personaje Mata Hari se asocó más al juego de la seducción, usado como arma política y social, que a la evolición del arte de la danza.


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