[Tribal Brasil] Tribal Brasil de corpo e saia

por Kilma Farias

           

           A saia é uma materialidade bastante presente no universo das danças do Ventre e Tribal. Há muito me inquieto com as possibilidades de formas e movimentos que rascunham um possível feminino poético no espaço, se fazendo corpo juntamente com a bailarina ou bailarino.

            Ao lançar um olhar sobre as histórias da Dança Moderna Americana, encontro possíveis heranças e pontos de interseção. Pontos esses que começo a investigar no corpo enquanto história que se veste no tempo-espaço do movimento.

            As pistas pelas heranças dançadas da saia me levam a quebrar a cronologia para trazer um véu sobre meu olhar à Dança Moderna Americana; a skirt dance.

            A skirt dance deixa rastros na história da dança através do teatro burlesco e vaudeville no final do século XIX e início do XX, apresentando-se como uma forma de dança popular na Europa e América, influenciando o surgimento do can-can francês.

            Longas saias, inicialmente brancas, conferiam uma poética de pureza e feminilidade romântica às bailarinas. Posteriormente as saias foram ganhando inúmeros babados, mas seu manuseio permaneceu presente, embora no can-can as pernas das bailarinas passam a ser o foco principal de ação e a saia passa a assumir uma qualidade de moldura aos movimentos. Essa é uma questão que merece aprofundamento: os trânsitos das danças populares para os cassinos e cabarets através da exacerbação da sensualidade no corpo da mulher. Pois, a compreensão ocidental de gênero que temos hoje, onde o corpo da mulher é objetivado, inclusive nas danças ligadas a uma ideia de feminino, incluindo as danças do Ventre e Tribal, é reforçada nessa época. Por hora, irei apenas margear essa questão a partir do que me interessa na construção do imaginário da saia nas danças que me movem.

            Partindo desse interesse, observei que pioneiras da Dança Moderna Americana vão buscar no Orientalismo europeu e americano do início do século XX as motivações de seus movimentos e poéticas. Em suas formas de atualização e reelaboração, buscam questionar essa dita objetivação da mulher que reforça a desigualdade de gênero; e a saia entra como protagonista de uma assinatura feminina corporal.

            Judith Lynne Hanna (1999, p. 195) em seu livro Dança, Sexo e Gênero, no capítulo que enfatiza padrões de dominação, mais precisamente no texto “Dança para libertação das mulheres” afirma que: Denunciar, desmantelar e criar, coloca a dança moderna como o movimento que trouxe a resignificação do feminino. Esse movimento surge em libertação ao corpo da mulher e como uma “crítica das mulheres ao sistema do século XIX, que as excluía dos principais papéis econômicos e políticos [...] A afirmação e o controle feminino do corpo eram um impulso da crítica das mulheres” (HANNA, 1999, p.196). Embebidas nessa missão, as mulheres fizeram da dança moderna, em parte, um revide contra a dominação masculina vigente, tanto na dança quanto no dia-a-dia.

            Os movimentos pessoais foram colocados em foco e tudo poderia ser motivo de dança, que aconteceria em qualquer lugar, com ou sem música, com qualquer vestimenta, e não mais os espartilhos e sapatilhas que o ballet clássico da época impunha.
Enquanto o século XX progredia, aos poucos os tabus sobre as partes do corpo que podiam ser mostradas desapareceram. Com o advento dos maiôs e de novos movimentos de dança, os espectadores viram o corpo – entrepernas, nádegas, coxas e seios – de todo ângulo possível. (HANNA, 1999, p. 198).


            As precursoras desse movimento foram Loie Fuller, Ruth St. Denis e Isadora Duncan, dentre outras. Meu olhar chega à bailarina americana Ruth St. Denis (1879-1968) atraída pelo seu gosto e interesse pelo exótico. Ao observarmos a trajetória artística de Ruth St. Denis, vamos contemplar uma história de encontro com o espiritual através da dança, indo buscar fonte de inspiração em diversas estéticas a exemplo da egípcia, indiana, flamenca, tailandesa, chinesa, entre outras.

Na sua escola, a Denishawn School em Los Angeles, Califórnia, passaram nomes como Martha Graham e Doris Humphrey, expoentes da Dança Moderna Americana que influenciam até hoje grande parte de bailarinos do Ocidente, contribuindo com técnicas como contração-expansão e queda-recuperação, respectivamente.

Ruth St. Denis ficou conhecida pelos seus solos, a exemplo de Rahda (1909) e The legend of the peacock (1914), onde retratava a “complexidade e autonomia das mulheres.” [1] Esses solos em muito se assemelham à estética do que conhecemos hoje como dança Tribal. “A mistura do físico e da divindade nas coreografias de St. Denis levou que ela estudasse várias religiões ao longo da sua vida. Em sua opinião, a dança era um ritual e uma prática espiritual.” [2]

            “A complexidade e autonomia das mulheres” retratadas por essas bailarinas, na maioria das vezes através de arquétipos de deidades femininas com suas longas saias que se abrem no espaço nos remetem a uma cultura do feminino e suas implicações socio-histórico e antropológicas em diálogo com as discussões sobre gênero.

            Ao pensar os domínios estruturais e ideológicos das relações entre sexos, os historiadores sociais vão dizer que, para além de possíveis definições de papeis entre feminino e masculino, “O gênero se torna, aliás, uma maneira de indicar as construções sociais [...]” (SCOTT, 1990, p.7) bem como um lugar de legitimação de poder, constituindo-se como “uma categoria imposta sobre um corpo sexuado”. (SCOTT, 1990, p. 7).

            Desse modo, esse “corpo sexuado” dentro das danças do Ventre e Tribal propõe transcender sua condição humana buscando na condição de deidade seu poder simbólico para afirmar sua força enquanto feminino; e a saia passa a ser uma materialidade que impulsiona essa transcendência de condição.

            Essa compreensão nos faz perceber que “A história do pensamento feminista é uma história de recusa da construção hierárquica da relação entre masculino e feminino” (SCOTT, 1990, p. 19). E isso consequentemente contribui sobremaneira para a transformação de visão de mundo dos sujeitos, fazendo emergir o que Hall (2011, p. 34) chama de sujeito pós-moderno através do descentramento do sujeito cartesiano.
[...] o feminismo teve também uma relação mais direta com o descentramento conceitual do sujeito cartesiano e sociológico: ele questionou a clássica distinção entre o “dentro” e o “fora”, o “privado” e o “público”. O slogan do feminismo era: “o pessoal é público” (HALL, 2011, p.45).

            Sim, “o pessoal é público”. Penso que nossas inquietações e reflexões mais internas são laboradas através da arte, e isso ganha uma dimensão pública que busca levantar discussões sobre o que se fala e o que é silenciado em nós através de uma investigação em dança, e das materialidades que elencamos para dar corpo e voz às nossas subjetividades como, por exemplo, a saia.


            Outra influência a utilizar saias em seu trabalho é Margaretha Gertruida Zelle (1876-1917), mais conhecida como Mata Hari. Sua contribuição na dança é controversa, uma vez que se destacou muito mais como cortesã do que como bailarina. Suas saias, quando utilizava, traziam transparências, visto que o seminu foi bastante presente em suas composições. E justamente por esse motivo trago-a para essa discussão. Onde a ausência da saia também é um estado de presença dela.

Desse modo, pensar a ausência da saia enquanto lugar de potência para a ação também foi de fundamental importância no processo, visto que a própria vida se constitui dessa forma: presenças e ausências. Na arte não podia ser diferente: a música é feita de som e silêncio, a dança é feita de movimento e pausa. Na nossa própria respiração há um instante entre a inspiração e expiração. Assim, penso que a saia se faz presente tanto mais se procure deixá-la transparente, invisível, como quem funde a saia com o espaço.

            Mata Hari foi condenada à morte por prestar serviço de dupla espionagem para Alemanha e França durante a Primeira Guerra Mundial e fuzilada sem que fosse provada essa acusação.
A exótica espiã Mata Hari, começa sua carreira de bailarina em Java. Lá tomou os primeiros contatos com a cultura oriental. De volta a Europa, percebeu rapidamente que a experiência vivida na Indonésia poderia servir-lhe como trampolim para entrar na alta sociedade europeia, que carecia de exotismo para transcender a penosa situação econômica. Seu mito causa polêmica dado que a personagem Mata Hari se associou mais ao jogo da sedução, usada como arma política e social, do que à evolução da arte da dança. (PASSOS, 2011, p. 204).[3]
           
            Símbolo de ousadia e força do feminino, Mata Hari foi silenciada no corpo e na saia por seu poder simbólico atrelado à sedução. Não penso que “[...] se associou mais ao jogo da sedução, usada como arma política e social, do que à evolução da arte da dança” (PASSOS, 200, p. 204) porque não penso a arte da dança de modo evolutivo, mas simplesmente como um corpo coletivo em constante mudança, dada a condição de impermanência que nos é oferecida nesse planeta.

            Esse pensamento de impermanência me é trazido pelas práticas orientais das quais sou praticante, a kundalini yoga e o budismo. E que venho desenvolvendo em diálogo com o “cuidado de si” em Foucault, pensando a filosofia como espiritualidade, propondo em minha dissertação de mestrado (PPG-CR/UFPB) uma possível Arte de si através da dança Tribal. Essa impermanência é a experiência de ser fluxo no constante presente onde todas as coisas estão em permanente transformação. Desse modo, não há um passado, um presente e um futuro. Assim como não há o desejo de obter nenhum estado de presença na dança, pois isto seria projetar-se no futuro; e só há o presente num constante devir.

            Isso me motiva a utilizar a saia no Tribal Brasil e a transformá-la em diversas formas, passando por algumas citações corporais que me são caras, oriundas das danças populares e afro-brasileiras, mas também de personalidades femininas da história da dança, dando constante nascimento a essa materialidade, atualizando-a. Tenho encontrado na impermanência um modo poético de olhar para a arte e para a história.
Não pense que o tempo apenas foge. Não vejo o fugir como a única função do tempo. Se o tempo apenas fugisse, você estaria separado do tempo. A razão pela qual você não entende claramente o ser-do-tempo é porque pensa no tempo apenas passando. [...] Se o tempo continua indo e vindo, você é o ser do tempo exatamente agora (TANAHASHI, 1993, p. 92).

            Podemos pensar o bailarino como o “ser-do-tempo” quando consegue se manter exatamente no momento de seu gesto, com todos os seus corpos alinhados (físico, mental, emocional, espiritual) e completamente presente na ação constante da mudança. Assim, a percepção da impermanência implica na compreensão de um outro tipo de temporalidade. Por isso, sinto-me à vontade para ir do terreiro de candomblé às brincadeiras de criança, de Loie Fuller à Mata Hari, pois não há uma linha. Ao invés disso, há uma nuvem.

            Quilici (2015, p. 29) aponta para uma qualidade de ser a partir da impermanência e o cuidado de si: o sujeito extemporâneo. E para fundamentar, trás as “considerações extemporâneas” de Nietzsche. Este aponta para que vivamos nossas experiências do presente saindo do nosso tempo, buscando uma visão de estrangeiro em relação ao próprio tempo para que, ao enxergar perto demais não fiquemos cegos pela atualidade. Desse modo, o extemporâneo lança-se “[...] para fora do círculo fechado do presente histórico e do atual, habitando as margens do seu tempo, para sondar aquilo que ora se apresenta apenas como possibilidade virtual aos seus contemporâneos [...]” (QUILICI, 2015, p. 29). Esse ir e vir no tempo aciona memórias e estas são de fundamental importância no fazer o no pensar do que entendo hoje como sendo o Tribal Brasil.          Nesse sentido, a saia passa a ser um fio condutor do tempo entre tantas vozes e corpos femininos que imprimem suas estéticas e poéticas na história da dança.
           

Referências bibliográficas

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2011.

HANNA, Judith Lynne. Dança, Sexo e Gênero. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

PASSO, Patrícia. Fusión: el universo que danza. Madrid: Esteban Sanz Martinez Editorial, 2011.

QUILICI, Cassiano. O ator-performer e as poéticas de ta transformação de si. São Paulo: Annablume, 2015.

SCOTT, Joan. “Gênero: Uma categoria útil para a análise histórica.” Traduzido pela SOS: Corpo e Cidadania. Recife, 1990.

TANAHASHI, Kazuaki. (Org.). Escritos do Mestre Dogen: A Lua numa Gota de Orvalho. São Paulo: Siciliano, 1993.


[1] Disponível em <http://tribalmind.blogspot.com.br/2011/01/ruth-saint-denis.html> , acesso em 15 de mar. de 2017.
[2] Disponível em <http://tribalmind.blogspot.com.br/2011/01/ruth-saint-denis.html>, acesso em 15 de mar. de 2017.
[3] Tradução minha do original: La exótica espiá Mata Hari, empieza su Carrera de bailarina trás su estância em Java. Allí tomo lós primeros contactos com la cultura oriental. De vuelta a Europa, se percató rapidamente de que la experiencia vivida em Indonesia podría servirle como trampolín para entrar em la alta sociedad europea, que carecia del exotismo para transcender la penosa situación econômica. Su mito causa polémica dado que El personaje Mata Hari se asocó más al juego de la seducción, usado como arma política y social, que a la evolición del arte de la danza.


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