[Dançando Narrativas] Quem tem medo do Submundo?

por Keila Fernandes


O submundo, mundo inferior, ou ainda mundo dos mortos, está presente na mitologia de várias culturas, e para cada uma ele tem seu significado e importância para o funcionamento da vida.

Na nossa cultura ocidental cristã, é associado ao inferno, e o termo carrega um  significado pejorativo, como algo ruim a ser temido.


Mas quando olhamos para a mitologia e suas interpretações diversas, começamos a compreender melhor que esse lugar obscuro é temido por ser misterioso e desconhecido, pois não está no domínio dos vivos.


O submundo é, sim, o lar dos mortos.


Mas isso não é necessariamente ruim.


Afinal, ritos funerários sempre indicaram preocupação com o que ocorre com as almas após a morte. Os mortos precisam de um lugar para onde ir e descansar.


No mito sumério da descida de Inanna ao submundo, este é governado pela deusa Ereshkigal, que tem aos seu lado os Anunnaki, os deuses da justiça. O reino de Ereshkigal é para onde vão os mortos que, tendo cumprido suas obrigações com os deuses, mantém na morte o mesmo status que possuíam em vida. 


Segundo fontes acadianas, é no neste mundo onde vivem também entidades obscuras, como as deidades da morte e do mal.


Inanna desce ao submundo para visitar a irmã em luto pelo marido (embora tal razão ainda seja obscura), e é forçada a deixar partes de suas vestes e jóias em cada um dos sete portais até chegar nua e curvada ao trono de Ereshkigal. Segundo o mito, o mundo dos mortos é um lugar do qual ninguém poderia voltar, assim Inanna é castigada pela irmã que a mata. Com a intercessão de sua criada Ninshubur, Ianna é ajudada por Enki, deus da sabedoria. Ele envia dois seres para dar a ela o alimento e a água da vida e revivê-la.


Porém as leis do mundo do mortos são divinas e não podem ser desafiadas, e para que Inanna ascenda e retome seu lugar, ela precisa deixar em seu lugar alguém para substituí-la, e o escolhido é seu esposo, Dumuzi, que não guardou luto por ela.


“A Rainha da Noite”, relevo babilônico, 1800 - 175 a.C. Possível representação de Ereshkigal. As asas fechadas e os chifres indicam se tratar de uma divindade. Os instrumentos de medida, indicam a ligação com a justiça.


O submundo egípcio era o reino de Osíris e também a morada dos mortos. 

Na mitologia egípcia, a cada pôr do sol, Rá morria e mergulhava no submundo. Então ele precisa atravessá-lo em seu barco e, com a ajuda do deus Seth (deus do deserto e do caos), ele enfrentava a serpente Apep, que desejava destruir o mundo dos vivos. E assim eram as noites para os egípcios. Cada amanhecer significava o ressurgir e a vitória de Rá sobre Apep e seu retorno da jornada ao mundo dos mortos.


Representação do Tribunal de Osíris retirada o Livro dos Mortos (1580 - 1560 a.C.). A cena  representa o julgamento da alma, no qual o coração era pesado por Anúbis, deus da mumificação, e o julgamento era presenciado por Maat, deusa da justiça, e Toth, deus do conhecimento e escriba do mundo dos mortos.



Dentro da cultura cristã o submundo é o Inferno, lugar para onde vão as almas condenadas dos pecadores para sofrerem tormentos eternos. Também é o lar dos anjos caídos que se rebelaram contra Deus e foram encerrados no abismo. No entanto, essa ideia de Inferno começa a ser construída apenas na Idade Média, visto que no texto bíblico não há referências a um local com esse nome ou com a estrutura tão conhecida de círculos e torturas. Tal visão se cristalizou, em boa parte, por causa da obra de Dante Alighieri, A Divina Comédia.


Ilustração de Gustave Doré representando Dante Alighieri e Virgílio em sua passagem pelo sétimo círculo do Inferno (1861 -1868).


Obscuro e desconhecido, o mundo inferior coloca medo em humanos e deuses, mas aqueles que se atrevem a se aventurar por ele, saem transformados e dotados de mais conhecimento.

A justiça também é um conceito muito presente no mundo inferior. Seja por meio da punição aos pecadores, seja pelo tribunal dos grandes deuses, é no mundo dos mortos onde todas as ações são julgadas.


Além disso, é o lugar onde habitam divindades, ideias e sentimentos ocultos, considerados perigosos e temidos por muitos. Entidades ligadas à morte, à dor, ao destino, à magia, aos segredos e à escuridão. Seres necessários para a existência e equilíbrio do mundo, mas que nem todos estão dispostos a compreender ou celebrar.


Trazendo para nosso contexto, é comum que a imagem em nossa mente esteja associada a coisas ruins, ilegais e escondidas. Como o submundo do crime ou o próprio inferno, por exemplo.


No entanto, o conceito de submundo, em sua origem não é pejorativo: 


Submundo = o mundo que está embaixo do “nosso”  mundo, do mundo dos vivos; associado ao mundo dos mortos, lar das almas condenadas, ao inferno (do latim infernum = as profundezas da terra, mundo inferior).


Nesse sentido, falamos de submundo para expressar um espaço  onde se escondem coisas obscuras e misteriosas, consideradas inapropriadas e assustadoras demais para o  “mundo real”.


Underworld Fusion Dance Co. Coreografia "Forças Primordiais”, Underworld Fusion Fest, 2018. Foto: Carla Lorentz


O nome da nossa companhia, Underworld (Submundo), veio do nome do festival Underworld Fusion Fest, um espaço para o Dark Fusion e outras fusões experimentais. Um espaço para valorizar a liberdade artística dos bailarinos e bailarinas, um lugar seguro para se expressar o horror, o macabro, o alternativo, o feio e os sentimentos mais profundos que compõem a nossa arte.


Quando assumimos esse nome para o grupo, quisemos trazer conosco essa carga, pois para nós, o submundo é onde nos encontramos, é onde o nosso Dark Fusion se encontra e onde muitas expressões artísticas se encontram também.


Quando nos atrevemos a trazer aos palcos temas incômodos ou considerados pesados. Quando damos vida às histórias e personagens que fogem da lógica e da narrativa cristã-ocidental, quando questionamos os padrões impostos, quando escancaramos, por meio da dança, que nem só de sentimentos bonitos vivem as pessoas, abrimos as portas do mundo inferior.


E aqui peço licença para retomar as jornadas de Inanna, Rá e Dante e as tornar parte das nossas. Descer ao submundo é sofrido, porém faz parte do nosso crescimento. Fazer essa jornada pelos nossos caminhos mais sombrios nos coloca em contato com muitos segredos e conhecimento, e nos faz emergir transformados.


O submundo está de portas abertas. E nós te convidamos a entrar.

 


Referências



Egyptian  Mythology: A Concise Guide to the Ancient Gods and Beliefs of Egyptian Mythology. Hourly History. 2016


KRAMER, Samuel Noah. Os Sumérios: Sua História, Cultura e Caráter.Portugal, Livraria Bertrand, 1977.


KRAMER, Samuel Noah, WOLKSTEIN, Diane. Inanna, Queen of Heaven and Earth: Her Stories and Hymns from Sumer. New York, Harper and Row Publishers, 1983.


PRITCHARD, James B. Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament. Third Edition With Suplement. Princeton University Press, 1969.


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Dançando Narrativas


Keila Fernandes (Curitiba-PR) é escritora, professora de história e  historiadora, especialista na área de Religiões e Religiosidades e História Antiga e Medieval. É aluna da bailarina e professora Aerith Asgard e co-diretora do Asgard Tribal Co. Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >> 
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