[Dançando Narrativas] Lenda, Mito e Folclore: é tudo a mesma coisa?

por Keila Fernandes

Não, não é.


Já conversamos aqui sobre mitologia e personagens mitológicos e como eles estão presentes na nossa dança. Para além deles, personagens de lendas e do folclore também costumam ocupar um lugar especial do gosto de muitas bailarinas e bailarinos.


Contudo, os conceitos de lenda, mito e folclore, por serem complexos, podem acabar se misturando e se confundindo, e nós podemos cometer equívocos ao atribuir a um personagem ou narrativa a ideia de folclore ou lenda, quando este é parte de uma mitologia.


Pensando nisso, trago aqui, de forma simplificada, os significados destes conceitos para quando quisermos usá-los em nossa dança.


Ao contrário do que se pensa (e foi amplamente difundido), mito não é sinônimo de mentira. Os mitos são narrativas sagradas (atenção a essa palavra) que explicam o mundo e a vida. Eles nos colocam em contato com a forma como outros povos enxergam a realidade e entendem a natureza. E a mitologia, o conjunto e também o estudo dos mitos, ela está presente nas narrativas cristãs, na espiritualidade indígena e nas religiões de matriz africana.


O folclore é um conceito complexo, e também é um campo de estudo. A palavra foi cunhada por William John Thoms, em 1846, a partir dos termos anglo-saxões folk (povo) e lore (sabedoria/conhecimento) e ainda gera muitos debates e controvérsias. Mas ajuda se pensarmos na etimologia da palavra e nos lembrarmos que estamos falando de sabedoria e conhecimento popular.


O folclore abrange uma variedade cultural grande. Ele pode ser pensado como o conjunto de crenças, contos, causos, lendas, músicas, danças, festas, histórias, costumes, tradições, comidas, práticas cotidianas e outras expressões populares.


Boi Caprichoso e Boi Garantido: Festival Folclórico de Parintins.

As lendas são parte do folclore. A origem do termo vem do latim medieval legenda, e significa “aquilo que deve ser lido”. As lendas, inicialmente, contavam as histórias dos santos. E manteve esse sentido no Brasil do século XIX.

Com o tempo, o significado do termo foi se transformando. Hoje, quando falamos em lendas, estamos falando de narrativas fantásticas de origem popular, geralmente transmitidas de maneira oral (e também podem ser registradas de forma escrita). As lendas narram coisas que ocorreram com alguém em um local e tempo específico. Seus acontecimentos podem ser reais, ou não, assim como podem misturar ficção e realidade. 


Contudo, por mais que sejam conceitos diferentes e possam ser estudados e trabalhados separadamente, às vezes um perpassa o outro. A cultura está em constante movimento, e essas expressões acabam se encontrando e se relacionando em um cruzamento cultural onde podemos enxergar a continuidade das narrativas mitológicas e/ou folclóricas.


Não, o mito não é folclore. 


Como já foi dito, ele representa a realidade e a sacralidade para seus respectivos povos. E as narrativas mitológicas são tão poderosas que, mesmo sendo histórias muito antigas, sobreviveram até hoje, seja na crença, no imaginário ou na cultura pop.


A força e a permanência dos mitos pode ser verificada no folclore e nas lendas que bebem dele. Por exemplo: a figura das fadas. Originárias da mitologia dos povos celtas, após o domínio romano e a cristianização, elas permaneceram em lendas e fazem parte do imaginário popular, presentes em lendas e nos famosos contos de fadas, inicialmente narrativas populares que tinham o intuito de ensinar algo, e   foram registradas posteriormente, e hoje chegam até nós na forma de filmes e animações.


"3 Who Stand" de Brian Froud (2011/2012)/Sininho, de Peter Pan. - Disney (1953)

Ou então  o Curupira, entidade protetora das florestas que tem sua origem na mitologia Tupi e hoje aparece nas narrativas folclóricas. Nesse caso devemos nos atentar para o contexto de colonização do nosso país. Curupira foi descrito pelo padre jesuíta José de Anchieta como um demônio que atacava pessoas nas florestas e para quem os indígenas deixavam oferendas para evitar tais ataques. Assim, essa entidade teve sua imagem deturpada pela ótica cristã, e foi se transformando dentro do imaginário popular, tendo suas origens, por muitas vezes, negligenciadas e ignoradas.


Por isso, compreender que, apesar de possuírem uma ligação, mito e folclore não são a mesma coisa, é muito importante pois, como já dito anteriormente, a mitologia carrega a identidade cultural e as crenças de um povo, e embora o folclore seja o conhecimento popular, é necessário cuidado para não enxergarmos ambos de maneira equivocada, e para  trabalhá-los de forma séria.


Principalmente no que diz respeito à espiritualidades e cosmogonias indígenas, que, com o contato com os colonizadores, acabaram por penetrar no imaginário popular, e com o tempo foi sendo apagada e infantilizada em obras que tiram das narrativas indígenas o seu caráter sagrado e sua importância para seus respectivos povos.


Então, mesmo estando presentes em narrativas folclóricas, devemos sempre lembrar de que são parte de mitologias (pois estamos falando de povos diversos, com cosmogonias diversas) e um sagrado importante.


Compreender o folclore, é compreender nossa história. É entender que a cultura é mutável e adaptável. É entender o sincretismo religioso e cultural, é nos aproximar das nossas origens, da nossa linguagem e entender a diversidade enorme de nosso país. E assim, quando levarmos ao palco traços de nossa cultura, fazer isso de maneira consciente e respeitosa, valorizando as fontes das quais bebemos.



Referências bibliográficas:



BENJAMIN, Roberto. O Conceito de Folclore. In.: UNICAMP: Projeto Folclore. Disponível em <https://www.unicamp.br/folclore/Material/extra_conceito.pdf>


CASEMIRO, Sandra Ramos. A Lenda da Iara: nacionalismo literário e folclore. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo. 2012.


COSTA, William. Entendendo o Folclore. In: Academia.Edu. Disponível <https://www.academia.edu/33365609>


MUNDURUKU, Daniel. Sobre mitologias e outras narrativas. YouTube. 16/03/2021. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=9h6oq3Gc58M>


Pensando perspectivas decoloniais sobre o folclore brasileiro. In: Nonada. Disponível: <http://www.nonada.com.br/2021/02/folclore-brasileiro-decolonial/>


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Dançando Narrativas


Keila Fernandes (Curitiba-PR) é escritora, professora de história e  historiadora, especialista na área de Religiões e Religiosidades e História Antiga e Medieval. É aluna da bailarina e professora Aerith Asgard e co-diretora do Asgard Tribal Co. Clique aqui para ler mais post dessa coluna! >> 
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