por Hölle Carogne
Na postagem deste mês a coluna Venenum Saltationes
dá início a um novo projeto: a série Desvendando.
Neste projeto, algumas coreografias com
conceitos místicos serão desvendadas, através da entrega da (o) bailarina (o)
ao revelar os significados ocultos por trás destes trabalhos coreográficos.
No primeiro capítulo desta série, a
bailarina Patricia Nardelli fala sobre seu solo Erínia!
Espero que gostem!
Venenum Saltationes: Quando e como surgiu
a vontade de criar Erínia?
Patricia Nardelli:
A vontade de criar Erínia veio em 2012, talvez não muito com esse nome, mas já
com essa ideia. Eu tinha acabado de me mudar para Porto Alegre e tinha decidido
que queria voltar a dançar a sério. Eu tenho uma história bem instável com a
dança do ventre, que pratico desde os 16 anos, passava alguns anos fazendo aula
e parava por outros, depois voltava. Acho que faltava alguma coisa na dança do
ventre que me fisgasse de vez. Antes de me mudar eu tinha começado a fazer
aulas de tribal fusion em Brasília e tinha me apaixonado, então quando vim para
Porto Alegre comecei a procurar aulas. Eu estava num relacionamento bastante disfuncional
e o término dele me deu um gás para criar uma coreografia de tribal pela
primeira vez. Na época minha maior referência de dança era o ATS® e eu tinha bem
pouco estudo de técnica. Foi uma decisão muito marcante. Dois anos depois eu
decidi retomar a Erínia para o evento “Noite Tribal na Taberna”, um pouco na
ideia de aprofundar meu comprometimento com a dança.
Versão da
coreografia Erínia para o evento Noite Tribal na Taberna:
Eu via bailarinas
que admirava, como a Bruna Gomes e a Joline Andrade (que sou muito grata por
ter como professoras), e elas pareciam ter um ou dois trabalhos principais ao
longo do ano. Me dei conta de que essa dedicação poderia me fazer evoluir muito
em técnica e em concepção coreográfica e escolhi minha primeira coreografia
para começar a trilhar esse caminho. Trabalhei na Erínia durante todo o ano de
2014, com a ajuda da Bruna Gomes, e ela finalmente ganhou a cara e a forma que
me agradou. Foi um processo muito precioso que quero seguir tendo, acho
importante nesse meu momento valorizar a conexão profunda com alguns poucos
trabalhos, ao invés de criar montes de coreografias que acabam não comunicando
seu propósito da melhor maneira que poderiam.
Versão da
coreografia Erínia no ano de 2014. Vídeo do evento Brasil Vem Dançar:
Venenum
Saltationes: Do que se trata este trabalho? Qual o assunto abordado?
Patricia Nardelli:
Como eu mencionei acima, Erínia surge bastante por conta de um relacionamento disfuncional
que eu estava vivendo. Foi um término bastante ruim. Na mitologia, as Erínias
são ligadas à vingança, são entidades que vingam os crimes dos homens e os
perseguem inclusive após a vida, são persistentes e possuem uma fúria que não
pode ser aplacada. Pensando nessa história dá pra ver que elas estão bastante
ligadas ao sentimento de culpa interno também, é a culpa que faz com que
fiquemos revivendo nossos pecados e erros. Esses são os dois grandes temas da
coreografia, a vingança e a culpa.
Quando eu comecei
a criá-la, lá em 2012, ainda sem saber que esse seria seu nome, eu queria
trabalhar a minha vontade de vingança, por assim dizer, e também a culpa que eu
sentia com relação à outra pessoa. Ela surge de um processo bastante pessoal.
Então Erínia é sobre querer se vingar por se sentir injustiçada e sobre se
culpar por estar em uma situação ruim, mas é também sobre o início da minha trajetória
de entender a dança enquanto um processo terapêutico, capaz de me fazer lidar
com temas e momentos difíceis através do movimento corporal. Eu realmente
acredito que colocar o corpo em movimento resolve vários 'nós' internos sem a
gente se dar conta. Para uma pessoa que lida com transtornos psiquiátricos pode
ser uma ferramenta importante. E foi a Erínia quem me ajudou a descobrir isso,
porque depois dela eu nunca mais consegui parar de dançar e me enveredei por
caminhos além da dança tribal. Eu mergulhei um pouco nessa figura mitológica e
comecei a trabalhar pensando nos movimentos que ela teria, na sua configuração
corporal e nos seus motivos para existir. Foi um processo interessante de
criação de personagem que eu nunca tinha feito.
Venenum
Saltationes: Existe alguma linguagem oculta por trás de Erínia?
Patricia Nardelli:
No início existia uma mensagem para uma pessoa, mas isso acabou ficando para
trás à medida que o tempo passou e que a coreografia e a dança tomaram outra
dimensão na minha vida. Acho interessante pensar como podemos partir de
experiências estritamente pessoais e transformá-las em algo que gere conexão e
comunicação entre as pessoas. Acho que é a habilidade mais interessante da
arte: essa capacidade de transformar algo interno e tão individual em algo
maior e mais abrangente, sem que a gente precise estar entendendo aquele
trabalho da mesma forma. A gente nunca sabe quais significados nosso trabalho
vai ter depois de solto no mundo, e eu acho isso bastante mágico. Se existe uma
linguagem oculta por trás de Erínia, e de todos os meus trabalhos, é essa.
Claro que existe
também um fascínio pelas figuras mitológicas e eu não vou fugir do óbvio de
dizer que elas nos são tão caras justamente porque falam sobre aspectos humanos
presentes em todos nós. Eu acho muito poderoso entrar em contato com esses
arquétipos e descobrir de que forma eles existem e se desenvolvem em nós mesmos.
Então existe essa linguagem oculta que fala um bocado sobre conexões
universalizadas entre os seres humanos, sobre inconsciente coletivo, que é um
pouco próxima da ideia que faço sobre o sagrado e o divino (e,
consequentemente, sobre o profano, porque essas coisas sempre andam juntas).
Erínia é uma forma de honrar tudo isso, mas ela surgiu com muita naturalidade,
todas essas percepções foram se desenrolando ao longo do processo.
Venenum
Saltationes: Com quem Erínia tenta se comunicar? E o que ela quer dizer?
Patricia Nardelli:
Erínia tenta se comunicar com todos nós, justamente porque fala de um aspecto
humano que todos temos. Eu tenho uma certa ressalva em contar o que o trabalho
quer dizer, porque gosto de praticar o desapego sobre os significados e também
porque acredito fortemente que o significado de um trabalho não pertence a sua
criadora, mas sim às pessoas que recebem a obra. Mas pensando para responder
essa pergunta, acho que eu diria que Erínia quer falar sobre como nossos
sentimentos podem nos transformar. Na minha última apresentação eu comecei a
enxergá-la como uma jornada. É sobre ser uma pessoa que, a partir de um evento
específico, começa a se tornar outra porque imersa em sentimentos negativos, de
vingança e de culpa. E essa outra pessoa é monstruosa porque tem a ver com
encarar nossos lados menos nobres. Eu não quero de modo algum dizer que é
moralmente errado que a gente os sinta e os viva, não acredito que seja
possível não ter em nós aspectos monstruosos e assustadores, que tentamos
reprimir. Acho que o conhecimento sobre nossas sombras é essencial para nosso
crescimento pessoal e enquanto humanidade. Quando conhecemos algo, podemos
encontrar estratégias para lidar com aquilo de formas menos destrutivas. Erínia
é sobre isso, sobre abraçar esses sentimentos e angústias, sobre abraçar a
raiva e a culpa. Eu acredito muito no poder de tudo que nos angustia. Mas me
interessa muito mais saber o que Erínia disse para cada um que a viu do que
dizer o que eu quis falar com ela.
Venenum
Saltationes: Comente sobre os processos de criação de Erínia.
Patricia Nardelli:
A primeira Erínia saiu um pouco no susto, sem pensar muito sobre. Quando decidi
retomá-la em 2014 quis usá-la como uma oportunidade de trabalhar mais na minha
técnica e em dar um formato que fizesse mais sentido estético para mim. A primeira
Erínia era muito sobre usar o repertório que eu tinha e ver se era possível
criar algo com aquilo. Em 2014 ela se tornou mais madura e eu comecei a dar um
formato que era mais a minha cara. Houve muito trabalho de movimento envolvido,
acho que às vezes o trabalho com uma temática mais dark carece de trabalho de
corpo e eu não queria que esse fosse o meu caso. Então trabalhei bastante em
cada um dos movimentos que decidi utilizar. Nesse processo, a supervisão da
Bruna foi essencial, ela fez com que eu arriscasse movimentos que achava que
não era capaz de fazer e me ajudou a trabalhar a técnica e o corpo. Tivemos
muitas conversas sobre a concepção também e isso me fez enxergar a coreografia
por muitos ângulos.
Acho que o
entendimento do personagem foi o processo criativo mais importante nisso tudo,
porque foi através dele que os movimentos foram pensados. Eu parti, desde o
início, de elementos visuais associados às figuras das Erínias, como ter
serpentes nos cabelos e asas. Com o tempo os elementos comportamentais dessas
figuras ganharam importância também, em especial o fato de gritarem os pecados
dos homens em seus ouvidos. Mas por muito tempo minha Erínia ainda era muito sã
e eu sentia falta de algo mais atormentado nela, acho que fiquei bastante tempo
presa em uma estética que não me satisfazia. Quando eu comecei a entender que Erínia
não era uma personagem fora de mim que eu precisava emular, mas sim um aspecto
de mim mesma, tudo mudou.
Foi quando
consegui introduzir elementos que causassem mais estranheza e também percebi
que a Erínia em mim era muito mais doce do que eu pensava a princípio. Foi aí
que ela virou uma jornada sobre tornar-se monstro. As referências foram
fundamentais, já quase no final do processo eu me reencontrei com o arco 'entes
queridos' da história em quadrinhos Sandman, do Neil Gaiman. Eu não me lembrava
que a história girava em torno de uma personagem que se tornava uma Erínia e
relê-la foi muito importante para a construção da minha personagem.
Então acho que em
resumo o processo envolve buscar referências que nos ajudem a ver o trabalho
por ângulos diferentes, trabalhar o corpo para receber as necessidades que a
coreografia vai requerer, e entender que o personagem não está fora de nós, mas
é um aspecto da nossa própria subjetividade.