O Tribal Brasil e a mística implícita na dança

por Kilma Farias


Cia Lunay


                O corpo festivo das danças populares traz em si não apenas gestos e passos das manifestações profanas, mas também uma gama de símbolos e indícios de uma religiosidade atrelada ao sagrado.

            Sendo danças como a Afro, o coco, o Cavalo Marinho, o Jongo, a Capoeira, o Maracatu, entre outras, pontos de partida para investigações de movimento no Tribal Brasil, assimilamos, contudo, a espiritualidade que as permeiam, mesmo que de modo não intencional.


            Muitos são os grupos que se utilizam dessa mística na composição coreográfica para Tribal Brasil. Só para citar alguns grupos e solistas temos Carla Brasil, Carol Marques, Cia Lunay, Shaman Tribal, Trupe Mandalah, Aquarius Tribal Fusion, Bela Saffe, entre outros.
                  Em 2014, a Shaman Tribal Company apresenta a Catimbozada no Tribal Fest, sendo, ao meu vez, um marco histórico e memorável para esse assunto que venho conversar.


           Mas, antes da dança trazer símbolos, mitos e assuntos referentes ao sagrado, evoco a dança como um ato intimamente ligado ao “algo mais”, para além da própria dança. Dançar é um modo de estar no mundo. Ao mesmo tempo êxtase [1] e racionalidade. “Não apenas jogo, mas celebração, participação [...].” (GARAUDY, 1980, p. 13). Nesse sentido, a dança passa a ser, para além da técnica, uma forma de viver, de perceber e ser percebido, trazendo a experiência de que o sagrado passa pelo corpo físico, revelando através do movimento e suas implicações simbólicas, plenas de memória, uma narratividade que se escreve sem palavras, que a dança é ao mesmo tempo, ciência, arte e religião.


Shaman Tribal Co.

            Vejo a dança essencialmente como uma forma de comunicação com o mundo e entre mundos. A dança se faz dança pela percepção do outro, tornando o sobrenatural presente e o homem potente. O corpo que dança se estabelece como um mediador de realidades que se constituem em um dado contexto, sendo expressão representativa de determinada sociedade, fomentando emoções diversas no bailarino que dança e em quem o percebe, transformando o ato de dançar em uma experiência fenomenológica.

            Carla Brasil desenvolve em São Paulo uma nova linha do Tribal Brasil, trata-se da Dança Tribal Ritualística Performática. O estilo ganhou projeção nacional, inclusive através de participação no programa Encontros de Fátima Bernardes, na Rede Globo de Televisão.

            No vídeo, solo de uma aluna de Carla Brasil, explorando o estilo: 



            O estado do corpo que dança plasma em si, no outro que testemunha e no espaço onde a cena acontece, realidades concomitantes que se estabelecem através de relações.


            Assim, podemos supor que aquele que dança é o mesmo ator que se percebe a si mesmo, pois não estão um diante do outro. Em vez disso, são concomitantes em uma mesma realidade. Desse modo, as sensações que uma dança traz não são nem causa nem consequência, mas percepção. Da mesma forma, aquele que observa o corpo que dança, não o percebe apenas com os olhos ou com os ouvidos, ou com qualquer um dos sentidos, mas o percebe além dos cinco sentidos. Essa relação coloca a dança como uma experiência mística ou espiritual, para além da objetividade captada pelos cinco sentidos.


Carla Brasil

            Na Lunay, os temas referentes à mística que permeia as danças populares e afro-brasileiras é uma tônica. No vídeo, alusão à rainha Nzinga e seu mito: 



            Tive a oportunidade de pesquisar os arquétipos de Iansã, Iemanjá e Oxum para compor três solos distintos. O que teriam tanto em comum esses três trabalhos, além da matriz Afro? Penso que a simplicidade de aliar o “algo mais” à técnica para conseguir “arrepiar” os presentes no teatro. Não pelo virtuosismo ou complexidade, mas pelo contrário, pelo simples. Porque o corpo simplesmente dança.

                Quando esse corpo se move, no ato da dança enquanto expressão de arte cênica, todo um mundo se move com ele. A dança é uma das mais antigas formas de comunicação entre o homem e seu criador. Por esse motivo, muitas das danças tornaram-se sagradas, não pela dança em si, mas pelo que elas representam. Desse modo, a importância da nossa vida e possíveis entendimentos de mundo, assim como possíveis entendimentos de formas estar no mundo, perpassam pela dança. O universo dança constantemente, pois tudo está ao mesmo tempo em perfeito equilíbrio e em movimento: as estrelas, as galáxias, os cometas, os planetas e tudo que existe. E porque estão em movimento e em equilíbrio, estão em evolução – é a dança da vida. Na natureza, tudo dança. E nessa dança, podemos decifrar os traços dos antigos valores religiosos.

Referências bibliográficas

ALVES DOS SANTOS, Rosileny. Entre a razão e o êxtase: experiência religiosa e estados alterados de consciência. São Paulo: Edições Loyola, 2004.

GARAUDY, Roger. Dançar a vida. São Paulo: Nova Fronteira, 1980.

GIL, José. Movimento Total. O corpo e a dança. São Paulo: Iluminuras, 2004.




[1] “[...] êxtase é um estado de alegria indizível ou de tristeza profunda. Além de estado de excitação física generalizada ou estado de apatia extrema, trata-se de uma comoção psíquica que, dependendo do valor motivacional, exprime sua intensidade no próprio evento.” (ALVES DOS SANTOS, 2004, pg 38).



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