Calça Gênio

por Anamaria



O festival está para começar. O teatro está repleto e as luzes já se apagaram. Todos ali aguardam em silêncio. Quando as cortinas se abrem, ela entra em cena, caminhando pelo palco com passos sensuais e ritmados com o samai de Lamma Bada. Os seus movimentos se soltam expansivos diante dos olhares de todos; fluem plenos e livres sob a encantadora ondulação que a dança dela reverbera no panejado hipnotizante do shalwar que ela veste; ela cria em torno de si uma atmosfera de enlevos bem diante do público que ela tem cativo sob seus fascínios.




Para este texto, vou começar dificultando um pouquinho a vida de vocês quanto ao tema escolhido, evitando ao máximo o uso de determinados termos por razões que mais tarde explicarei.



As calças bufantes – conhecidas como “calças Aladdin”, “calças gênio”, “calças balão”, entre outros – foram introduzidas à moda Ocidental por Paul Poiret por volta de 1909. Muito embora elas tenham sido inspiradas em modelos orientais existentes há cerca de 2.000 anos – em calças turcas chamadas “şalvar”, “shalwar” ou “charval” – o termo mais popular para designá-las acabou sendo mesmo “calças harém” quando as procuramos em fontes de idioma inglês.


Ilustração 1: Século 19 - Mulher da Argélia com trajes tradicionais


Assim, temos que, em 1909, o estilista Paul Poiret introduziu na moda essa peça como parte de seus esforços para reinventar e “libertar” a moda  feminina ocidental dos opressivos paradigmas da moda de sua época. A peça acabou causando um certo desconforto da sociedade, pois, até então, era convencionado que mulheres ocidentais não usassem calças. Além disso, a referência feita por Poiret à cultura oriental ao fazer uso de imagens de haréns e sultões para romantizar o novo estilo foi considerada imoral e inapropriadamente sexualizada, já que ela ligava mulheres à fantasia de liberdade – inclusive sexual – inspirada pelo imaginário em voga, bem como pela sensação bem real de amplitude gerada pela roupa solta e folgada que, diga-se de passagem, é muito diferente daquela causada pelos espartilhos da época. 


Ilustração 2: O modelo de Poiret

Como não poderia deixar de ser, houve críticas vindas também de parte dos outros estilistas, acusando-o, inclusive, de apropriação cultural; porém esses mesmos acabaram lançando coleções influenciadas pelas criações de Poiret. Prova disso é que há quem diga que ele não foi o único a trazer este estilo de calças para a Europa, pois estilistas como Jeanne Margaine-Lacroix e Bourniche também apresentaram peças semelhantes nos idos de 1910. 



E tem mais! Antes desse “boom” ocorrido nos anos 1900, podemos encontrar as calças bufantes sendo usadas já em meados dos anos 1800 por ativistas dos direitos femininos – destaque aqui para Amanda Bloomer – tendo “bloomer” até se tornado um dos nomes ingleses para esse tipo de calças que acabaram popularizadas como indumentária icônica na luta pelos direitos das mulheres!



Ilustração 3: As calças na época de Amelia Bloomer


Mas, sigamos adiante e entre idas e vindas,  veremos que as "calças Aladdin" não deixaram mais a moda ocidental, sendo especialmente apreciadas por bailarinos, haja vista que elas proporcionam a eles plena liberdade de movimento.


Ilustração 4: Uso na moda contemporânea





Tá. Até aqui, tudo bem. Mas o que que a dança tem a ver com as calças?



Encontrei as "calças Aladdin" ou balão sendo usadas na dança árabe andaluz – Raks al Andalus – no American Tribal Style® e no Tribal Fusion. No ATS® as calças podem ser usadas sozinhas ou sob as saias rodadas e em uma infinidade de variações de conjunto: com cholis e tops de moeda, com túnicas, com cintos, com xales, xales de pompom (tassels). A preferência mesmo é de que elas sejam feitas com tecidos firmes como o tafetá, podendo também serem feitas em veludo e cetim.


Ilustração 5: Raks al Andalus



No livro The Tribal Bible, Kajira Djoumahna nos relata sobre o que aprendeu de Carolena Nericcio sobre o figurino para ATS® e os porquês da escolha de cada peça que compõe o figurino. Carolena fala sobre isto novamente na revista Tribal Talk - The Voice of FatChance BellyDance quanto a razão de não se chamar a peça pela alcunha de “calças harém” e – adendo meu – do porquê as bailarinas não deveriam chamar a si próprias de odaliscas: 

“Tenho certeza de que nem todos compartilham minha opinião, mas talvez eu consiga explicar meu ponto de vista. Quando eu comecei a dançar e depois a ensinar dança, eu queria aprender absolutamente tudo sobre a dança do ventre. O que eu descobri (20-25 anos atrás) foi uma porção de livros sobre as mulheres do Oriente Médio e Norte da África, mas nada relevante sobre a dança do ventre. Então, eu me contentei em ler as entrelinhas e coletar informações. Parte daquelas informações se tornaram o estilo eclético que virou o Tribal Americano e a outra parte alimentou minha paixão pelo feminismo e pelos direitos das mulheres. Daquela cultura peguei os belos trajes, músicas, uso de cores e formas e apliquei-os na dança. 
(...)


Ilustração 6: As calças ficam bem para todos! | by Angie Never

As pinturas orientalistas que retratam haréns cheios de belas mulheres repousando em almofadas foram pintadas por homens que nunca viram o interior de um harém. Por mais belas que sejam, essas pinturas apresentam um ponto de vista distorcido. No mínimo, elas não retratam o tédio e a incapacidade de sair por livre-arbítrio. Pelo lado pior, o que elas não retratam é o tédio que leva à loucura e à pena de morte por tentar fugir.
(...)
Os haréns não eram lugares românticos cheios de dança e calças diáfanas. Como Fatema Mernissi reitera em seus livros, um harém é uma prisão. Não associemos isso à forma de arte que estamos apresentando." (1)


Ilustração 7: Irie Tribal


Assim, o uso dessas calças no Tribal foi pensado para resgatar a ideia de fortalecimento ou empoderamento feminino, além dos objetivos práticos de darem volume às saias, protegerem as pernas nos movimentos de chão e de deixarem as bailarinas mais à vontade para dançar e girar com suas saias amplas sem o medo de exporem mais pele do que desejam.


Ilustração 8: The Indigo e calças bufantes






Vídeo: Calças bufantes em ação





Fontes:
(1)Texto por Carolena Nericcio. Traduzido com autorização por Mariana Quadros. Publicado originalmente em
Tribal Talk - The Voice of FatChance BellyDance e foi escrito em novembro de 2001


Mais informações sobre a dança Raks al Aldalus:
https://cadernosdedanca.wordpress.com/tag/andaluzia/ (acesso em 30/3/2015)

Revisão do texto e epígrafe:
Eber Machado


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