[Índia em Dia] Consciência Musical

por Raphael Lopes
Orquesta de música odissi: Packawaj (percussão), Violino, Manjiras (snujs),  sítar, vocal e harmonium
Olá queridos leitores da minha coluna!!!

É sempre um desafio escolher a dedo um assunto que seja novo e útil ao público, propondo acima de tudo uma reflexão maior por parte de cada profissional da dança ao invés de apontar regras fixas.

Escrever para um blog é como falar para uma audiência de atentos amigos, e essa oportunidade não pode ser desperdiçada com assuntos pueris ou repetitivos. É preciso ser enfático já que essa é uma ferramenta de contato direto com a galera que está produzindo arte.

O tema que decidi abordar com vocês esse mês é sobre o uso e edição de músicas, e sobre a visibilidade que é dado ao processo de escolha e finalização da mesma.

Dançar é uma arte por si só, mas não é uma arte isolada. Por vir de uma base shástrica (Shastra = Tratados Hindus), gosto de usar as referências encontradas nas artes cênicas indianas para organizar o meu próprio entendimento da dança. Para os indianos uma apresentação artística está enraizada em quatro pilares centrais:


Raphael Lopes em performance enlevado pela música


1 - Corpo 

Técnica de expressão corporal, por meio da inteligência motora em expressar o ritmo com suavidade e vigor, isolando as diversas unidades de movimento, ao mesmo tempo em que as une em sua orquestra de possibilidades de movimento conjuntos;

2 - Ornamentação

Maquiagem, figurinos, e elementos cênicos que enfatizem os movimentos, revista o bailarino com as personagens ou até mesmo permita uma total desidentificação do bailarino com o seu eu ordinário, fundindo-o com as narrativas dançadas em cena;

3 - Música 

A música indiana é a tradução exata do movimento em forma de som, de modo que estruturalmente a dança seja em si uma manifestação clara do ritmo elaborado pela música. As músicas indianas - as Ragas - são reproduções melódicas dos padrões vibratórios do universo, de modo que cada composição seja uma tentativa de reproduzir no espaço cênico a energia que inspirou a música e o artista, provocando assim um impacto energético sobre a platéia.

4 - Emoção

Que é a capacidade artística do bailarino interpretar e, acima de tudo, compartilhar o que "sente" no palco com a sua platéia. A performance artística não pode ser reduzida numa exposição supérflua de movimentos, muitas vezes sem a ornamentação e música apropriadas, pois a finalidade dessa experiência deve ser a elevação da consciência de ambos - bailarino e expectador.



Vamos nos ater a música.

É quase indissociável a música da dança, de modo que praticamente 95% dos bailarinos pensem sua arte já delimitado pela música, ou então, busque adaptar seu trabalho "pronto" numa música que permita certo encaixe de movimentos e ritmos, ao mesmo tempo em que agrade o gosto peculiar do artista. Até ai não há nenhum problema...

Existe um costume interessante nas apresentações de dança indiana: geralmente os primeiros instantes da performance (podendo tomar até uns dois minutos) são destinadas unicamente à uma "apresentação" de cada instrumento que compõe a orquestra. Assim teremos os instrumentos de corda, de sopro e de percussão apresentados em isolado, com variações de velocidade e ritmo, e depois em uníssono com a voz do cantor. Essa é uma forma de cada artista participar do "centro da performance", lembrando que por mais que a dança seja o foco principal da atividade exercida em cena, cada músico e instrumento também está em cena e merece o primeiro plano, e não apenas ser um pano de fundo para a dança.

Essa desatenção com os músicos e instrumentos é tamanha que atualmente é praticamente impossível encontrarmos um evento que comporte essa introdução para cada número. As explicações são diversas (falta de tempo, excesso de bailarinos na grade do evento, evitar a dispersão da platéia), mas elas todas refletem uma única coisa: a falta de comprometimento real com a Arte!!!

A bailarina Revital Carol simbolizando o instrumento de cordas (Veena)

Um número de dança deveria ser assistido como uma grande celebração da alegria, ou como um grande ritual. E em ambas as perspectivas parece que vivenciamos um hiato de tempo. Uma imersão tão profunda no que vemos e ouvimos que ficamos como sob encanto hipnótico. Introduzir a música de forma adequada e respeitosa irá preparar a mente do expectador para o movimentos a seguir, assim como as alternâncias de padrões rítmicos que culminam num clímax reverberam sobre os centros emocionais (vale lembrar que a audição é um dos veículos mais rápidos para arrebatar a consciência, perdendo provavelmente apenas para o olfato - sistema límbico).

Uma dica para os produtores de eventos é justamente pesarem o número de informação sonora e a forma como esse cardápio será administrado à plateia. A principio em quantidade. Não adianta reduzir o número de cada participante para poucos minutos no intuito de ter muitos bailarinos em cena, pois o cansaço é o mesmo para quem assiste, e de quebra nenhum número terá o tempo hábil para desenvolver uma comunicação empática com quem o assiste.

O revezamento de estilos, ou de velocidades rítmicas podem ser calculadas de modo a prenderem a atenção do público, alternando com momentos onde é possível relaxar e digerir os números já apresentados.

Outro ponto importante é a questão dos direitos autorais. Nem todas as músicas estão livremente disponíveis para reprodução. Da mesma forma que não podemos plagiar uma coreografia, não deveríamos copiar as músicas de nossos amigos. Ou ainda mais: não deveríamos utiliza-las sem a devida autorização do músico que a gravou! 



 A partir dos 3 minutos é possível ver o Guru Gangadhar Pradhan (in memorian) saudando os instrumentistas, e por consequência, a Música que irá dar forma à sua performance

Ao que parece, essa preocupação é nula em nosso país, justamente pela grande maioria das músicas utilizadas serem músicas mais populares e destinadas realmente  ao entretenimento. Mas por favor: citem os nomes das músicas e bandas!!! Além de você mostrar respeito à uma parte essencial de sua performance, vocês estará permitindo que seu público depois possa ir procurar mais material do artista. Eu particularmente aprecio muito os festivais de dança pela possibilidade mágica de ser introduzido a novos mundos musicais (e quantas bandas marcantes entraram na minha vida unicamente por ter escutado um pedaço de uma música num show de final de ano!!!).

Se seu estilo for mais contemporâneo e arrojado, e uma edição de música for necessária, lembre-se sempre das harmonizações necessárias para que a edição não se torne uma quimera. Saiba respeitar o público, levando qualidade e informação, e acima de tudo um bom entretenimento.

Nas danças clássicas indianas nos utilizamos das Talas, que são os padrões rítmicos coreografados por gurus legendários. É um costume do bailarino informar à platéia não apenas o nome da música, mas também sua Tala, e o Guru que a compôs para a peça de dança. Essas músicas se tornaram como um repertório mundial para qualquer estudioso, mas sua disseminação é feita seguindo um critério muito específico: é preciso que o bailarino se dedique ao aprendizado da coreografia, e a domine com perfeição para poder "ganhar" a música. As músicas mais populares das danças indianas são partilhadas internamente entre a própria comunidade global de dança. As exceções ficam quanto à certos números específicos, normalmente composições restritas de certas companhias, ou que tiveram uma grande demanda por parte da orquestra e do estúdio que a gravou. Nesses casos um valor é cobrado pela música, e ainda assim a mesma é transmitida no momento em que poderá ser fielmente executada pelo bailarino. No ocidente criou-se uma pequena rota paralela de vendas de músicas de dança indiana, onde bailarinas que viajam há mais tempo se aproveitam da dificuldade que é conseguir esse material, e vendem à preços impraticáveis. Vejo como abominação esse comércio clandestino feito sobre obras que não tem preço, ainda que concorde que é preciso sim reconhecer algum valor sobre tudo o que consumimos.



A bailarina Magda Sa'id dançando Daff, a dança do pandeiro - numa clara demonstração do quanto a dança é em sua essência uma leitura do ritmo musical

No mais gostaria de fazer um último alerta: se você gosta de extrair áudio de vídeos da internet, gosta de fazer colagens sobre composições já existentes, ou ainda faz edições sobre músicas para que elas percam sua identidade original para servir ao seu próprio trabalho, repense em como pode introduzir Ética na sua arte. Opte por música ao vivo quando for possível, contate músicos, visite orquestras e, se possível, experimente durante um ano se dedicar ao estudo de um instrumento. Aprenda a respeitar a música como o esteio de sua dança, como uma das partes mais importantes de seu trabalho.

Cite os nomes dos músicos, ou ao menos o nome da música. Saiba ouvir cada instrumento "dançando" em cena, e expanda sua forma de consumir arte. Aplauda não apenas o bailarino, mas a toda equipe que torna possível a magia do palco!!!

Até a próxima,

Namaskar



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