Identidade européia no Tribal Brasil

por Kilma Farias

Ballet Fusion Brasil com as alunas do Studio Lunay
          Se uma dança étnica pode ser entendida como tradução de uma tradição, sendo essa tradição fruto dos acontecimentos históricos de um povo e da particularidade de cada cidadão que dialoga com a sociedade em que está inserido, articulando em si uma identidade em constante trânsito, então podemos sim pensar toda e qualquer dança como uma dança étnica. Entendendo essa etnicidade como algo contemporâneo que se atualiza constantemente através dos seus “dançantes”.

            Pensando assim, as danças de origem europeia também podem ser entendidas como danças étnicas e, consequentemente, serem objeto de hibridação no Tribal Brasil.

Se trouxermos à lembrança a presença de uma matriz ibero-arábica no processo de colonização do Brasil, perceberemos o quanto que o mosaico luso pode representar o Tribal. Começado pelos moçarabes, cristãos de cultura árabe que aqui se estabeleceram propagando a cultura moura sob princípios judaicos-mulçumanos. Sem contar com o sem número de caixeiros viajantes que aqui comercializavam seus produtos, entre eles, belíssimos e enormes anéis, essências, especiarias e tecidos. Anéis esses que caberiam muito bem nas mãos de uma bailarina de Tribal.

            A invasão árabe na península Ibérica durou de 711 a 1492, gerando uma mestiçagem cultural, inclusive essa mestiçagem se reflete na maneira de se relacionar com outras culturas, favorecendo uma abertura ao novo. As justaposições sócio-culturais que se interpelam bem sugerem a figura de um mosaico português, com tantos e quantos arabescos possa ter herdado dos Árabes. Arabescos esses que, através da nossa memória afetiva, aparecem muitas vezes nos bordados dos cinturões e tops de Tribal Brasil.


Luana Aires: linhas de braços e pernas como herança do ballet

            Uma cultura acaba sendo incorporada à outra e nos chega como nos reizados das danças populares brasileiras, por exemplo, nas figuras dos reis e rainhas do congo, ou simbolizada pela coroa usada por alguns mestres do Cavalo Marinho de Pernambuco, e do Boi de Reis da Paraíba. Aludindo à coroa portuguesa.

            A via da história é de mão dupla, onde as influências circulam em direções diversas. Exemplo vivo são as dança Fofa e Lundu.

Pelo que se depreende das descrições da dança da fofa, desde 1730 - quando em Portugal aparece o Folheto de Ambas Lisboas a mais antiga referência a tal dança – e do lundu desde 1780 – quando o Conde de Pavolide recorda-o dançando em Pernambuco em 1768-1769 - , esses dois gêneros de dança pouco se diferenciavam um do outro, pois ambos tiravam do batuque duas das condições negro-africanas que mais os distinguiam: os meneios de corpo julgados indecentes do Congo, na fofa, e a alegre irreverência das umbigadas de Angola, no lundu. E, além do mais, o único elemento coreográfico representativo da contribuição branco-européia (o castanholar de dedos dos bailarinos com os braços levantados para o alto, arqueados sobre a cabeça) aparecia tanto numa quanto noutra. (TINHORÃO, 1988, p. 61).

            O fato é que tanto a Fofa quanto o Lundu transitaram entre Brasil e Portugal, mas ambas possuíam mestiçagem com matrizes africanas. Como separar, ou peneirar, influências? Penso que esse mosaico é construído ao longo de toda história da humanidade, transformando-nos em seres híbridos por natureza e essência. E esse hibridismo reflete na arte, na nossa dança e, consequentemente, no Tribal Brasil e na nossa forma de pensar esse corpo que traduz influências também europeias. Poderíamos perguntar o quanto tem de Afro na Fofa? O quanto tem de Afro no Lundu? Ou até mesmo por que a Fofa acabou se tornando um dos símbolos da cultura Portuguesa e no Brasil já não mais se encontra?


Larissa Martins dançando ballet fusion
            Pensemos agora o ballet clássico com toda sua verticalidade corporal, atentando à autonomia dos membros superiores e inferiores em relação ao centro do corpo em plena ativação. Sim, o ballet europeu também contribui com o corpo do Tribal Brasil. Linhas de braços e de pernas, giros e eixo de equilíbrio podem ser atribuídos a essa herança, assim como a estética temática a que “colonizamos” nosso olhar para julgar o “belo” na dança através do viés do ballet clássico.

Na antropologia, entende-se por étnico um grupo que se liga geneticamente, linguisticamente e culturalmente. Pode-se concluir desse raciocínio que toda dança, em sua natureza, é étnica, pois não existe a dança de um povo, sem o povo. Desse modo, o ballet clássico fala da cultura europeia e se perpetua como um produto do mundo ocidental. O que separa o patrimônio imaterial de um povo do outro é enxergado sob diferentes prismas, sempre em relação a quem observa e a quem é observado. Podemos concluir dessa reflexão que não se trata de enquadrar ou não o ballet clássico, ou seja, que dança for, sob o guarda-chuva da “etnicidade”, mas sim de olhar para essa dança, e para qualquer outra, a partir das tradições culturais nas/pelas quais se desenvolveu e continua a se desenvolver.

Sendo assim, o Tribal Brasil também pode ser vivido como uma dança étnica que abarca inúmeras outras, sejam de matriz indígena, africana ou europeia, sob um processo de constante atualização de linguagem corporal e conceitual que não se impõem, mas dialogam no movimento do corpo e na construção da cena dançada.

Ballet Fusion Brasil com as alunas do Studio Lunay


Referências bibliográficas:

HEALIINOHOMOKU, Joann. Uma antropóloga olha o Ballet Clássico como uma forma de dança étnica. IN: CAMARGO, Giselle Guilhon Antunes (org). Antropologia da dança I. Florianópolis: Insular, 2013.


TINHORÃO, José Ramos. Os sons dos negros no Brasil. Cantos, danças, folguedos: origens. São Paulo: Art Editora, 1988.




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