Parte 1 de 4 | por Karina Leiro
Pode-se considerar o flamenco como o conjunto de expressões artísticas e culturais constituídas pelo canto, a dança e o toque da guitarra (violão flamenco), trata-se, portanto, de uma manifestação interdisciplinar e, como veremos ao longo do texto, mestiça desde a sua formação. Reconstruir a história do flamenco, buscar sua origem e seguir seus passos até os dias de hoje não é uma tarefa fácil. A carência de tradição escrita até o século XIX, acabou gerando diversas e contraditórias teorias sobre as origens do flamenco que tentam explicar quando e porque ele surgiu. Existe consenso apenas a respeito de onde, o berço do flamenco seria mesmo Andaluzia, região ao sul da Espanha.
Ainda que a maioria dos estudiosos, ao buscar a origem do flamenco, ignore a história do sul da península ibérica, anterior ao século XVIII,creio que tem lógica pensar que o cruzamento de culturas ocorrido em Andaluzia ao longo de sua história, tem a ver com a formação dessa expressão artística e cultural.
O genótipo flamenco contém informações sobre suas influências greco-romanas, refugiadas até a Idade Média nos cantos litúrgicos bizantinos. Segundo Calado (2005), Manuel de Falla, compositor espanhol, achou essa conexão em traços como a melodia e a escala menor descendente. Parece haver também influencias hindus. Os estudiosos citam Abulhasam Ali Ben Nají (Zyryab), procedente de Bagdá, que foi músico da corte durante o califado de Abderraman 11 em Córdoba (822-852 O.C.). Objeto de estudos para intelectuais e fonte de inspiração para os artistas, Ziryab (o pássaro negro) foi tema de um disco do músico Paco de Lucía em 1990.
A dominação árabe (711-1492) enraizou na região de Andaluzia modos de organização política, social e econômica, ciências, artes e costumes. Depois de mais sete séculos de convivência, a música não deve ter sido menos influenciada. Assim mostram exemplos do palpável paralelismo entre as modulações dos cantos flamencos e as chamadas à oração muçulmanas, assim como entre os ritmos de ambas as músicas. Além disso, textos do séc. XIX, tais como Cosas de Espanha de Richard Ford, fundamentam a idéia da influência árabe no flamenco.
Tampouco podemos descartar a influência judaica na formação da arte flamenca. Rossy (1998) diz que "o povo israelita por sua convivência de séculos com os espanhóis, inclusive na Espanha muçulmana, teve grande oportunidade de influir no canto flamenco..." (tradução do autor). O autor acredita que muitos cantores flamencos, os chamados cantaores, eram judeus.
O paulatino desmembramento político dos territórios árabe-andaluzes abre para os reinos cristãos do norte da península, as portas desse rico caldeirão cultural. Desde 1236, ano de queda de Córdoba até 1492 quando a tomada de Granada finaliza a reconquista, Castela influenciou Andaluzia e foi, obviamente, também influenciada por ela. O fato é que a partir do século XV outros modos culturais tiveram caminho livre para matizar ainda mais o repertório cultural de Andaluzia.
Na mesma época, ocorreu outro fator chave para a formação do flamenco; a chegada dos ciganos à Espanha. O mais antigo documento que trata dessa onda de imigrantes data de 1425. A teoria mais aceita é que os ciganos seriam de Punjab, noroeste da índia, de onde teriam empreendido um longo êxodo que, entre os séculos VII e XIV, por causas pouco esclarecidas, foi adentrando o continente europeu. Os ciganos que se estabeleceram no sul da península ibérica, teriam se encontrado com o rico folclore andaluz, o qual teriam assimilado, e passado a interpretar segundo as características de sua própria cultura.
Flamenco, das origens à fusão
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Recife, PE